30 dezembro, 2022

Votos para 2023

                                                                             Foto Filipe Miguel 


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis 


29 dezembro, 2022

𝑨𝒔 𝑫𝒐𝒆𝒏ç𝒂𝒔 𝒅𝒐 𝑩𝒓𝒂𝒔𝒊𝒍, de Valter Hugo Mãe

 


Autor: Valter Hugo Mãe
Título: As Doenças do Brasil
N.º de páginas: 273
Editora: Porto Editora
Edição: Setembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3320)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


VHM refere na sua epígrafe que retirou o título As doenças do Brasil de um excerto do “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, de Padre António Vieira (“Esta foi a origem do pecado original e esta é a causa causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde.”).

Neste longo poema, como o próprio autor o classificou nas notas de autor, VHM transporta-nos para a comunidade imaginária dos abaetés, como povo originário do Brasil, relata-nos a sua cultura, língua, educação, crenças e costumes e dá-nos a conhecer o passado colonial dos brancos e o seu impacto no presente.
Transparecem neste texto a emotividade e a sensibilidade do autor quer através da escrita poética quer através da caracterização do povo indígena. Abaeté significa “pessoa gentil” e é gentileza, cumplicidade, piedade, generosidade, mas também ingenuidade que encontramos no “povo dos três mares”. Também percebemos como a questão racial, o domínio do homem branco sobre os povos indígenas e negros perturba o autor (“O negro era um animal domesticado pelo branco.”). A referência à língua branca que fede e apodrece na boca é uma constante:
“E seu bafo fedeu muito entre todos. (…) é a língua branca. A língua e o fedor da língua branca, a palavra que apodrece na boca e apodrece a boca.” (p. 105)

A acção centra-se no caso de um jovem abaeté, Honra, que vive o drama de ser o fruto da violação de Boa de Espanto, uma “feminina”, por um homem branco. Honra não se conforma, vive revoltado e promete matar o branco, o inimigo. Honra, o guerreiro feio, sente-se indigno, ferido de morte e não aceita ter herdado a cor do homem branco, da “fera branca”.
“ sagrado Pai Todo, sou branco. Sei agora e não sei como não o via mesmo que vendo. Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. Sou uma possessão. Um espírito baixado sobre minha dignidade abaeté. Sou um bicho como nenhum outro da mata. Um inimigo menos semelhante. Um excremento do branco no ventre de minha mãe. Sou a morte, sagrado Pai Todo.” (p. 33)

Honra, bem aceite pelo seu povo e educado segundo os preceitos abaeté, só começou a aceitar a sua condição quando encontrou, na mata, um negro a quem deram o nome de Meio da Noite, ainda mais desafortunado e a quem se afeiçoou, primeiro porque recebeu ordem de lhe dar uma “educação abaeté” e depois porque nasceu entre os dois “feios” uma enorme cumplicidade que não vou desvendar.
“Um pouco depois, no silêncio profundo da maloca, comovido, Meio da Noite pressentiu que Honra não dormia e isso lho perguntou. O guerreiro branco respondeu:
penso. Não consigo parar de pensar.
E o negro entoou:
sagrado Honra, se entendi o que aconteceu, se por sorte me salvaram, quero que saibas que estou grato. Sou grato. Fujo sozinho mas sou testemunha de milhares. Ei vi milhares. A minha vida é a prova de que existiram, existem, e a minha voz será sempre uma pertença deles também.
O branco perguntou:
o que significas com isso.
E o negro respondeu:
obrigado, sagrado Honra. A minha vida dignifica meu pai, minha mãe, meus avós, meus irmãos, meus povos.
Honra perguntou:
estás a chorar, animal negro.
E o negro entoou:
sim.
Então, Honra chorou também. As feras eram incapazes de chorar. No sol seguinte, até estupefacto, o guerreiro branco foi declarar ao pajé que o negro era alguém. Entoou:
é alguém sagrado Pai Todo, intuí seu espírito. Eu intuí. (pág. 118).

Em conclusão, a narrativa poética criada pelo autor não foge muito à realidade histórica. O “colector de palavras” concebeu um poema a partir do seu fascínio pelos povos originários, escrito com o assombro e a violência de uma realidade que pretende manter viva, como lhe disse o cacique dos Anacés: “vá, e diga ao seu povo branco que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para os receber como amigos. Ensine ao seu povo que somos amigos.” (p. 266). E VHM cumpriu na perfeição.
Recomendo vivamente!



Fundão II

 









20 dezembro, 2022

𝑶 𝒆𝒏𝒊𝒈𝒎𝒂 𝒅𝒂𝒔 𝒄𝒂𝒓𝒕𝒂𝒔 𝒂𝒏ó𝒏𝒊𝒎𝒂𝒔, de Agatha Christie

 

Autora: Agatha Christie
Título: O enigma das cartas anónimas
Tradutora: Arminda Pereira
N.º de páginas: 191
Editora: ASA
Edição: Novembro 2001
Classificação: Policial
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐



Neste policial, Agatha Christie transporta-nos para a pequena aldeia de Lymstock, lugar aparentemente sossegado, mas que ao longo da narrativa se vai tornando num local de intrigas, de mexericos, de segredos, de cartas anónimas e de mortes. Jerry, o narrador, vai relatando os acontecimentos e vai acompanhando a investigação dos mistérios que ocorrem na pacata aldeia.
Sempre gostei da escrita de Agatha Christie, da forma como desenvolve a sua narrativa com personagens fabulosas e cenários enigmáticos; da apresentação dos crimes e da (des)construção da investigação que no final surpreende sempre o leitor.
Contudo, neste livro, o aparecimento tardio de Miss Marple, tornou o processo da investigação menos cativante. A perspicácia e a astucia da eterna bisbilhoteira que mexe e remexe nos casos não foram, na minha opinião, devidamente exploradas. O final é-nos revelado de forma vaga. Percebemos como Miss Marple desvendou o mistério, mas faltou o entusiasmo da investigação.



