30 dezembro, 2020

Balanço Final




Para preencher na totalidade os desafios, #desfiodeleituramantadehistorias20 #lêportuguês #escapadelaliterária e #lercomelas, propostos pelo Clube de Leitura Manta de Histórias, li 70 livros. 
Como o meu objectivo é não repetir livros nos vários desafios (apenas repeti um, mas li outro “pelo prazer de ler…” para compensar), só consegui ler 1 para o #hohohobooks. Ainda seleccionei outro, mas as novidades dos últimos dias, desviaram-me para outras tarefas, também muito interessantes…

Assim no total li 71 livros (tanta conversa para dizer isto):
- 32 de autores portugueses (16 Homens, 16 Mulheres);
- 6 de autores lusófonos (5 H, 1 M)
- 33 de autores estrangeiros (22 H, 11 M) este ano abusei de autores estrangeiros… 
destes autores, li 3 em língua francesa (é pouco)

Tentei diversificar os géneros literários, e para além dos específicos dos desafios, li poesia (vários), teatro e crónicas. Não li cartas/correspondência nem diários (talvez inclua no desfio de 2021)

Para além destes desafios, participo em tertúlias da minha escola e no Clube de Leitura do PNL, no GoodReads (estas duas atividades condicionam as leituras, já que indicam concretamente o livro a ler. Estas leituras integram também os desafios do CLMH. 
Finalmente, resta-me dizer que superei o número estabelecido de leituras no GoodReads. 
Agradeço o contributo de todos os que sugeriram livros e foram partilhando opiniões. 

Consultar a etiqueta Desafio de Leitura 2020 para aceder às opiniões dos livros lidos, carregar na imagem ou  aqui para aceder à página do Goodreads.



𝘈𝘴 𝘌𝘴𝘵𝘢çõ𝘦𝘴 𝘥𝘢 𝘝𝘪𝘥𝘢, de Agustina Bessa-Luís



OPINIÃO

Pequeno livro, pouco divulgado, penso eu, porém uma autêntica pérola dos usos e costumes da gente do norte. Estas Estações da Vida, são nada mais do que um elencar de “memórias de viagens de pequeno curso que, desde a infância, me transportam de um lugar ao outro.” (p.17). A autora na sua viagem “de comboio” à beira do Douro, transporta-nos para “antigas carruagens”; faz-nos descobrir pessoas, costumes e terriolas; desvenda-nos histórias narradas nos painéis de azulejos. 
Apesar de pequeno, a narrativa contém informação vasta sobre a época, Agustina narra com subtileza e uma ponta de ironia certos episódios que viveu ou observou da sua aldeia. “Desde a aldeia de Ariz, podíamos ver quem entrava no comboio, se usássemos um binóculo. Quem se tinha por ilustrado e ocioso elegante tinha um binóculo em casa.” (p.29)

Adoro este excerto que mostra a perspicácia e o sentido crítico de Agustina:

“(…)Ninguém levava farnel nas carruagens de primeira classe. (…) era tudo muito discreto, muito digno, não se tirava o chapéu nem as luvas nem se abanava o rosto com um papel pregueado. 
(…) Nas carruagens de segunda classe era tudo mais falado. Faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam. (…) A alma sensata viajava em segunda classe, era opiniosa e moderada; escandalizava-se facilmente. (…) Enquanto na terceira classe era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. (pp.21 a 23)

28 dezembro, 2020

𝓑𝓪𝓲𝓵𝓪𝓻𝓲𝓷𝓪𝓼 𝓭𝓮 𝓒𝓸𝓻𝓭𝓪, de Lília Tavares

 


OPINIÃO


“Que tumulto é este, que inquietude salta/ dos corações das mulheres que agitam as palavras?” (p.50). 
Assim, começa um dos poemas deste livro que enaltece e homenageia as mulheres. Todas as mulheres. A mulher-menina, a jovem mulher, mulher amada, mãe, esposa, marinheira, bordadeira, professora, abandonada, feliz, sonhadora, saudosa, perdida, conformada… 
“(…) abdicam de ser felizes/ ao largarem flores nos lugares onde choraram.” (p.31)

Todas bailarinas porque descritas com delicadeza, harmonia, elegância, mesmo quando “forçadas” a agir pela força da “corda”. 

“Há mulheres que diariamente são flores.
Frescas, portadoras de gotas de orvalho matinal.
Perfumam quem as rodeia como se fossem óleo aromático
em lamparinas que teimam em manter a claridade
na negrura da indiferença das noites longas.
Cantam.
São água que na madrugada sacia a avidez de colo
e de ternura.”

Ao longo dos 65 poemas, a mulher é descrita em união com a natureza, em harmonia com a beleza das flores, das aves, da água, do mar, mas também do vento, do sol, da noite.
“As mulheres têm a força de uma cascata /e a suavidade das violetas que respiram na janela.” (p.25)

Numa escrita poética, simples, emotiva e sincera, a mulher-poeta deixa transparecer a admiração, a gratidão, o carinho e o amor que sente por todas estas mulheres, sejam elas bailarinas porque felizes, fortes e amadas, ou bailarinas de corda porque conformadas e passivas, que preencheram ou ainda preenchem a sua vida. Há, assim, uma mulher que “agita as palavras” e as transforma em emoções.

“Tocam, cegas pelas palavras, labirintos de sonhos
e chegam ao seu lugar, um vasto areal de afectos que se
conjugam em todos os tempos, Ali quase todas as mulheres
ardem em incêndios efémeros e nos barcos dormem
ao som da ladainha verde das ondas. A praia no outono
é um leito frágil de silêncios e limos. São bailarinas
delicadas que se aconchegam nos braços amados, na
intermitência…
da luz. No abraço da noite, em mão amantes, os seus olhos
ousam uma certa forma de errância. Para elas
há muito as estrelas foram reticências. Contemplam
o firmamento na busca do significado para a claridade 
em andrómeda, órion e cassiopeia.



27 dezembro, 2020

𝘔𝘢𝘵𝘢𝘪-𝘷𝘰𝘴 𝘶𝘯𝘴 𝘢𝘰𝘴 𝘰𝘶𝘵𝘳𝘰𝘴, de Jorge Reis

 


OPINIÃO

Matai-vos uns aos outros é considerado um dos melhores romances do neo-realismo e “talvez o melhor romance policial português” (Óscar Lopes). Escrito em 1958 e publicado em 1962, foi proibido e retirado do mercado pela Censura, tendo circulado de forma clandestina. 
A narrativa decorre na localidade de Vila Velha, em 1948. O agente António Santiago tinha 36 anos e fora incumbido de desvendar a morte de Manuel dos Santos. 

