30 junho, 2023

Ausência!

 


Bill Brandt e Henri Cartier-Bresson - Fondation Henri Cartier-Bresson


Saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;

e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;

tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,

e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.


Nuno Júdice



29 junho, 2023

O mar dos meus olhos

 


O mar dos meus olhos


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética



27 junho, 2023

Silêncios !





Na tua ausência
converso
contigo,
na tua presença
converso comigo.

Hesitante
estou numa encruzilhada,
o único caminho que conheço
é o caminho de volta.

O aroma das nozes
a fragrância do jasmim
o aroma da chuva sobre a terra.

Aos olhos dos pássaros
o ocidente
é onde o sol se põe
e o oriente
onde o sol nasce,
apenas isso.

Uma mulher de cabelos brancos
observa as flores da cerejeira:
Haveria chegado a primavera da minha velhice?

A abelha
permanece indecisa
entre milhares de flores de cereja

Brotou
floresceu
murchou
caiu
nem sequer uma pessoa a viu

A aranha
deixa os seus afazeres
por um instante
ante o espetáculo do alvorecer

Uma monja
acaricia
um tecido de seda:
Será adequado a um hábito?

Perdoai e esquecei
as minhas culpas
mas não de modo
que eu as esqueça completamente.


Abbas Kiarostami

26 junho, 2023

𝑨 𝒇𝒍𝒐𝒓 𝒆 𝒐 𝒑𝒆𝒊𝒙𝒆, de Afonso Cruz

 


Autor: Afonso Cruz
Título: A flor e o peixe
N.º de páginas: 87
Editora: Companhia da Letras
Edição: Dezembro 2022
Classificação: Fábula
N.º de Registo: (3413)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A Flor e o Peixe é uma fábula poética inspirada em dois contos de José Saramago”, lê-se na sinopse do livro.

Para quem conhece bem os dois contos do autor nobilizado, O Silêncio da Água e A Maior Flor do Mundo e quem aprecia a escrita de Afonso Cruz, esta frase é o mote desencadeador de uma leitura obrigatória, colocando as expectativas num patamar elevadíssimo.

Obviamente que não saí defraudada. A mensagem de Saramago permanece, conduzida de forma irrepreensível pela escrita e pelas ilustrações de Afonso Cruz.
As palavras e os desenhos completam-se. O contraste do vermelho, preto e branco, de influência oriental (tão ao gosto do autor) é deslumbrante.
A estrutura narrativa entrelaça-se, obriga o leitor a absorver e a olhar o conjunto; impõe-lhe o silêncio “de admiração”, da compreensão da mensagem poética; força-o a questionar-se sobre “a impermanência de tudo, a efemeridade, a indecisão da vida” (p. 30), sobre a morte; transporta-o para um plano metafórico onde a serpente e a aranha tecem reflexões sobre o silêncio, “Há silêncios de muitas espécies, diz a serpente, há-os confortáveis e desconfortáveis, há silêncios que nos são impostos, há silêncios que são barulhos, como a tempestade e o canto das cigarras, e silêncios de admiração, em que se fica sem palavras. “ (pp. 18 e 19); sobre as transformações, os desencontros, os sonhos, o tempo, o espaço, a vida, “Se arrancamos uma flor, diz a serpente, e a pusermos numa jarra, não somos donos dela, mas do seu cadáver, porque já não existe flor, existe apenas a sua imagem, um fantasma que persiste durante uns dias, um fantasma teimoso. (…) Não se apanha um peixe. Apanha-se o resto de um peixe, o que sobra da vida.” (pp. 21 e 22); sobre a beleza, a partilha “ O que é valioso torna-se ainda mais valioso quando é partilhado. Mas
por vezes, a generosidade é uma teia onde se apanham equívocos,
por vezes, a bondade gera nós.
Por vezes, a bondade é um rio. “ (p. 85)

Em conclusão, a narrativa parecendo simples, revela uma profundidade e um grande saber; demonstra a necessidade de viver em concórdia, em simbiose com a natureza; apela à urgência do entendimento, da unidade, da felicidade. O menino e a menina, encontram a beleza da vida “num peixe que não se deixa apanhar e numa flor cheia de sede”. É nos desencontros entre a montanha e o rio que vão descobrir “ a complexa teia que conduz o destino.”