19 dezembro, 2022

𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂, de Jon Fosse

Autor: Jon Fosse
Título: trilogia
Tradutora: Liliete Martins
N.º de páginas: 204
Editora: Cavalo de ferro
Edição (3.ª): Fevereiro 2022
Classificação: Novelas
N.º de Registo: (3357)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Trilogia requer, de início, um enorme esforço de concentração para aceitar a escrita de Jon Fosse e não desistir. Quase sem sinais de pontuação e com repetições exaustivas de frases, de falas, de verbos introdutores de discurso (“diz ele”), o texto torna-se, por vezes, insólito. Mas o que se estranha, no início, após algumas páginas, acaba por se entranhar e apreciar. E a partir daí, o leitor não mais quer parar. É a escrita simples e a melodia das frases provocada pelas repetições e pelas pausas inerentes ao diálogo que cativam e agarram o leitor.

Composto por três novelas, e apesar da distância temporal entre elas, as personagens mantêm-se sobretudo através da evocação constante e repetitiva de lugares, de pessoas e de acções. O passado, o presente e o futuro enleiam-se e tropeçam em enredos impossíveis, em ilusões, em sonhos, em memórias.
A primeira novela inicia com um jovem casal que, obrigado a sair da sua aldeia, vagueia ao frio e à chuva, na escuridão de uma cidade à procura de um abrigo. Ao longo desta trilogia, percorremos os mesmos caminhos de Asle e Alida, compreendemos a dificuldade de sobrevivência numa sociedade hostil, o desamparo de ser rejeitado e incompreendido por todos, e aplaudimos o amor existente entre os dois jovens que acaba por justificar os erros cometidos. Afinal, se segundo a sinopse, estamos perante uma “parábola de inspiração bíblica sobre o amor, o crime, o castigo e a redenção”, então tudo fará sentido num mundo dividido entre o Bem e o Mal.
Destaco a terceira novela pela beleza e sensibilidade da escrita na descrição das emoções de Alida. O seu amor por Ales mantém-se imutável e eterno mesmo para além da morte.
“ (…) e Alida acredita que ela e Asle ainda são um casal de namorados e estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida e olha na direção do mar e do céu, e vê Asle, vê que o céu é Asle, e sente o vento, e o vento é Asle, ele está ali, ele é o vento, mesmo que ele não exista, ainda continua ali presente, (…)” p. 183

12 dezembro, 2022

𝑶 𝑪𝒐𝒏𝒗𝒊𝒅𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒅𝒆 𝑷𝒊𝒓𝒊𝒍𝒂𝒎𝒑𝒐𝒔, de Ondjaki

 

Autor: Ondjaki
Título: O Convidador de Pirilampos
Ilustrador: António Jorge Gonçalves
N.º de páginas: 72
Editora: Caminho
Edição: Janeiro 2017
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (2999)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A conjugação da escrita poética e criativa de Ondjaki e a beleza do traço e das cores de António Jorge Gonçalves torna este livro numa autêntica maravilha.
“Em noites de lua nova, quando o céu finge estar só vestido de nudez, brilham penduradas as estrelas, pequenas e belas.
E na Floresta Grande?
Bem, na Floresta Grande brilham os pirilampos cintilantes.”

É a segunda obra que leio resultando do trabalho colaborativo destes dois criadores. E é engraçado que neste livro encontrei ecos do primeiro - Uma Escuridão Bonita - (livro encantador e que também recomendo), quer através da escuridão, da noite, quer mesmo pela referência ao título numa fala do menino dirigida ao avô “ – Avô, deixa te mostrar como uma escuridão pode ficar bem bonita.”

A história centra-se num menino muito curioso que tem medo do escuro e que gosta de ler o brilho dos pirilampos e de comunicar com eles, que gosta de passear na Floresta, de “cientistar” e de conversar com o seu avô sobre os seus inventos e “cientistações”.
“- Pensei que todos os pirilampos pudessem brilhar, mas nunca soube que eles comunicavam.
- Ah, mas é porque eu já cientistei os pirilampos muitas vezes.
- Já quê?
- Já cientistei… Cientistar é o que nós, os cientistas e inventores, fazemos.
Cientistamos as coisas, os animais, e alguns até cientistam o mundo. Não sabias, avô?
Não, mas gosto de aprender.”

