29 março, 2024

Um poema de João Pires

 




Tu és fogo que queima intensamente
Caráter enérgico, forte e valente
Sempre disposta a novas aventuras
Líder habilidosa, cheia de posturas

Proativa e sem medo de arriscar
Sempre pronta para se aventurar
Lutas para abrir novos caminhos
Sempre à frente, seguindo os teus destinos

Com coragem e determinação
Tu enfrentas qualquer situação
Mesmo diante das adversidades
Segues em frente com firmeza e verdade.

João Pires

O tempo passa? Não passa.

 

Henry Alexander (1860 – 1894)
Snow Scene Through a Winter Window | 1870




O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.


Carlos Drummond de Andrade


27 março, 2024

𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 à 𝒎𝒊𝒏𝒉𝒂 𝑭𝒊𝒍𝒉𝒂, de Maya Angelou

 


Autora: Maya Angelou
Título: Carta à minha Filha
Tradutora: Maria do Carmo Figueira
N.º de páginas: 191
Editora: Lua de Papel
Edição (3.ª): Junho 2022
Classificação: Memórias/Testemunhos
N.º de Registo: (3441)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Carta à minha Filha reúne 28 textos. É um livro de testemunhos, de memórias, de histórias.
Neles, maya Angelou aborda as suas raízes, a sua vida pessoal, a sua educação, as suas inúmeras viagens, o papel da mulher, o preconceito racial e o amor.
Ao atribuir este título ao livro, Maya Angelou que nunca teve uma filha (apenas um filho) atribui uma carga emocional e intimista à mensagem que pretende legar aos seus leitores. No fundo, é uma homenagem às mulheres, com ela própria o escreve.

É um livro de ensinamentos, de vivências, de amor e de carinho, mas também de dificuldades próprias de uma sociedade preconceituosa, de obstáculos, de recaídas e de recomeços muitos graças à literatura, à escrita, à sua força e vontade de vencer.
“Carta à minha filha”, o texto inicial, tem como destinatário uma suposta “querida filha” e funciona como preâmbulo, já que nele dá indicações sobre o que pretende contar, “as lições que aprendi e as condições em que as aprendi”. Adianta que só pretende referir o que lhe foi útil na vida e que não vai referir como usou as soluções “porque sei que és inteligente, criativa, expedita e que as utilizarás como achares melhor”; refere também que cometeu muitos erros e que aprendeu a aceitar as suas responsabilidades.

Só uma mulher inteligente e sensível se expõe, se “desnuda” sem receio perante os seus leitores ao escrever e partilhar de forma tão directa e sincera os seus pensamentos, as suas acções, decisões, erros e lutas. As suas histórias de vida revelam o seu amadurecimento perante os defeitos, os medos, mas também os sucessos e as alegrias.

“Podes não controlar todos os acontecimentos da tua vida, mas podes decidir não deixar que eles te debilitem. Tenta ser o arco-íris da nuvem de outra pessoa. Não te queixes. Esforça-te por mudar as coisas de que não gostas. Se não conseguires mudá-las, muda a tua maneira de pensar (…)” Este é o último “conselho” que delega “às milhares de filhas.”

Recomendo a leitura. Lê-se muito bem, os textos são curtos e a escrita é fluida, poética, inspiradora.


22 março, 2024

𝑼𝒎 𝒒𝒖𝒂𝒓𝒕𝒐 𝒔ó 𝒔𝒆𝒖, de Virginia Woolf

 



Autora: Virginia Woolf
Título: Um quarto só seu
Tradutora: Isabel Castro Silva
N.º de páginas: 176
Editora: Penguin Clássicos
Edição: Maio 2023
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3544)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Wirginia Woolf, neste seu fabuloso ensaio, relata-nos as duas conferências proferidas em 1928, em duas faculdades da Universidade de Cambridge para jovens universitárias sobre o tema "As mulheres e a ficção".

Nas suas conferências, a autora vai tentar explicar (palavras suas) a relação entre as mulheres e a ficção e “um quarto só seu”. É com esta questão que inicia a sua palestra.

Ana Luísa Amaral no prefácio considera-o um dos ensaios mais influentes do seculo XX sobre “a relação das mulheres com a escrita, a sociedade e o processo de criação literária.”
E quem sou eu para discordar. Bem pelo contrário, assumo que fiquei extasiada pela escrita e pelos argumentos apresentados. Argumentos perspicazes, irrefutáveis, sensíveis e provocatórios. (Tenho o livro profusamente sublinhado e anotado)
Coloquei-me no papel de ouvinte e absorvi cada palavra dita/escrita.