Afonso Cruz oferece-nos um livro maravilhoso que, na minha opinião, só será devidamente compreendido se as palavras e os desenhos forem simultaneamente absorvidos e de preferência no silêncio.


18 junho, 2023

Sines vive Al Berto

 Trata-se de uma performance literária / uma apresentação que contou com a contribuição de várias pessoas da comunidade de Sines, a convite da CMS / CAS, a partir da obra Mar-de-Leva, de Al Berto.

 

7

a noite chega-me irrequieta de cíclicos ventos, cintilam peixes pelas paredes do quarto
durmo sobre as águas e tenho medo
encolho-me no leito estreito, no fundo dele, onde o linho já não fulgura
queda a queda, voo

... não consigo dormir com esta ferida
as máquinas sussurram, trepam pelas paredes, escancaram portas, invadem a casa, ocupam os sonhos
sirenes, alarmes lancinantes, cremalheiras da noite ressoando no limite do corpo

levanto-me e saio para a rua
caminho na chuva adocicada da manhã, as pedras acendem-se por dentro, reconhecem-me...
uma voz líquida arrasta-se no interior dos meus passos, ecoa pelos recantos ainda vivos do teu corpo...

... em ti acostam os barcos e a sombra dos grandes navios do mundo
vive o peixe, agitam-se algas e medusas de mil desejos
... em ti descansam os pássaros chegados doutras rotas
secam as redes, põe-se o sol
... em ti se abandona a ressaca das ondas e o sal dos meus olhos
as árvores inclinadas, os frutos e as dunas
... em ti pernoita a seiva cansada de palavras, o suco das ervas e o açúcar transparente das camarinhas
... em ti cresce o precioso silêncio, as ostras doentes e as pérolas dos mares sem rumo
... em ti se perdem os ventos, a solidão do mar e este demorado lamento

Al Berto

17 junho, 2023

𝑼𝒎 𝑪ã𝒐 𝒏𝒐 𝑴𝒆𝒊𝒐 𝒅𝒐 𝑪𝒂𝒎𝒊𝒏𝒉𝒐, de Isabela Figueiredo

 

Autora: Isabela Figueiredo
Título: Um Cão no Meio do Caminho
N.º de páginas: 292
Editora: Caminho
Edição (2.ª): Fevereiro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3428)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Isabela Figueiredo revela-se exímia em narrar histórias de vida que, aparentemente, e numa primeira abordagem, nada de relevante teriam para nos oferecer. Contudo, através de uma escrita sensível e de uma estrutura interessante, ela eleva a narrativa e enobrece as personagens, construindo uma história emotiva e cativante.

Neste livro conta-nos a história de José Viriato e de Beatriz, vizinhos que inevitavelmente acabarão por confrontar uma existência de encontros, de conflitos, de entre-ajuda. Ele é uma personagem fabulosa que na sua opção de vida perpassa uma voraz sensação de liberdade. Ela é uma amontoadora de bens e de recordações. Ele, atenta às miudezas; contempla o banal; vê beleza em tudo. Ela, espia o vizinho; foge de um passado; carrega uma culpa; vive rodeada de caixas e isolada de tudo. Ele, tem uma paixão por animais, sobretudo por cães. Ela, odeia e teme animais, sobretudo cães. Ele e ela, carregados de histórias tristes e complicadas; desamparados, levam uma vida de solidão.

A autora, numa espécie de epígrafe que intitulou “nota sobre fruta feia”, dá-nos, desde logo, o mote do seu livro:
“Não há vidas melhores do que outras. As maçãs da mesma árvore crescem com diversas formas e tamanhos. Algumas crescem aleijadas. Os sabores da maçã mais bonita e o da maçã aleijada são iguais.”
É evidente que Isabela Figueiredo prefere “as maças aleijadas”, são elas que a alimentam na sua escrita e a conduzem na tessitura da sua narrativa. São elas que extasiam o leitor que vai descobrindo aos poucos as arestas a limar, os poros de onde emanam pequenas partículas impalpáveis de medo, de dor, de culpa, de redenção e por vezes de amor.