A cumplicidade entre o avô e o menino permite criar uma bonita e educativa história de descobertas da natureza e da ciência e abordar temas como a liberdade, a confiança, a superação do medo e a sabedoria dos idosos na voz dos pirivelhos (“pirilampos apagados”) que contam histórias aos pirilampos.
“ Temos de voltar. O brilho dos pirilampos não vem da força dos corpos. Vem da força das estórias. E são os pirivelhos que as contam.”

Adorei. Recomendo.

11 dezembro, 2022

𝑽𝒊𝒔𝒕𝒂 𝑪𝒉𝒊𝒏𝒆𝒔𝒂, de Tatiana Salem Levy

 

Autora: Tatiana Salem Levy
Título: Vista Chinesa
N.º de páginas: 122
Editora: 20|20 - Elsinore
Edição: Agosto 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3334)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Que livro! Que história! Que coragem! A da escritora, Tatiana Salem Levy, que narra a história de uma amiga muito próxima, vítima de violação. A da amiga, Joana Jabace, que ousou relatar, descrever o sucedido, o horror; que permitiu que as feridas ainda tão vivas na sua mente, no seu corpo fossem de novo e, mais uma vez, abertas; que fez questão de revelar a sua identidade.

A autora sublinha, no final, que se trata de um romance baseado numa história real. Este facto não suaviza a leitura, apenas nos dá a possibilidade de imaginar que o acto de violação, o crime, porque se trata de um crime, não tenha sido tão cruel, tão violento e que as marcas corporais e psicológicas não sejam tão profundas e traumatizantes. Pura ilusão! Percebemos, de imediato, que a personagem está marcada para a vida.
“(…) aquela terça-feira na mata ficou cravada não só na alma, como eu achei que fosse acontecer. Ficou impressa no corpo. Está tudo escrito na minha pele, sei que está, tudo o que aconteceu, até os detalhes que eu disse que tinha contado para a polícia, mas não contei, porque nunca se conta tudo, há sempre uma parte que falta.” (p. 51)

Tatiana Salem Levy não foge à cruel realidade. Apresenta-nos um testemunho intenso, duríssimo de uma luta individual pela superação de um acto horrível, pela aceitação de um corpo mutilado, pelas vivências inerentes à investigação policial, pela dolorosa integração na família e na sociedade.
A narração, sob forma de carta que a protagonista escreve aos filhos, não é linear, ocorre por camadas, por memórias, por fragmentos, por momentos do presente, por expectativas de um futuro melhor.
“Pensando melhor, não é bem uma carta. É mais um testemunho. Um testemunho, não. O testamento que eu não quero deixar para vocês.” (p. 43)

A autora foca-se nos detalhes. Cirurgicamente, narra o indizível; descreve a dor como se fosse sua, visceral; explora o corpo magoado e mutilado; desmonta a consciência traumatizada; enfrenta a luta pela superação do medo, do mal, da escuridão, mas também da vida, do seu amor de mulher e de mãe de dois filhos, da esperança.
“Cada vez que alguém acreditava ter encontrado a minha salvação, eu podia ver o sorriso nos seus olhos. E era essa aminha meta, esse o sentido que não me deixava afundar no sofá.” (p. 55)

O leitor, sem fôlego, sente a dor, a revolta, a rejeição do corpo, vive as agressões, as angústias, participa nos depoimentos, no reconhecimento do agressor, nas sessões de terapia e acompanha a recuperação lenta, muito lenta.
O leitor horrorizado pela maldade humana deixa-se envolver nos detalhes da história, deixa de respirar e dilacerado anseia pela superação, pela recuperação desta mulher, de todas as mulheres vítimas de violação.

LEIAM! Merece ser lido!



10 dezembro, 2022

Saber o que és

 

Foto minha


Saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;

e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;

tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,

e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.

Nuno Júdice


04 dezembro, 2022

𝑼𝒎𝒂 𝑪𝒂𝒔𝒂 𝒏𝒐 𝑭𝒊𝒎 𝒅𝒐 𝑴𝒖𝒏𝒅𝒐, de Michael Cunningham

 

Autor: Michael Cunningham
Título: Uma Casa no Fim do Mundo
Tradutor: Rui Pires Cabral
N.º de páginas: 363
Editora: Gradiva
Edição (4.ª): Outubro 2003
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3326)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Publicada em 1990, a narrativa situa-se nas décadas de 1960 a 1980. Com imensas referências musicais e cinematográficas, retrata as relações complexas de três amigos que tentam viver juntos, formando uma família pouco convencional. A narrativa foca-se nos problemas da vida familiar, nas dúvidas dos jovens, da vida adulta, no envelhecimento e na perda, mas também na amizade, no amor e ainda no desenvolvimento da SIDA na comunidade homossexual.

Narrada a quatro vozes, de forma alternada, a narrativa desenrola-se à volta das vidas de Jonathan e Bobby, amigos de infância, inseparáveis, que desenvolvem uma relação obsessiva apenas quebrada quando um deles vai para a universidade. Contudo, a relação é retomada mais tarde e alargada a Clare com quem formarão um singular triângulo amoroso.