“Caíra na Polícia Judiciária, não por temperamento ou vocação para esteio da ordem, mas por necessidade – e ainda a conselho e pelas cunhas do padrinho, chefe da brigada de costumes”. (p.17)

Muito bem escrito, com pinceladas de ironia, relata factos, episódios (alguns caricatos) e costumes de uma terra do interior. Na tentativa de descobrir o presumível assassino de entre dez suspeitos, Santiago, durante sete dias (de quarta a terça-feira) convive com a dita elite da terra, intercepta a hipocrisia, o oportunismo e a corrupção, assiste à violência da praça (guardas) e às manifestações de descontentamento e de pobreza do povo trabalhador e oprimido. 
Jorge Reis escolhe Vila Velha, mas é Portugal que pretende retratar. Narrando os factos e descrevendo aquelas personagens, o autor desvenda magistralmente os meandros da cumplicidade, da arrogância, da opressão e da violência das gentes do poder, da época.

“Triste época a nossa – ia dizendo D. Virgínia – Vivemos no reino dos cascas-grossas e dos brutos a arrotar a broa!... Antigamente, o homem era respeitado pelo seu valor pessoal!... Hoje!...” (p.76) 

“Enfim, um povo em estado de falência crónica”. (p.133) 

“(…) Pior: vivem no medo! Não o medo que, ante um perigo preciso, todo o homem cobra normalmente – senão esse pavor difuso, incerto, acabrunhador, medíocre que leva o vizinho a arrecear-se do vizinho, o irmão a denunciar o irmão! O medo filho da má consciência, do pão que sabe ao pó da mentira e dos caminhos do futuro vedados em todas as encruzilhadas!... “ (p. 149)


25 dezembro, 2020

Meia-Noite ou o Princípio do Mundo, de Richard Zimler

 



OPINIÃO

Este livro narra a história de John Zarco Stewart, filho de mãe judia e pai escocês, que nasceu no Porto em 1791. A acção vai decorrer sobretudo no início do século XIX (já John tem 9 anos) e relata vários episódios históricos como a perseguição aos judeus e cristãos-novos, as invasões francesas, a ascensão da Companhia das Vinhas, a escravatura no Estados-Unidos, sobretudo na Carolina do Sul. 


Para além destas referências históricas penso que é a história de John que verdadeiramente interessa. Sempre se revelou uma criança curiosa, afectuosa e traquinas. John foi crescendo rodeado de amor (pais e vizinhos e mais tarde a mulher e as filhas) e de amizade (Daniel e Violeta), mas também de traição. Contudo, é Meia-Noite, o curandeiro africano, trazido de África para o Porto pelo pai para o salvar, que lhe vai incutir valores e princípios que o sustentarão ao longo da sua vida, é ele que lhe forja uma personalidade forte e que lhe ensina a superar os seus próprios medos. 

Ao longo da narrativa vamos conhecendo as aventuras de John, os ensinamentos que vai adquirindo, as revelações do seu passado, as perdas e as conquistas, mas vamos sobretudo acompanhando o seu crescimento interior, a forma como (sobre)viveu à sombra do amor, mas também da culpa, da perda, da morte, causando-lhe ódios, revoltas, remorsos, dúvidas. 
Foram estas dúvidas que o levaram a uma busca incessante da verdade e a vencer a "hiena" que frequentemente o assaltava. 

É um romance fabuloso. É um romance que põe em evidência o carácter das pessoas, independentemente da sua cor de pele, de raça ou religião. É um romance sobre a perseguição, a opressão, a escravidão e a traição, mas também sobre o amor incondicional e sobre a fé e a crença e a esperança.


22 dezembro, 2020

Poema de Natal

Ilustração de Eva Montanari


Natal cada Natal

Quando na mais sublime dor,
A mulher dá à luz,
Há sempre um Anjo Anunciador
A murmurar-lhe ao coração — Jesus!

Cada criança é o Céu que vem
Pra nos remir do pecado
E as palhas d’oiro de Belém
Espalham-se no berço, como um Sol espelhado

Por sobre o lar presepial , o brilho
Da estrela abre o convite dos portais:
— Vinde adorar a floração do filho
No alvoroço da raiz dos pais.

António Manuel Couto Viana, in Mínimos

13 dezembro, 2020

𝗢 𝗔𝘀𝘀𝗼𝗯𝗶𝗮𝗱𝗼𝗿, de Ondjaki

 


OPINIÃO


Trata-se de uma novela composta por cinco partes com episódios curtos e insólitos. A escrita, como habitualmente em Ondjaki, é poética e “encantadora”. A acção decorre numa aldeia, em Angola, apenas habitada por velhos e burros e um padre onde, um dia, em Outubro, chegam duas personagens. A primeira é o Assobiador, que tinha um “assobiar harmonioso e cativador”; a segunda, é um caixeiro-viajante, “vendedor de bugigangas, de objectos para distrair ou encantar”. 
Foi, porém, o assobiador que veio perturbar a pacatez da aldeia. “A música, em assobio simples, recriava um novo universo dentro da paróquia e todos os corações da assistência – padre, pombos, andorinhas, o mundo!” (p.18). 
Ao longo da história, a música, a melodia do assobiador vai resgatar a alma e libertar o sonho dos habitantes, vai alterar o comportamento das pessoas e dos animais, vai despertar desejos e sentimentos, vai causar magia.

“A magia completou-se e todos agora, incluindo a árvore, podiam partilhar o momento assobiado. (…) Era evidente, para olhos e corações, que o mundo assim tão colorido destilava imagens brutalmente simples – de ternura.” (pp. 99 e 109).

09 dezembro, 2020

𝘒𝘢𝘭𝘭𝘰𝘤𝘢í𝘯𝘢, de karin Boye

 


OPINIÃO



Em Kallocaína, narrativa distópica, o indivíduo é completamente anulado e a sociedade é completamente controlada por um regime totalitarista. O Estado Mundial é o grande manipulador e opressor. 
Leo Kall, o protagonista, trabalha como químico, na Cidade Química número 4, e desenvolveu uma substância, Kallocaína, que depois de injectada nos indivíduos, os levará a revelar todos os segredos, medos, pensamentos, sentimentos, atitudes,… “– Uma coisa, pelo menos, é certa: o último resquício da nossa vida privada desaparecerá para sempre.” (p. 62)
Este método deverá ser aprovado pelo Estado Mundial e implementado como substituto de todos os demais métodos de investigação. 