Gosto da maneira como a autora trata os seus temas. Simples e sóbria; emotiva e poética; inebriante e arrebatadora. O leitor sente a urgência de uma leitura ávida, na ânsia de descortinar quem são estes seres a quem o capitalismo, a sociedade consumista, votou ao abandono, a quem a política atribuiu falsas esperanças, a quem as pedras se atravessaram no caminho, mas também e, sobretudo, a desvendar “as bengalas que ajudam as pessoas a caminhar sem se magoarem.” No final, percebemos e aceitamos “que ninguém entra na nossa vida por acaso.” E esse ninguém tanto pode ser uma animal como uma pessoa.

Recomendo a leitura para descobrirem quem foi o "intruso" da vida de José Viriato.


16 junho, 2023

Inquietação !

 



Eles voltaram, com o rumor da chuva aquecem as mãos.
Aos lábios de pouca idade volta o sorriso extraviado.
A verdade é que nunca soube o nome dessa flor
que nalguns olhos abre logo de madrugada.
Agora para saber é tarde.
O que sei é que mesmo no sono
há um rumor que não dorme,
um jeito da luz pousar, um rasto de lágrima acesa
É sobre o meu corpo que chove.


Eugénio de Andrade, in Branco no branco



13 junho, 2023

Recordar Al Berto

 




foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos


estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição


os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida


e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

Al Berto, o livro dos regressos


11 junho, 2023

𝑩𝒊𝒃𝒍𝒊𝒐𝒕𝒆𝒄𝒂 𝑷𝒆𝒔𝒔𝒐𝒂𝒍, de Jorge Luís Borges

 


Autor: Jorge Luís Borges
Título: Biblioteca Pessoal
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
N.º de páginas: 155
Editora: Quetzal
Edição: Janeiro 2023
Classificação: Textos biográficos
N.º de Registo: (3465)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Borges sempre imaginou “o paraíso como uma biblioteca” (e eu também), sempre foi um amante da leitura e sempre desempenhou as funções de bibliotecário, pelo que não se coíbe de afirmar no seu prólogo “Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler(…) penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor. ”

Borges é considerado, por muitos, uma autoridade no vasto mundo da literatura. Em 1985, solicitaram-lhe que selecionasse cem obras que reflectissem os seus gostos literários e que escrevesse um prólogo para cada uma delas. Não concluiu a tarefa por ter falecido, contudo ainda nos legou 64 textos. São estes textos que integram este livro Biblioteca Pessoal. Ainda, no seu prólogo Borges escreveu «Ao longo do tempo, a nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, ou de páginas cuja leitura foi uma felicidade para nós e que gostaríamos de partilhar. Os textos dessa biblioteca íntima não são forçosamente famosos.[…] Esta série de livros heterogéneos é, repito, uma biblioteca de preferências”.

A organização das obras sugeridas não segue nenhuma ordem específica. Se temos autores famosos como Cortázar, Kafka, Stevenson, Poe, Dostoiévski, Melville, Wilde, Flaubert, James, Ibsen, Buzatti, Gide, Conrad, Hesse, Voltaire, Rulfo, entre muitos outros que não vou citar por se tornar uma lista exaustiva (recomendo a leitura do livro) e que não estranhamos que integrem esta biblioteca pessoal, outros há, menos conhecidos, pelo menos por mim, como Papini, Machen, Eliano, Phillpottsos, Meyrink, Beckford, Serna, Garnett, também entre outros. Borges não excluiu a literatura portuguesa da sua lista e citou O Mandarim, de Eça de Queirós. A lista, bastante heterogénea, é selectiva e reflecte bem, penso eu, o seu apurado gosto pela literatura, sem deixar de surpreender, pois nem sempre as obras mais óbvias e mais conhecidas dos autores são as citadas.

Os textos (breves biografias) que escreve para cada autor são curtos e concisos, não ultrapassa as duas páginas. Todo este poder de síntese é extraordinário. Borges consegue, com mestria apresentar o escritor, a época e uma ou mais (por vezes) obras que ele considera maiores. Nada está a mais, pelo contrário, a beleza da sua escrita incute no leitor o prazer da leitura e a vontade de descobrir novos livros e novos autores.

Termino, com a frase final do próprio Borges, no seu prólogo “Oxalá que sejas o leitor que este livro aguardava.”
Só a leitura do seu prólogo é uma autêntica preciosidade. E tal como Borges, desejo que venhas a ser um leitor desta pequena obra-prima.


07 junho, 2023

Eu, eu mesmo



Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar.—
Eu...

Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...

Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...

Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...


Álvaro de Campos