“Bobby e eu [Clare], Jonathan e eu, o nosso amor e amizade misturados, a desequilibrada família que tínhamos tentado construir – tudo isso me parecera no dia anterior mais um disparatado episódio da minha vida.” (p.251)

Trata-se de um livro forte, sensível, inquietante, muito bem escrito. O autor escreve sem pressa, com precisão e com afeição, preocupado em dar resposta às fragilidades, às incertezas, às inquietações que assolam as personagens ao longo da narrativa e que, provavelmente serão as suas, já que o romance está na primeira pessoa. Fica claro que este livro se centra muito nas opções de vida de cada um. Marcadas por alegrias, tristezas, angústias, decepções, fugas, todas deixam “pegadas” na complexa caminhada da vida e do relacionamento humano.

É uma leitura reveladora, intimista e emocionante. Gostei da abordagem ao tema, da forma como nos apresenta a fragilidade do ser humano, as suas dúvidas, os seus pensamentos, as suas contradições, necessidades e interesses. No livro, os quatro narradores têm tempo e espaço para exporem as suas histórias, as suas visões do mundo, as suas ambições e sonhos, ou então permanecerem inertes, mergulhados nos seus pensamentos, nos seus silêncios.


24 novembro, 2022

𝑨𝒏𝒂, de Maria Teresa Horta

 




Autora: Maria Teresa Horta
Título: Ana
N.º de páginas: 57
Editora: Futura
Edição: 1974
Classificação: Prosa
N.º de Registo: (3322)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Ana sublinha a urgência de escrever da sua autora e o desejo centrado na mulher. Escrito em prosa é um texto fragmentado, anacrónico porque avança ao ritmo de memórias, repetitivo para acentuar a posição da mulher na sociedade. É um texto pautado na submissão da mulher perante a voz inquiridora e inquisidora do homem, que vive em “clausura”, na mulher que aceita o seu destino: “mulher de pertença e objecto, floreira ou aceite dos outros, decoro.” (p.20)
O discurso feminista pela luta da liberdade a que a autora já nos habituou, realça neste livro, o desejo centrado no corpo da mulher, o silêncio que separa o homem e a mulher, a distância que se vai cavando ao longo do “manso perfurar do tempo” . Assim, a autora faz da sua escrita uma arma contra a diferença, a opressão, em defesa da mulher e dos seus pontos de vista, a favor da liberdade corporal e sexual, da identidade própria, sem a interdição moral imposta à mulher.


22 novembro, 2022

𝑻𝒓𝒂𝒃𝒂𝒍𝒉𝒐𝒔 𝒅𝒐 𝑶𝒍𝒉𝒂𝒓, de Al Berto

 


Autor: Al Berto
Título: Trabalhos do Olhar
N.º de páginas: 78
Editora: Contexto
Edição: Novembro 1982
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (2787)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Revisitar a escrita de Al Berto é uma constante e uma necessidade quer por questões profissionais quer pessoais.

Trabalhos do Olhar estabelece uma relação entre a arte e a vida em que o “olhar” é o regulador da sociedade, da cultura, do poder, da ficção; um “olhar” límpido, atento, explicitamente homossexual que pretende subverter as normas instituídas; um “olhar” que transmite o desejo como matéria-prima da escrita, da sua escrita.
Al Berto usa uma linguagem homoerótica, apropria-se de topos da narrativa de sedução, de engate, de voyeurismo como, por exemplo, em “Truque do gato” (p. 29); o “olhar felino” que almeja o outro, o rapaz:
“(…)
espio o anoitecer, por trás das inexistentes cortinas
apercebo o rapaz com a silhueta do gato morto
junto ao peito, o meu olhar tornou-se felino
sorrio à minha ficção quotidiana
pego num lápis e recomeço a escrever”

É a escrita que alimenta Al Berto, que o mantém vivo, que o liga ao mundo por onde viaja “sem rumo”, que lhe acalenta o desejo, que lhe aviva as memórias que subtrai do “papel fotográfico” e que lhe permite todos os “Trabalhos do Olhar”, bem como revelar “escrevo-te a sentir tudo isto” e “não tenho medo de morrer aqui” . Estas revelações provocam no poeta a necessidade absoluta de escrever entre os silêncios onde se estabelece o caos do passar dos dias e onde se encontram as palavras, as imagens, as fotografias que acabam por restabelecer a ordem.

Al Berto escreve sobre sentimentos, sobre corpo(s), sobre memória, sobre solidão e morte, sobre o mar, a noite, a natureza e o cheiro das cidades costeiras, sobre feridas, sobre a escrita
“(…)
a escrita é um marulhar incessante
imito a paisagem como se te imitasse, ou escrevesse
teu corpo dilui-se nos ossos da página, contamina as cartilagens das sílabas
resta-me o fingimento sibilante das palavras
caminho pelo interior das dunas, apago o rasto de tinta acetinada, sou terra num texto onde não encontro água
só noite e um rumor imperceptível no coração
mais nada” (p. 19)

Recomendo! Muito!

21 novembro, 2022

𝑶 𝑨𝒏𝒐 𝒅𝒂 𝑫𝒂𝒏ç𝒂𝒓𝒊𝒏𝒂, de Carla M. Soares

 


Autora: Carla M. Soares
Título: O Ano da Dançarina
N.º de páginas: 389
Editora: Marcador
Edição: Abril 2017
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: (3361)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐ 


O Ano da Dançarina é a minha estreia com Carla M. Soares. Já tinha lido várias opiniões positivas sobre os seus livros e decidi-me por este, tendo em conta os temas abordados que, apesar da diferença temporal, considero muito actuais.