Muito à semelhança de 1984, de George Orwell, tudo é vigiado, há olhos e ouvidos em todos os lares e a assistente doméstica “estava encarregadas de apresentar um relatório sobre a família no fim de semana.” (p.11). Nesta cidade não há lugar ao amor, à intimidade, ao convívio, ao sonho, à liberdade. Há sim, lugar ao medo, ao pesadelo, à denúncia, à desconfiança e à opressão.
 
Para quem goste de distopias, é um livro a ler



02 dezembro, 2020

Havia, de Joana Bértholo

  



OPINIÃO

Havia é um livro muito original com ilustrações de Daniel Melim que também escreveu o posfácio. 
O livro é composto por pequenos textos, sempre iniciados pela palavra Havia, (verbo impessoal). Cada texto é seguido de um outro pequeno texto, numa outra página, em jeito de conclusão, que serve para confirmar ou contrariar a tese do que foi lido antes. Os desenhos surgem logo depois, sempre dois iguais mas invertidos também em páginas diferentes e seguidas. 
Ora estamos perante um livro com histórias absurdas, desconcertantes, desconexas, divertidas, mas sempre com um propósito. Parece-me que através do nonsense, tal como As Aventures de Alice no País das Maravilhas (livro exemplar em relação à utilização do nonsense na literatura) e dos jogos de palavras e de ideias, a autora vai expondo o seu ponto de vista, quase sempre irónico, em relação a muitos aspetos do nosso quotidiano quer em termos sociais e ambientais quer em termos académicos. Aliás, a forma verbal “havia” tantas vezes atropelada na nossa língua, é, na minha opinião, esclarecedora da intenção da autora. Eis alguns exemplos: 

“Havia uma ilha rodeada de terra por todos os lados. Suponho que nem lagos existissem. (…) Mesmo assim, esta ilha sem água era um afamado destino turístico. As suas praias eram bastante concorridas. “ (p. 20) 

“Havia, uma, vírgula, com, uma, gritante, necessidade, de, protagonismo, Tal , não, era, a, sua, ânsia, de, aparecer, que, não, tolerava, qualquer, outro, tipo, de, pontuação, “ (p.36)

“Havia aquela via onde o homem que já não via fingia que via as miúdas passar. Na verdade não as via, mas deixem-no estar sossegado. É só um velho a lutar contra o Parkinson.” (p.111)

Concluindo, é um livro de leitura rápida e agradável que acaba, por vezes, por nos fazer reflectir e quase sempre sorrir. Havia e há muitas histórias estranhas, mas se ainda restassem dúvidas, na página 106, lê-se “Eu bem te avisei – este livro está cheio de histórias absurdas.”


01 dezembro, 2020

Eduardo Lourenço (23 de maio de 1923 - 1 de dezembro de 2020)

 


                                 
Com o livro "Pessoa Revisitado". © José Carlos Carvalho / Global Imagens


O ensaísta Eduardo Lourenço, de 97 anos, morreu hoje, dia 1 de dezembro, em Lisboa. Professor, filósofo, escritor, crítico literário, ensaísta, interventor cívico, várias vezes galardoado e distinguido, Eduardo Lourenço foi um dos pensadores mais proeminentes da cultura portuguesa.

Notícia completa em DN.pt 

30 novembro, 2020

Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, de José Saramago

 


OPINIÃO


Saramago escreveu este texto a pedido do compositor Azio Corghi para ser adaptado à ópera. À medida que o autor ia escrevendo a peça teatral o compositor ia construindo o libreto. (O posfácio “Génese de um libreto”, esclarece como o projecto foi sendo construindo: troca de correspondência (email) com as diversas ideias e sugestões dos dois criadores.) 
Neste texto, Saramago altera o mito de Don Juan (já muito abordado por vários autores), isto é, em vez de o condenar aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, decide absolvê-lo e mostrar que ele é que foi seduzido. Estamos, evidentemente, perante uma paródia, tal como o original espanhol.
Ao longo das cinco cenas de um único acto, desfilam as personagens que vão mostrar o propósito do autor. Quem é o Don Giovanni de Saramago, um sedutor, ou um seduzido? Temos, então o próprio dissoluto Don Giovanni e o seu criado Leporello, a estátua do comendador, as mulheres que o tentam seduzir: a nobre Dona Ana, a burguesa Dona Elvira e a camponesa Zerlina e ainda os traídos Don Octávio e Masetto. Em poucas páginas, e à boa maneira saramaguiana, se satirizam os valores e comportamentos de uma sociedade hipócrita.

29 novembro, 2020

𝑼𝒎 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒂 𝑭𝒊𝒏𝒈𝒊𝒓, de João Pinto Coelho

 


OPINIÃO

Eram elevadas as expectativas em relação a este livro. Tão elevadas que o coloquei imediatamente na pilha dos prioritários. João Pinto Coelho já nos habituou a uma escrita cuidada, minuciosa e a um enorme talento na construção da narrativa, assente numa pesquisa rigorosa. 

A acção narrada a duas vozes decorre em Itália, sob o domínio de Mussolini, em Pitigliano, uma localidade da Toscana, com características próprias e bem ilustradas ao longo da narrativa. A primeira voz, a da protagonista, Annina Bemporad, relata a sua vida de maio de 1937 a outubro de 1943; a segunda, a de Ulisse, irmão de Annina, situa-se em 1952 e surge apenas para confirmar, negar ou esclarecer algum aspecto narrado pela sua sorellina

Trata-se de uma história cheia de emoções com muitas reviravoltas. Há personagens fascinantes e actos perturbadores que deixarão marcas na memória dos leitores. Annina, a rebelde, mas também a sonhadora, vai proporcionar-nos momentos de paixão, de ódio, de sofrimento e de vingança. 

João Pinto Coelho sabe construir histórias, sabe surpreender pelas peripécias e reviravoltas que vai impondo à narrativa, sabe ludibriar, com subtileza, até ao final planeado e o leitor seduzido pela escrita poética, pela beleza das descrições e pela trama emotiva da história, deixa-se conduzir completamente embrenhado, não distinguindo a realidade da ficção, do fingimento. Em Um Tempo a Fingir tudo é inesperado e verosímil. Tudo é fabuloso.


25 novembro, 2020

Salsugem, de Al Berto

 


OPINIÃO


Já perdi a conta ao número de leituras que já fiz deste livro. Leio sempre com um enorme prazer e confesso que a leitura nunca é idêntica. Desta vez, li para participar numa tertúlia literária. 

Salsugem é, para mim, um dos melhores livros do poeta, considero que há nele um aprofundamento na escrita no sentido em que representa o universo da sua temática: o mar, o deserto, a errância, o crepúsculo, a noite, a memória, a infância, a morte, o corpo, a escrita. 
“a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
(…)
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo”

Trata-se de uma escrita que problematiza questões actuais (“hoje é dia de coisas simples”), que evidencia o desespero, o desassossego da passagem do tempo, da precariedade da vida, a angústia das incertezas, a solidão, o desajustamento com o seu tempo, a melancolia. 