A acção decorre no ano de 1918, primeiro em França, durante a Primeira Guerra Mundial e depois em Lisboa. Aí acompanharemos as movimentações da família Lopes Moreira, as políticas de Sidónio Pais e a devastação provocada pela gripe espanhola.

Gostei da escrita cuidada e fluida e da forma como os dados históricos se integram na acção. A pesquisa intensa e cuidada realizada pela autora enobreceu a narrativa pois os factos históricos e a ficção cruzam-se na perfeição. As personagens bem construídas e interessantes psicologicamente encaixam com mestria no tempo histórico e nos vários espaços. Na minha opinião, este aspecto é fulcral no livro, causando um forte impacto na história, já que permite uma melhor caracterização das personagens tornando-se um elemento essencial no desenvolvimento dos conflitos sociais, psicológicos e até culturais.

Trata-se de uma história cativante que nos agarra compulsivamente. Gostei do enquadramento social e político e adorei acompanhar e “sentir” intensamente as paixões, as dores, as lutas, as perdas da família Lopes Moreira e dos seus próximos.

O Ano da Dançarina para além da ambiguidade do seu título que muito tem para revelar, oferece ao leitor uma vasta informação sobre a época, mas também a possibilidade de sonhar. Foi uma leitura muito aprazível.


16 novembro, 2022

15 novembro, 2022

Ainda há quem saiba cuidar


Ilustração, Tayebeh Tavasoli


Há pessoas que são abrigo, sem saber...
Há pessoas que são abrigo, mesmo sem querer!
Há pessoas que se tornam abrigo!
Só porque sabem escutar.
Só porque sabem abraçar!
Só porque sabem amar!
Há pessoas que se tornam porto de abrigo.
Âncora.
Há pessoas que são o abrigo do sol, o abrigo da noite... o abrigo de tudo o que perturba por ser em demasia.
Há pessoas que mesmo sem querer, são portos de abrigo. Só porque sabem cuidar. Despindo a razão e usando apenas, o coração!


Marisa Sousa, Guarde de Mim


14 novembro, 2022

Rafael Gallo vence Prémio José Saramago 2022





O escritor brasileiro Rafael Gallo é o vencedor do Prémio José Saramago pelo seu romance Dor fantasma, que será publicado em Portugal pela Porto Editora.

Bruno Vieira Amaral, escritor distinguido com o Prémio Literário José Saramago 2015, e membro do júri desta edição, enalteceu a qualidade da escrita do autor.

"É mão cirúrgica, aplicando incisões seguras e sábias, é mão de pintor, na pincelada criativa e intencional, é mão de maestro segurando a batuta e guiando a orquestra num crescendo de som e fúria que culmina no magistral desenlace do romance", afirmou.

A edição deste ano teve como jurados os escritores e anteriores premiados José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, João Tordo e Bruno Vieira Amaral, além de Pilar del Rio, presidenta da Fundação José Saramago, Guilhermina Gomes, em representação da Fundação Círculo de Leitores e Presidente do Júri, e a escritora brasileira Nélida Piñon, membro honorário.

O Prémio Literário José Saramago foi instituído para celebrar a atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 1998 ao autor de "Memorial do Convento", visando jovens autores, cuja primeira edição tivesse sido publicada num país da lusofonia.

Notícia completa em  Expresso 


13 novembro, 2022

𝑴ã𝒆, 𝑫𝒐𝒄𝒆 𝑴𝒂𝒓, de João Pinto Coelho


Autor: João Pinto Coelho
Título: Mãe, Doce Mar
N.º de páginas: 198
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: ()



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


João Pinto Coelho é cada vez mais um dos meus autores de eleição. Já me (nos) habitou a romances fortes, emotivos, marcantes e com finais surpreendentes, pelo que peguei neste livro com uma enorme expectativa porque era o seu novo livro que aguardava com ansiedade e porque já havia ecos muito positivos e que anunciavam novidades, mudança de tema. Mais curiosa e expectante fiquei quando o ouvi no Café com Letras.

Em Mãe, Doce Mar, o autor transporta-nos para o seu mundo, para o seu íntimo. E percebemos, de imediato, logo na primeira frase, que não ficaremos indiferentes à nova narrativa de JPC.
“Tinha doze anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.
E, no meu caso, é verdade.”

E, assim, com um aperto no coração partimos à descoberta de Noah, de Frank e de Patience. A cada uma destas personagens, o autor dedicou capítulos próprios, que nos revelam, na primeira pessoa, flashes importantes das suas vidas e que, apenas, no final encaixam de forma surpreendente e fascinante.
O autor é exímio na construção do seu enredo, quando pensamos que nos vai revelar algo, ei-lo que trava e que cria uma pausa que nos deixa suspensos e nos força a ler e a ler numa busca incessante e que se vai tornar avassaladora. Eis um exemplo: “Não quero ir mais longe, revelar se o seu [da mãe] abraço teve o aperto perfeito ou até se aquelas lágrimas foram um caudal de culpa ou outra coisa qualquer.” (p. 9)

Sendo um romance autobiográfico nem sempre é fácil discernir onde entra a ficção. Também não faço questão de o saber. Não é importante. O que interessa mesmo é absorver a história que nos é narrada, desfrutar do poder e da força da escrita, sentir o prazer de uma boa leitura.

João Pinto Coelho neste romance enveredou por um novo caminho, saiu da sua zona de conforto conquistada merecidamente com três romances fabulosos, e não desiludiu. Pelo contrário, veio confirmar que é detentor de uma escrita bela, trabalhada como se de uma escultura se tratasse. Uma escrita sincera, extremamente humana que revela dramas, sofrimento, solidão,… neste caso, distancia-se do sofrimento colectivo para se centrar no “eu”. E que bem o fez. Como soube usar a metáfora do mar, ora calmo e contemplativo, ora tempestuoso para evidenciar os estados de alma das personagens.

Para concluir, resta-me sossegar JPC e dizer-lhe que pode continuar a confiar nos seus leitores, que, atentos, saberão ler nas entrelinhas, mesmo naquilo que não foi dito e que as luzes ficaram acesas. Brilhantes. Flamantes.

08 novembro, 2022

𝑴𝒂𝒓𝒈𝒂𝒓𝒊𝒕𝒂 𝒆 𝒐 𝑴𝒆𝒔𝒕𝒓𝒆, de Mikhail Bulgákov

 


Autor: Mikhail Bulgákov
Título: Margarita e o Mestre
Tradutor: António Pescada
N.º de páginas: 448
Editora: Colecção Mil Folhas
Edição: Agosto 2002
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1363)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Ao pesquisar um pouco sobre a vida e obra do autor para uma melhor compreensão do livro, ficou claro que Mikhail Bulgakov não era apoiante do regime, tornando-se mesmo um autor polémico e muito crítico. Sendo vítima de censura, Margarita e o Mestre levou dez anos a ser escrito porque o autor sabia que não seria aceite no regime estalinista.
Só vinte e sete anos depois da sua morte, o livro foi publicado e tornou-se num fenómeno literário. Há no livro uma referência clara a este aspecto o que confere à narrativa um caracter autobiográfico. O Mestre da narrativa é escritor e Margarita é a sua amada e principal mentora. “Ela tem uma opinião demasiado elevada sobre o romance que eu escrevi. (…) deixe-me vê-lo. Woland estendeu a mão. (…) Infelizmente, isso não me é possível – respondeu o Mestre – porque o queimei no fogão.
- Desculpe, mas não acredito – disse Woland – isso não pode ser. Os manuscritos não ardem. (pp. 322 -323)

Temos assim, um livro desconcertante, divertido, empolgante e satírico. As duas partes que o compõem transportam-nos para universos de puro divertimento, mas também de profunda reflexão. O sobrenatural entrelaça-se magistralmente à crítica social e política do regime ditatorial de Estaline.
O Bem e o Mal, simbolicamente referidos na epígrafe, extraída da famosa obra Fausto, de Goethe, dão o mote à narrativa e preparam o leitor para a grande metáfora da vida e da natureza humana com um toque de cariz religioso.
“Quem és tu, então?”
“Parte daquela força que eternamente deseja o mal e eternamente cria o bem.”

Para além da dualidade Bem e Mal, há outras que se interligam como o amor e o ódio, a honestidade e a mentira e que condimentam todo o enredo e o tornam numa obra genial.
Partindo de uma trama realista e representativa de um país em plena ditadura, Bulgakov cria um enredo louco e absurdo, com personagens fabulosas e diabólicas que coloca numa Moscovo vazia de vontades e opiniões próprias, oprimida e devastada.

Não pensem que a história é taciturna, bem pelo contrário, e aí reside o encanto do livro, é que para retratar uma época sombria, o autor revela uma imaginação espantosa e com recurso à alegoria cria cenas divertidas, inventa diálogos com um forte sentido de humor, por vezes negro, estabelece pactos “que só o diabo sabe”, representa uma sociedade em crise de valores onde o mal predominava. 

Margarita e o Mestre é indiscutivelmente uma obra-prima da literatura universal. Na minha opinião, faz jus à literatura russa do século XIX que tanto aprecio e que leio sempre com enorme prazer.


06 novembro, 2022

Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6/11/1919 – Lisboa, 2/7/2004)





Mar


Mar, metade da minha alma é feita de maresia 
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia, 
Que há no vasto clamor da maré cheia, 
Que nunca nenhum bem me satisfez. 
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia 
Mais fortes se levantam outra vez, 
Que após cada queda caminho para a vida, 
Por uma nova ilusão entontecida. 

E se vou dizendo aos astros o meu mal 
É porque também tu revoltado e teatral 
Fazes soar a tua dor pelas alturas. 
E se antes de tudo odeio e fujo 
O que é impuro, profano e sujo, 
É só porque as tuas ondas são puras.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética




29 outubro, 2022

𝑼𝒎𝒂 𝑷𝒂𝒊𝒙ã𝒐 𝑺𝒊𝒎𝒑𝒍𝒆𝒔, de Annie Ernaux

 



Autora: Annie Ernaux
Título: Uma Paixão Simples
Tradutora: Tereza Coelho
N.º de páginas: 70
Editora: Livros do Brasil
Edição: Outubro 2020
Classificação: Novela
N.º de Registo: ()


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Em Uma Paixão Simples, Annie Ernaux, uma mulher “culta, independente e divorciada e já com filhos adultos” expõe a paixão intensa e obsessiva que viveu durante cerca de dois anos com um homem casado e bem mais novo. É a própria que refere que o seu livro é autobiográfico e que “não quero explicar a minha paixão – isso acabaria por considera-la erro ou desordem a justificar – quero, simplesmente, expô-la.” (p. 27)

Annie Ernaux mantém, neste livro, aquilo que tão bem a caracteriza, isto é, relatar a sua vida. Tudo é pessoal, vivido, sentido. Aceitamos que assim seja. Não se trata de exibicionismo, trata-se de frontalidade, de honestidade, de coragem porque despida de preconceitos e de julgamentos.