Na escrita de Al Berto “ deambula a melancolia lunar do corpo” 

se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição


21 novembro, 2020

𝘜𝘮 𝘏𝘰𝘮𝘦𝘮: 𝘒𝘭𝘢𝘶𝘴 𝘒𝘭𝘶𝘮𝘱, de Gonçalo M. Tavares

 


OPINIÃO


Um Homem: Klaus Klump é o primeiro livro da série O Reino. A guerra é o tema deste livro. O espaço e o tempo não estão referenciados pelo que esta guerra pode muito bem acontecer num qualquer lugar do mundo. 
“Uma sirene toca. Uma sirene militar não é um instrumento pacífico que faça dançar as mulheres. Aquela sirene fazia chorar as mulheres.” (p.37)
A escrita simples, objectiva e fragmentada evidencia a crueldade do opressor, a submissão e o aniquilamento de uma cultura e de um povo oprimido.
O autor emprega frases curtas, descreve subtilmente algumas cenas, propaga silêncios, acciona memórias, provoca emoções, levanta questões. Tudo isto em pouquíssimas páginas. As personagens vão desfilando ao longo da narrativa e o leitor vai tomando conhecimento dos actos cruéis cometidos por um poder invasor e violento. 
“Na paisagem as máquinas substituíram os animais. As máquinas não deixam fezes nos passeios, Antigamente as mulheres enojavam-se com os excrementos que os cães deixavam nos passeios. Diziam que os donos não tinham educação. Hoje as mulheres enojam-se quando cinco soldados entram em casa e pegam nelas e as violam, um soldado e depois outro.” (p.42)

O leitor entra na guerra, convive com as personagens, assiste à violência, à desumanização, à revolta, à incompreensão e finalmente à resistência e à reconstrução.

É um livro marcante que explora os sentimentos e que levanta questões pertinentes sobre a condição humana.
“A brutalidade é de uma delicadeza exuberante face às pessoas ricas; nada de novo.” (p. 57)



18 novembro, 2020

As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll

 


OPINIÃO

Numa formação sobre leituras, fui positivamente surpreendida pela abordagem do formador a esta obra. Decidi, por isso, relê-la já com um outro olhar. Conhecendo a história desde há muito, esta releitura revelou-se um verdadeiro prazer literário. Desfrutei das múltiplas metáforas presentes, das mensagens contidas nas entrelinhas, ("- Se todos cuidassem de suas vidas - vociferou a Duquesa, - o mundo giraria muito mais rápido."), da viagem fantástica ao mundo dos sonhos, do nonsense das conversas de Alice com as outras personagens, do caos das acções, dos disparates do rei no julgamento e da crueldade da rainha com a sua réplica “cortem-lhe a cabeça”. 

"- Poderia me dizer, por favor, que caminho eu devo seguir? 
- Depende muito aonde quer chegar - respondeu o Gato. 
- Não me importa muito para onde irei... - disse Alice. 
- Então, não importa em que direção vá... - atalhou o Gato." 

O autor, nesta obra composta de texto e imagem mistura a fantasia e o burlesco, a história é narrada na forma de um sonho o que justifica a aparente falta de coerência e unidade próprias de uma narrativa. 
É um belíssimo clássico, que inicialmente escrito para entreter acaba por conter uma mensagem de contentamento e de felicidade. Como referiu a Duquesa, na página 102, em conversa com Alice “- Ora, ora, pequena! Tudo tem uma moral, basta encontrá-la. (…) “Oh , é o amor, é o amor, que faz girar o mundo!” 

Mais tarde, darei continuidade às aventuras com Alice do Outro lado do Espelho.



Saramago esculpido por Vhils

 

Vhils (Alexandre Farto) esculpiu rosto de José Saramago num pontão, junto ao mar, na Lourinhã, no dia em que o escritor faria 98 anos.

A servir de legenda, está uma citação do romance de Saramago, A Jangada de Pedra:

Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que para mais não lhes chegam as forças, bem melhor seria vivermos em terra de tufões.




15 novembro, 2020

O Fio da Navalha, de Somerset Maugham

 


OPINIÃO


Primeiro livro que leio deste autor. Gostei bastante e fica o compromisso (não é, Rute Martins) de ler outros. A escrita é clara e simples e a história é narrada na primeira pessoa. Aliás, Maugham integra a narrativa, conhece as personagens, convive com elas, ouve-as e mais tarde escreve este romance reavivando as suas “lembranças”. Na primeira página, ao dirigir-se ao leitor, revela “quero apenas escrever sobre aquilo de que tenho conhecimento”. Estamos então perante um romance baseado em factos reais.

Trata-se de uma narrativa longa que caracteriza as personagens com densidade psicológica e aborda temas como a importância, ou não, de viver segundo as convenções impostas pela sociedade; a caracterização detalhada das personagens que me faz preferir umas em detrimento de outras (são personagens fortes, com carácter); a descrição dos encontros, dos eventos, das casas, do vestuário, etc. que tão bem representam as mentalidades francesa, inglesa e americana, da época.

Mas aprecio sobretudo as reflexões que vão surgindo, ao longo do texto, em relação às opções (de vida) de cada um dos intervenientes. Elliot, amigo de Maugham, representa uma personagem snobe e fútil que pretende impor-se na alta sociedade, mas no fundo, é bem mais do que isso, já que apesar das suas convicções mundanas e do seu estilo de vida, revela-se um homem bom e generoso e amigo da família. Isabel, sobrinha de Elliott, educada numa sociedade fútil em que o estatuto social tem um peso enorme, receia o desconhecido, a instabilidade económica e opta pela segurança e bem-estar ao casar com Gray, em detrimento do amor. Larry, é uma personagem fantástica, livre e independente, abandona o conforto e a riqueza “não levo mais nada além da roupa que trago vestida e meia dúzia de coisas numa mala” (p. 312), e parte à aventura, pelo mundo, em busca de conhecimento. 

Maugham descreve Larry desta forma: “Ele sorriu. Já devo ter comentado pelo menos vinte vezes a beleza do seu sorriso, tão acolhedor, sincero e encantador. Reflectia toda a candura e sinceridade da sua personalidade cativante; mas tenho de o fazer mais uma vez, pois agora, além de tudo isso, havia também nele algo de terno e melancólico.” (p. 312) 

Para concluir, e em resposta à dúvida colocada, inicialmente, pelo autor “se lhe chamo romance é só por não saber o que mais lhe chamar”, estamos perante um belo romance autobiográfico que nos faz reflectir sobre a vida, sobre opções de vida, mas também sobre o amor, o ciúme; sobre a sociedade, a futilidade; sobre o conhecimento e religião; sobre a busca da felicidade, da liberdade, do equilíbrio, da descoberta do "eu". 

"- (...) a verdadeira sabedoria consiste em alcançar um equilíbrio entre as exigências do corpo e as exigências do espírito. - (...) procuramos a felicidade nas coisas materiais, mas que a felicidade não se encontra aí, mas sim nas coisas espirituais. (pp. 295 e 296)


04 novembro, 2020

A Mulher Canhota, de Peter Handke

 


OPINIÃO


Este livro, também adaptado ao cinema por Wim Wenders (1978), retrata o desejo de uma mulher, Marianne, de se libertar da companhia do marido. A narrativa começa com um jantar a dois, seguido de uma noite íntima. Aparentemente, o casal vivia momentos de cumplicidade e de felicidade. Porém, essa felicidade é de curta duração porque ao acordar, a mulher tem “uma revelação” e diz ao marido: “Vai-te embora, Bruno. Deixa-me.” (p.19)

Assim, de forma abrupta, Marianne toma uma decisão, rompe a relação e passa a viver sozinha com o filho. E Handke centra-se na sua história. Recorre a frases curtas para nos descrever os seus actos quotidianos, as brincadeiras com o filho, os seus pensamentos, os seus encontros com o marido, o seu trabalho e relacionamento com uma amiga e outras personagens que desfilam nesta fase da sua vida (não são muitas). Algumas destas descrições poderiam ser dispensáveis porque são meras banalidades como, por exemplo, uma ida ao supermercado. Contudo, é no modo como o autor narra estes pequenos detalhes, estas banalidades que melhor entendemos a solidão e o desamparo da protagonista, bem como a sua forma de pensar e de sentir. 

Handke é exímio em retratar as relações humanas.



02 novembro, 2020

O Grande Rebanho, de Jean Giono


 

OPINIÃO


Pouco tenho lido sobre a Primeira Guerra Mundial, pelo que decidi ler o testemunho ficcionado de Jean Giono. Estamos perante uma visão muito humanista do autor, para além da descrição do sofrimento dos homens que partiram, ele aborda também o sofrimento e a angústia dos que ficaram, mulheres, crianças e homens mais velhos. 

O romance inicia com a passagem pela aldeia de um grande rebanho. Ao longo da transumância, há animais que ficam pelo caminho, feridos, moribundos, mortos. Imagem terrível, sangrenta, dolorosa dos “ animais [que] baliam em conjunto, um balir plangente, de dor.”(p.21)
"Os animais estavam exaustos, alguns agora doentes. Era um rebanho que nunca mais acabava. Os animais metiam pena, a arrastar-se na estrada. Não suportavam mais sofrimento." (p. 22) 
“Está tudo cheio de carneiros mortos pela estrada fora.” (p.26) 

Logo de início, percebemos que este rebanho é uma metáfora da guerra, aprendemo-lo pela voz de Clérestin, um habitante da aldeia, “E Clérestin pôs-se a olhar também para longe, para lá dos animais que passavam, como se visse presságios, terríveis profecias do que estava ainda para acontecer, profecias escritas com sangue e sofrimento que aquele rebanho anunciava, ali, diante deles, ao longo da estrada coberta de poeira.” (p.23) 

A mensagem é clara! Na guerra, tal como os animais, os homens exaustos, feridos, inúteis ficam para trás, abandonados! Sofrem, agonizam, morrem! Ninguém olha para trás e quem o fizer vai ficar com marcas, com traumas! 

Jean Giono descreve os horrores vividos nas trincheiras de forma crua e chocante em oposição à simplicidade, à beleza e aos sons da natureza. Através desta dicotomia, sempre presente ao longo da obra, o autor pretende mostrar o absurdo da guerra e realçar a vida, a esperança. É precisamente com esta mensagem que termina a obra. Uma criança nasce, filha de Olivier, um sobrevivente, e de Madeleine. 

"E antes de mais, digo-te: eis a noite, eis as árvores, eis os animais. Mais tarde verás a luz do dia. (...) terás oportunidade de amar (…), como alguém que cultiva a terra com a charrua (...). E amarás as estrelas.
(…) – Deixa, mulher, deixa. É preciso que lhe mostremos desde já o que é a esperança!” (p.220)


28 outubro, 2020

Uma aventura na biblioteca, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada

 


OPINIÃO

No âmbito de uma actividade escolar, voltei aos livros “Uma Aventura…”. Como em Outubro se assinala o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, optei pelo título “Uma aventura na biblioteca”. 
Foi um prazer enorme relembrar estas aventuras, envolvi-me de novo nas peripécias do grupo de protagonistas e temi que algo de grave lhes acontecesse (apesar de já saber que tudo se resolve, no fim). E com este entusiamo, dou por mim a observar atentamente os alunos que estão comigo, também eles, a ler “Uma aventura…”. Tristemente, percebo que apenas três ou quatro estão realmente motivados, que alguns manifestam um evidente enfado e que os restantes fingem completamente que estão a ler. 
É nesse momento que me assaltam as minhas memórias de meninice e o prazer que tive em ler todos os livros das colecções dos Cinco e dos Sete, de Enyd Blyton. Devorei-os todos.
Era mesmo um prazer enorme! Esperava ansiosamente que a carrinha da Gulbenkian voltasse para poder escolher mais livros. Belas recordações! Saudades desses tempos de felicidade! 
Mas voltando à realidade que é bem mais preocupante, que fazer perante a falta de empatia destes jovens em relação aos livros e à leitura? Por que é que ler tem de ser um aborrecimento? Resta-me insistir… insistir… tentar motivá-los! Pode ser que consiga conquistar um ou outro. Se tal acontecer, já não é mau! 



27 outubro, 2020

As Bicicletas em Setembro, de Baptista-Bastos

 


OPINIÃO

Há muito que não lia Baptista-Bastos. Lamentável! Não podemos adiar escritores que nos revelam uma escrita perfeita, coerente, poética. 
Neste livro, conhecemos Jesuina, “a mulher cheia de lágrimas”, e alguns jovens que acolhia em sua casa, as vizinhas, as intrigas próprias de um bairro de Lisboa, a inveja, a maledicência, a dor e a solidão. 