Numa escrita inteligente, acutilante e desabrida transporta-nos para os universos literário e fílmico, tipicamente francês, de Marguerite Duras, de Simone Beauvoir, Jean-Luc Godard, entre outros.
Uma Paixão Simples é a história de uma paixão pura, inquieta, obsessiva pelo desejo e pela espera; pela presença e pela ausência de quem se ama apaixonada e perdidamente; pelo erotismo e pela solidão que ficou…

“A partir do mês de Setembro do ano passado, não fiz mais nada a não ser esperar um homem: esperar que ele me telefonasse e que viesse a minha casa. (…) Era principalmente quando falava que eu tinha a impressão de viver por impulso. (…) As únicas ações em que eu empenhava a minha vontade, o meu desejo, e algo que deve ser a inteligência humana (prever, avaliar os prós e os contras, as consequências) tinham, todas, uma relação com esse homem. (…) Eu não tinha nenhum futuro a não ser o próximo telefonema a marcar um encontro”. (pp. 9 - 11)

É um livro brevíssimo, mas intenso. Um livro avassalador porque conta sem rodeios a paixão de uma mulher por um homem mais novo e casado; porque expõe a sua ansiedade, a sua sexualidade; porque expõe a sua existência tumultuosa; porque revela a razão de escrever apesar de “O tempo da escrita não tem nada a ver com o da paixão. No entanto quando comecei a escrever, era para continuar nesse tempo (…) não escrevi um livro sobre ele, nem sequer sobre mim. Transformei, simplesmente, em palavras – que ele não vai ler, sem dúvida, que não lhe são destinadas – aquilo que a sua existência, só por si, me trouxe. Uma espécie de dádiva invertida.” (pp 55-70)

Recomendo os livros de Annie Ernaux. Recomendo muito este livro pela forma como a autora explora as suas emoções e como nos transporta para o lugar das personagens desafiando-nos a viver a nossa experiência através da sua história, da sua paixão tão despudoradamente revelada.




25 outubro, 2022

Um poema

 

                                                                           Foto minha


Sísifo


Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...

Miguel Torga

23 outubro, 2022

𝑶𝒔 𝒍𝒊𝒗𝒓𝒐𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝒅𝒆𝒗𝒐𝒓𝒂𝒓𝒂𝒎 𝒐 𝒎𝒆𝒖 𝒑𝒂𝒊, de Afonso Cruz

 

Autor: Afonso Cruz
Título: Os livros que devoraram o meu pai
N.º de páginas: 126
Editora: Caminho
Edição (14.ª): Julho 2021
Classificação: Novela
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Já tinha lido Os livros que devoraram o meu pai, mas não tinha ainda escrito sobre ele. Então decidi relê-lo para emitir uma opinião.

É um livro mágico que se lê num fôlego. É um livro sobre livros e sobre a paixão pela literatura que nos transporta para o mundo real de Elias Bonfim, nos conduz numa viagem fantástica repleta de referências literárias e de histórias encantadoras que se “escondem nas partes brancas das folhas, entre as letras dos livros, nos espaços entre as palavras.” (p.64) e nos mergulha nos universos literários de A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells; O Estranho caso do Dr. Jeckyl and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson; Crime e Castigo, de Dostoievski e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Elias Bonfim é o protagonista desta narrativa. Com 12 anos herda a biblioteca do pai e decide ler todos os livros, na ânsia de encontrar respostas para o desaparecimento misterioso do pai.
“Li, numa das minhas tardes passadas no sótão um conto de um escritor argentino chamado Borges, sobre um labirinto que é um deserto. Há inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão complexo como uma biblioteca.” (p. 28)

Nos longos períodos de leitura, Elias entrega-se à história e entra em amena conversa com as suas personagens. Assim, vai de enredo em enredo e numa mistura do quotidiano e do metafórico, engendra reflexões sobre o bem, o mal, a culpa e o medo, sem contudo cair na moralização.
“(…) custa-me sair das histórias que tenho vivido. Tenho visto ficções que só a realidade é que supera. E tenho um cão, (…) na realidade é Mr. Prendick (…) Um cão muito inteligente, de pelo preto e capaz de ser um animal perfeitamente racional. Característica de muitos cães e poucos homens.” (p. 76)

Recomendo para ser devorado por qualquer leitor! Porque é um livro simples e emocionante em constante diálogo com outros livros e "Porque um homem é feito dessas histórias, não é de adê-énes e músculos e ossos. Histórias." (p.126)