“A intriga e a má-lingua são o que há de mais engenhoso na vida. Caminham sem rumo, numa geometria confusa, nascidas do ócio e multiplicadas por uma espécie particular de ódio, de ciúme, de despeito.” (p. 50)

Num livro onde a imaginação e a memória se confundem, o leitor deixa-se facilmente conduzir pelas emoções, pelos lugares dos desejos, das desilusões, do sonho e da solidão. 
“ Ela [Jesuina] estremecia, emergia desse oceano antigo habitado por convulsas recordações, suspirava, permanecia largos momentos a recompor-se, reentrava na pobre realidade (…).” (p.22)

A metáfora das Bicicletas em Setembro reproduz magistralmente a efemeridade do tempo “fugitivo e eterno”, a revisitação a um passado que já só existe em recordações e a tentativa de sobreviver à saudade, à perda, à dor e à solidão.

“Sobre as nuvens em Setembro, que formavam círculos e pareciam rodas de bicicletas, quem me dera ir com elas, por esses céus fora, quem me dera.” (p.8) 


“Por detrás das cortinas das casas que já não há, ela vigia, observa as pessoas que por ali já não caminham, e olha para as nuvens que deixaram de ser rodas de bicicletas no céu.” (p.123)


21 outubro, 2020

Um Corpo na Biblioteca, de Agatha Christie

 


OPINIÃO


Gosto muito dos livros de Agatha Christie, mas confesso que este me desiludiu um pouco, primeiro porque o título induziu-me em erro, parti do princípio que a trama se desenvolveria numa biblioteca, ora, tal não acontece. Não posso afirmar que é um título enganador, porque não o é. O enredo, efectivamente, inicia aí com a descoberta de um corpo. Nada mais, tanto podia estar ali como noutra divisão qualquer. Segundo, porque a investigação é conduzida por inspectores locais. Miss Marple que é, no entanto, convidada a fazer a sua própria investigação é relegada para segundo plano, aparecendo esporadicamente. Este facto, anula um pouco, na minha opinião, o suspense e o desenvolvimento do seu raciocínio aos quais já nos habituou. Porém, é ela que desvenda o caso, facto que irrita os inspectores que mais uma vez concluem que “a velhinha com uma expressão doce de solteirona plácida e uma mente que vasculhou as profundezas da iniquidade humana e trata do assunto como se não fosse nada especial (…) que concerne a crimes, é o que há de melhor." 

Mas, considero que a mestria da autora no desenvolvimento do “enredo intrincado” continua bem presente. Ela é genial a apresentar pistas, a revelar factos muito plausíveis de incriminar cada uma das personagens. Como se previa, e não podia deixar de ser, é Miss Marple que, de forma surpreendente, revela o autor do crime. Brilhante! Tudo encaixa! Ela é mesmo a melhor! 




18 outubro, 2020

Memória de Elefante, de António Lobo Antunes

 


OPINIÃO


Memória de Elefante é a estreia de António Lobo Antunes como escritor. Já com um estilo muito próprio, mas ainda em formação, que requer uma leitura atenta e cuidada. Estamos perante a história de um homem, psiquiatra, que vive um momento conturbado da sua vida. 

O livro de carácter autobiográfico é perturbador pois concentra-se no protagonista, homem de meia-idade, divorciado, que vive um intenso conflito interior. A narrativa relata os acontecimentos de um dia de trabalho, mas incide sobretudo nos seus pensamentos, memórias, saudades (da mulher e dos filhos) e dúvidas existenciais. “Mas ele, ele, ELE quando é que se lixara?” (p.27). 

A solidão, a desilusão e a revolta são os sentimentos dominantes desta narrativa. O protagonista amargurado com a vida e consigo mesmo odeia tudo, o local onde trabalha, os colegas, os pacientes, a sociedade hipócrita.
Porém, no final, surge uma réstia de esperança ou será resignação?

“Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. (…) preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.” (p.188)

 


14 outubro, 2020

Isabel de Aragão - Entre o Céu e o Inferno, de Isabel Stilwell

 


OPINIÃO


É o primeiro livro que leio da autora. E posso afirmar que gostei, apesar de não ser leitora assídua de romances que narram a vida de reis ou rainhas. Considero que há sempre muita coscuvilhice e muita intriga. 
Sendo um romance histórico sobre Isabel de Aragão, a Rainha Santa Isabel, narra acontecimentos da nossa História com fidelidade. Tendo 527 páginas, poder-se-ia tornar num relato maçudo com tantas guerras e desavenças, com tantos filhos legítimos e bastardos, mas a escrita e a estrutura do romance (capítulos curtos) torna o relato vivo e interessante. Ficou claro o jogo político vigente na época entre os Reinos de Portugal, Aragão e Castela, provocando intrigas, guerras, mortes, ao longo de vários reinados. Mas há também momentos de imensa ternura entre mães e filhos; de cumplicidade entre o avô, D. Jaime I e “Rosinha” , entre Isabel e Vataça; de dor e angústia, de ódio e de morte; de intrigas e de acordos; de solidariedade e partilha entre Isabel e os seus doentes, pobres e desprotegidos. 
Porém, o que mais me agradou neste romance foi o destaque dado às mulheres, sobretudo à Rainha e a Vataça Lascaris. Duas mulheres fortes, inteligentes, decididas, amigas e aliadas. Raramente falharam e erraram, muitas vezes afastadas uma da outra pelas circunstâncias, por elas ditadas, conseguiram evitar ou diminuir desaires e agravos. 

“A melhor rosa de Aragão”, assim tratada pelo seu avô D. Jaime I, o Conquistador da Casa de Aragão, viveu “entre o céu e o inferno”, dividida entre o amor, a fé, a oração e as desavenças e confrontos, primeiro em Aragão e depois em Portugal. Foi uma vida inteira de planos, de estratégias, de intrigas para atenuar e resolver muitos dos conflitos provocados pelos seus familiares que “Como Caim e Abel” se digladiavam em busca de poder e de conquista de territórios


08 outubro, 2020

Louise Glück vence Prémio Nobel da Literatura 2020

 



A poeta norte-americana Louise Glück é a vencedora do Prémio Nobel da Literatura de 2020. O galardão foi-lhe atribuído pela sua “voz poética inconfundível que, com beleza austera, torna a existência individual universal”, justificou a Academia Sueca.

Louise Glück é a 16ª mulher a vencer o Nobel da Literatura desde a sua criação, em 1901, e uma das poucas norte-americanas a recebê-lo.