22 outubro, 2022

𝒄𝒂𝒅𝒆𝒓𝒏𝒐 𝒂𝒇𝒆𝒈ã𝒐, de Alexandra Lucas Coelho

 


Autora: Alexandra Lucas Coelho
Título: caderno afegão
N.º de páginas: 326
Editora: Tinta-da-China
Edição (5.ª): Janeiro 2015
Classificação: Diário de Viagem
N.º de Registo: (3343)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Caderno afegão é um relato em directo, objectivo e incisivo sobre uma geografia da guerra, do sofrimento, da morte, da desigualdade, da miséria, mas também sobre as tradições de um país, sobre uma história multisecular.
“E qual é o problema maior de todos, inflação, desemprego, saúde, guerra? Resposta imediata, nesta roda de mulheres e um rapaz:
- Bombistas suicidas,” (p. 50)

Alexandra Lucas Coelho (ALC) viveu no Afeganistão, entre 31 de Maio e 28 de Junho de 2008, como jornalista do Jornal Público e da Rádio Difusão Portuguesa. Através do seu olhar limpo e atento aos detalhes vamos, diariamente, acompanhando os seus relatos de viagem pelo país, os seus retratos de vida, a sua interpretação subtil, mas sentida de um país em ruinas, em guerra.


A aparente facilidade com que deambula pelas cidades que escolheu visitar, não está isenta de riscos. Nestes momentos de maior perigo, o seu relato torna-se menos objectivo, mas rigoroso deixando apenas perceber o risco.
“Mandam-me esperar quieta. Não me posso mexer sem escolta. Nem pensar em tirar fotografias.
Presa em Bagram. 14h Bagram. Media Center.
Vão libertar-me após averiguações.” (pp. 290 – 291)

O contacto com as pessoas é real, o relato actualizado diariamente é concreto, é vivido é sentido. As suas emoções são perceptíveis quando descreve o cheiro das rosas, presente em todos os jardins de Cabul (“Nunca vi tão forte dedicação às flores. Parece estar acima de tudo e a tudo ser imune. No meio do trânsito mais tóxico há rotundas com rosas lindas em Cabul,”(p.71)), o banho das mulheres no Hamman, o chá numa roda de mulheres, as refeições nos vários hotéis, as mulheres vestidas de burqa azul, entre muitos outros aspectos.

ALC escreve como observa a realidade. Foca-se nos diferentes sectores da sociedade afegã e nos muitos estrangeiros (humanitários, contratados e jornalistas) de múltiplas origens que povoam o país. Foca-se, essencialmente, na situação das mulheres “que desaparecem dentro das burqas. Elas desaparecem mesmo. Aquele pedaço de pano azul mexe-se e de lá sai uma voz abafada,” (p. 216); nas mulheres que não sabem ler; nas mulheres que têm filhos “antes de estarem amadurecidas” (p. 202); nas mulheres que não são tratadas porque não podem “mostrar o corpo a um médico homem.” (p.200); nas mulheres que ficam enclausuradas em casa porque não podem sair sozinhas.
“Nesta casa, a filha mais nova ainda não parece ter idade para ser adulta, mas já tem idade para usar burqa. Com a burqa por cima não se vê que idade tem.” (p. 519)

Sou apreciadora da escrita da ALC. Preocupa-se em relatar o que observa. Informa. Descreve com rigor e objectividade. É directa, sucinta, sincera. De vez em quando, deslumbra-se um flash mais poético, mais emotivo “ O mundo era a sua [de Babur] ostra. Um permanente desfrute” (p. 66); “Ghuti põe a burqa, apagando a luz dos seus trajes verde-lima.” (p. 112); “É uma paisagem soberba, indomada.” (p. 154); “É muito escuro dentro de uma burqa.” (p. 163)

Recomendo.



17 outubro, 2022

Exercício de escrita criativa - Da minha janela...

Foto minha



Da minha janela avisto uma imensidão de telhas alaranjadas mesclada de paredes brancas.
Vejo, ainda, a casa do Gama grande, forte, vigilante.
Mas esta visão simples e objectiva não é sedutora!
O que me leva diariamente à minha janela, é outra imensidão!
Uma imensidão azul, prateada, brilhante!
Da minha janela, vivo o MAR!



 

15 outubro, 2022

Centenário de Agustina Bessa-Luís

 

                                           Foto Paulo Spranger/arquivo Global Imagens

Agustina Bessa-Luís nasceu  a 15 de Outubro de1922, em Vila Meã, Amarante e morreu  a 03 de junho de 2019, aos 96 anos, no Porto.

Destacou-se em 1954, com a publicação do romance A Sibila, que lhe valeu  vários prémios, entre os quais  os Prémios Camões e Vergílio Ferreira.

Recebeu igualmente o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores, em 1983, pela obra Os Meninos de Ouro, e, em 2001, por O Princípio da Incerteza I — Joia de Família.

Foi distinguida pela totalidade da sua obra com o Prémio Adelaide Ristori, do Centro Cultural Italiano de Roma, em 1975, e com o Prémio Eduardo Lourenço, em 2015.

Foi condecorada como Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada, de Portugal, em 1981, elevada a Grã-Cruz em 2006, e com o grau de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, de França, em 1989, tendo recebido a Medalha de Honra da Cidade do Porto, em 1988.