Louise Glück, de 77 anos, é uma das mais celebradas poetas norte-americanas. A escritora nasceu a 22 de abril de 1943, em Nova Iorque, e estreou-se no mundo da literatura em 1968, com a coletânea de poemas Firstborn, sendo desde logo apontada como uma das vozes mais fortes da nova geração de poetas dos Estados Unidos da América. Temas como a infância e vida familiar ou as relações estreias entre pais e irmãos destacaram-na de outros autores, e continuaram presentes na sua obra, constituída hoje por 12 volumes de poesia e alguns ensaios.



Paisagem/3

Nos fins do outono uma rapariga deitou fogo
a um trigal. O outono

fora muito seco; o campo
ardeu como palha.

Depois não sobrou nada.
Se o atravessávamos, não víamos nada.

Nada havia para colher, para cheirar.
Os cavalos não compreendem –

Onde está o campo, parecem dizer.
Como tu ou eu a perguntar
onde está a nossa casa.

Ninguém sabe responder-lhes.
Não sobra nada;
resta-nos esperar, a bem do lavrador,
que o seguro pague.

É como perder um ano de vida.
Em que perderias um ano da tua vida?

Mais tarde regressas ao velho lugar –
só restam cinzas: negrume e vazio.

Pensas: como pude viver aqui?

Mas na altura era diferente,
mesmo no último verão. A terra agia
como se nada de mal pudesse acontecer-lhe.

Um único fósforo foi quanto bastou.
Mas no momento certo – teve de ser no momento certo.

O campo crestado, seco –
a morte já a postos
por assim dizer.


07 outubro, 2020

A Biblioteca à Noite, de Alberto Manguel

 


OPINIÃO



Quem gosta de livros, de bibliotecas não pode deixar de ler este livro. É um livro bem estruturado, dividido em 15 capítulos e ilustrado com várias fotografias que complementam a informação dada pelo autor. 

Para criar e manter a sua biblioteca pessoal, múltiplas questões ( as mesmas de muitos bibliotecários) lhe foram surgindo. E é partindo da pergunta “Porque o fazemos, então?” (p.15) que Manguel nos explica por que razão ao longo dos tempos, desde a Antiguidade até ao presente, o homem vai reunindo livros em prateleiras e prateleiras. Respondendo a essa questão, o autor vai explanando o seu conhecimento e o seu fascínio pela história das bibliotecas. Das bibliotecas públicas e privadas; modernas, antigas, desaparecidas, míticas; de organização, de classificação, de democratização; de censura, de livros queimados, perdidos, roubados, proibidos, digitais, imaginados, lidos e não- lidos.

“Não tenho nenhum sentimento de culpa acerca dos livros que não li e que talvez nunca lerei; sei que os meus livros têm uma paciência sem limites. Esperarão por mim até ao fim dos meus dias.” (p. 218) 

Já percebemos, que para Manguel as bibliotecas não são meros espaços de armazenamento de livros. Se assim fosse, não precisaria de cerca de trezentas páginas para nos responder à questão inicial. Para ele, são espaços de cultura, de conhecimento, de informação que “espelham a identidade pluralista, vertiginosa e desafiante do país e dos tempos” (p.258) 

“Preservar e transmitir a memória, aprender através da experiência dos outros, partilhar conhecimento do mundo e de nós próprios são alguns dos poderes (e perigos) que os livros nos concedem, e as razões por que os estimamos tanto quanto os receamos. “ (p.227) 

Para terminar e vos motivar à leitura deste livro deixo-vos, futuro leitor, uma última citação:
“Todo o leitor é ou um andarilho que se detém ou um viajante que regressa.” (p. 260).

03 outubro, 2020

Astérix e Latraviata

 



OPINIÃO

Releio sempre as histórias de Astérix com imenso prazer. Divirto-me… delicio-me… é uma excelente terapia para aliviar o cansaço.



30 setembro, 2020

Morreu Quino, o criador de Mafalda (1932- 2020)

 


foto: http://www.correiodobrasil.com.br/morre-cartunista-quino-criador-fantastica-mafalda/


Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino, tinha 88 anos. Criou a personagem Mafalda nos anos 60.  Foi o “humorista gráfico mais internacional e mais traduzido da língua espanhola”, escreveu o El País. “Não há geração neste momento, em dezenas de países, que não chore a perda de um dos autores argentinos mais traduzidos, de par com Borges, Sabato e Cortázar”, acrescentou o diário argentino La Nación. “Que Mafalda ficou desconsoladamente órfã, é hoje o lugar-comum mais triste do mundo.”

Através da inconformada Mafalda, menina de seis anos da classe média argentina, fã dos Beatles e de panquecas, sempre avessa a comer sopa, Quino veiculou as suas angústias existenciais e críticas perante as injustiças sociais, recordou a Folha de S. Paulo. Mafalda preocupava-se com o rumo da humanidade e a paz no mundo. E o autor também.

Notícia completa in Observador

Um Longo Caminho, de Linda Sue Park




OPINIÃO


Um Longo Caminho é um livro baseado na vida de Salva Dut, um dos muitos Meninos Perdidos da segunda Guerra Civil do Sudão, em 1985. Paralelamente, há uma segunda história que ocorre em 2008, a de Nya, também ela sudanesa, também ela uma lutadora pela sobrevivência. As duas histórias cruzam-se no final. 
O relato é angustiante, doloroso, revelador das atrocidades cometidas naquele país. 
Com uma escrita simples, sensível e plena de subtilezas, a autora faz-nos perceber, nas entrelinhas, o sofrimento e o desespero de um povo. É a história de Salva, uma história de cerca de vinte anos, de tudo o que viveu, o que viu e o que sofreu desde que fugiu da sua aldeia para chegar ao campo de refugiados na Etiópia, primeiro, e depois no Quénia. Foram dias, meses anos de uma longa caminhada. 
“Sentiu-se como que à beira de um abismo enorme – um abismo cheio de desespero negro do nada.” (p.76)

Facilmente, este livro poderia enveredar pela descrição de actos violentos, de crueldade, porém, a autora opta por destacar a coragem, a vontade de vencer e a esperança. É uma verdadeira lição de vida. 

“Acima de tudo, lembrava-se do encorajamento que o tio lhe dera no deserto:
«- Um passo de cada vez… Um dia de cada vez. Só hoje – só temos de passar este dia…»

Salva disse isto de si para consigo todos os dias. Também o disse aos rapazes do grupo.
Um dia de cada vez, o grupo conseguiu chegar ao Quénia.
Chegaram a salvo mais de 1200 rapazes.
Demoraram um ano e meio. “ (p.86)




27 setembro, 2020

Rua de Paris em Dia de Chuva, de Isabel Rio Novo


OPINIÃO

Parti para a leitura deste livro com enormes expectativas. São muitos e convidativos os ingredientes que o compõem: a escrita da autora que muito aprecio; Paris (a “minha” cidade); Arte; Impressionismo… é uma viagem no tempo, é o regresso ao passado, mas sempre com um pé no presente. 
Adorei conhecer Gustave Caillebotte. Fiquei fascinada. O leitor é conduzido magistralmente pela vida e obra deste milionário, mecenas dos pintores impressionistas, seus contemporâneos, pintor vanguardista, colecionador de selos e de obras de arte, floricultor, velejador de regatas premiado, engenheiro e construtor naval. 

“Estamos, pois, em Paris, no inverno. Novembro ou início de dezembro [de 1877]. Gustave é um homem de estatura mediana, magro, de cabelo castanho-claro. (…). A Autora recorda estas coisas assim, como se as visse, porque na realidade as viu ou sente que as viu.” (p.12) 

A Autora, personagem do livro, vai cruzando a vida do biografado, inscrita nos factos históricos, sociais e culturais parisienses da época (Paris está em plena modernização sob o comando de Haussmann), com as suas recordações, pensamentos e intenções. 

“(…) a Autora tomou rapidamente uma decisão. Nada do que Helena afirmava [sobre Caillebotte] seria verdade. Ela, a Autora decidiria. “ (p.159) 

A intersecção das histórias recriadas é feita de forma sublime, com sensibilidade e paixão. “Era assim entre ela e Gustave Caillebotte” (p.16). Mas, não ficamos por aqui, para além desta intersecção constante ao longo da narrativa, há, ainda, uma outra ponta, uma outra personagem que também se cruza, com a Autora e de forma (in)directa com Caillebotte. Trata-se de Helena, a professora de História de Arte, especialista na vida e obra do pintor. Encontram-se várias vezes, num café em Paris. E apesar de ambas nutrirem uma paixão por Caillebotte, a relação entre as duas é tensa porque Helena enfrenta uma forte depressão. 

Ao longo do livro, a narradora revela-nos tudo sobre Gustave Caillebotte, apresenta-nos a sua família, elenca títulos de quadros pintados pelos artistas da época, descreve detalhadamente alguns dos quadros mais importantes do pintor e relata, ainda, as dificuldades pelas quais passaram os impressionistas e a incompreensão da sociedade perante esta nova maneira de representar a realidade. 

“Tentei, no fundo, mostrar-te o que vi. O que me tocava. O que me emocionava. Que pode ser a nossa passagem pelo mundo senão isso?” (p. 220). Refere Caillebotte sobre a sua pintura. 

Recomendo vivamente.


 

17 setembro, 2020

Início de mais um ano lectivo!

 


Pelo Sonho é que Vamos

"Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
Partimos. Vamos. Somos."


Sebastião da Gama


13 setembro, 2020

Uma Agulha no Palheiro, de J. D. Salinger


 OPINIÃO




Uma Agulha no Palheiro (primeira edição portuguesa) ou À Espera no Centeio (numa nova tradução) li-o há muito tempo e tenho memória de ter gostado muito. Na altura, também eu era uma adolescente e diverti-me com as peripécias de Holden Caulfield, jovem de dezassete anos com as hormonas em ebulição.
A história é narrada pelo próprio, após ser expulso de um colégio interno (não era a primeira vez que tal acontecia) e circunscreve-se a um espaço temporal de dois a três dias, no mês de dezembro, de 1949, e em vésperas de Natal. 
“Só vos falarei do que se passou comigo durante o passado Natal. (…) Quero começar exactamente pelo dia em que saí da Escola Secundária Pencey, em Agerstown, na Pensilvânia.” (pp. 9 e 10) 

Holden é um jovem aparentemente inseguro, instável, estranho pois achava tudo uma chatice, tão depressa gostava de uma coisa ou de uma pessoa como logo de seguida a odiava. Tomava decisões precipitadas, das quais se arrependia logo de as ter tomado. Devido a este seu temperamento estava constantemente metido em apuros. 

O leitor acompanha-o nas deambulações por Nova Iorque, nos seus pensamentos, nas suas aventuras. Holden é um rebelde sonhador que põe tudo e todos em causa e penso que seja por esta razão que os jovens gostam de o ler. É próprio da idade e Holden é, para eles, um herói. Todos se revêem nas atitudes do protagonista, todos rejubilam com a sua coragem ao rejeitar as regras que lhe impõem. 

Porém, e apesar desta sua rebeldia, ele é bastante inteligente pois de forma lúcida e sarcástica, acaba por se auto criticar bem como as pessoas que o rodeiam e com quem vai convivendo. Ele questiona-se constantemente e arrepende-se das suas veleidades. 
“ Sou um tipo cobardolas. Ando sempre a fingir.” (p. 107) 
" Sou um idiota chapado. Não podia tolerá-la, mas de repente senti-me tão apaixonado que não me importaria de me casar com ela. Garanto-vos que sou completamente parvo. E não me custa admitir que o sou." (p. 144) 

Outro aspecto que define o carácter de Holden é o amor e a admiração que nutre pelo seu irmão, que faleceu muito novo, (invoca-o muita vez) e pela sua irmã mais nova, Phoebe. 

Hoje, ao reler a história de Holden, o impacto não foi o mesmo. A rebeldia da adolescência já lá vai muito longe, pelo que recomendo a sua leitura sobretudo aos mais jovens.


06 setembro, 2020

Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo


OPINIÃO



Notre-Dame de Paris, retrata a sociedade parisiense do século XV. É um romance histórico que tem como cenário principal a Catedral de Notre Dame, local de oração, de recolhimento e de refúgio. A acção decorre no ano de 1482. Victor Hugo descreve-nos de forma magistral os costumes da época e a arquitectura gótica, que ele tanto apreciou e valorizou. Ao longo do romance, várias páginas são dedicadas à Catedral com descrições detalhadas quer do seu exterior quer do interior. 
É neste local, onde tudo acontece e onde todos se concentram, que vamos assistir aos acontecimentos da cidade e conviver com Esmeralda, a jovem cigana, muito bela, amada por muitos e discriminada por outros; Quasímodo, homem disforme, desprezado por todos, sineiro da catedral; Claude Frollo, arquidiácono, que adopta Quasímodo quando abandonado à porta da catedral e Phoebus, capitão da guarda real. 

Estamos perante uma obra riquíssima em termos literários, históricos e estéticos. Victor Hugo ataca fortemente o clero abusivo e autoritário, critica o estado e a burguesia que vivem alheios à miséria do povo e à destruição de edifícios marcantes. Victor Hugo constrói a sua narrativa com base em dualidades. Ele põe em evidência a oposição entre a opulência e a miséria, o belo e o grotesco, o cómico e o horror.