Virginia Woolf apresenta uma análise clara e concisa do papel da mulher na literatura. Explana com exemplos inequívocos como as mulheres foram ridicularizadas e excluídas do mundo da escrita, quer por limitações financeiras e falta de oportunidades quer por mero preconceito de género. Patenteia, ainda, a transversalidade da condição sexual feminina face à criação literária; a discriminação sofrida, o silenciamento da sua escrita; a dificuldade de acesso à leitura. Em suma, aponta as desigualdades educacionais, sociais e económicas que a mulher enfrentou ao longo da história e defende que uma mulher, se quiser escrever ficção, isto é, criar, precisa de dinheiro e de um quarto só seu. E “tem de haver liberdade e tem de haver paz”.

Mas, Virginia Woolf vai mais longe e na sua “divagação” como refere, encoraja as ouvintes a escrever “como mulheres” e mais uma vez exemplifica, revelando as dificuldades vividas por mulheres que ousaram escrever e contrariar “as limitações do seu sexo” como argumentavam os críticos no “seio de uma sociedade puramente patriarcal” . Woolf persegue a sua exortação, demonstrando o talento, o génio de quatro grandes romancistas inglesas – Jane Austen, as irmãs Charlotte e Emily Brontë, George Eliot (pseudónimo de Mary Ann Evans).
Não vou alongar-me mais, pois as suas palavras que merecem ser lidas são bem mais poderosas e elucidativas.

Concluo, afirmando que Virginia Woolf foi uma mulher muito à frente do seu tempo e que alguns dos temas citados e escrutinados ainda vigoram nos nossos dias. Quase um século depois, o seu texto continua a alimentar muitos debates.
Recomendo vivamente a leitura deste ensaio.



21 março, 2024

Dia Mundial da Poesia

 


Obra de Graça Morais





O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

Fernando Pessoa



17 março, 2024

Nuno Júdice (1949 - 2024)

 


créditos: todoliteratura.es



Plano


Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”


___________

Elegia com uma variação romântica


As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem
as camas desfeitas, empilham camisas e calças,
abotoam os cintos do infinito, prendem os laços
da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam
agulhas no buraco da vida, cosem as feridas
do amor que não tiveram, cantam devagar
a canção da idade fria. Dispo essas mulheres
no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras
do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo
os pontos que acabaram de coser. O seu sexo -
seco pelos ventos de uma inquietação nocturna
- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março
enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes,
as mulheres loucas abrem a porta da varanda,
respiram o perfume das trepadeiras brancas
da primavera, desmaiam com o sol.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”



16 março, 2024

𝑨 𝑩𝒐𝒏𝒆𝒄𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒑𝒊𝒅𝒂, de Paulo M. Morais

 


Autor: Paulo M. Morais
Título: A Boneca Despida
N.º de páginas: 380
Editora: Casa das Letras
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3479)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Boneca Despida, de Paulo M. Morais é um romance arrebatador que nos lega uma mensagem que urge repensar nos dias de hoje.

O livro muito bem estruturado, é constituído por sete partes (Aurora, Manhã, Meio-dia, Tarde, Anoitecer, Noite, Crepúsculo) que constituem um dia, mas que efectivamente correspondem a 100 anos, o tempo de vida da protagonista, Julieta Silva. Cada uma destas partes abre com sugestões de bandas sonoras apropriadas a cada momento e que, na minha opinião, enriquecem sobremaneira a leitura do romance.
A subdivisão é assumida por datas (de 1915 a 2016) e em cada uma delas, em jeito de epígrafes, o autor insere pequenos textos representativos dos factos sociais, culturais e políticos da época e que se cruzam, obviamente, com as vivências de Julieta. Considero estes textos fundamentais e de extrema importância para a compreensão do enredo.

Julieta Silva é uma lutadora. Com uma vida infeliz e sofrida carrega as marcas de uma sociedade portuguesa patriarcal gerida sob a batuta castradora do regime do Estado Novo. As mulheres, tidas como “fadas do lar”, conformavam-se ao poder da figura masculina, marcas que permaneceram mesmo depois da revolução.
Julieta sujeitou-se a uma vida de servidão, de abandono, a quem impediram de prosseguir estudos, de ler, de sonhar, a quem não revelaram as alterações corporais e biológicas, a quem não ensinaram os factos de uma vida, nem sequer a experimentar emoções. Casou sem paixão, teve filhos que amou e protegeu incondicionalmente. Assumiu, submissa, o seu papel de neta, de filha, de sobrinha, de irmã, e mais tarde, de mulher, de mãe, de avó. “Naquela submissão, havia medo e solidão.” (p. 71). Sofreu reversos inesperados e dolorosos. Nunca se rebelou, nunca lutou pela sua felicidade, mas também nunca se lamentou, nem vacilou. Julieta é uma mulher extraordinária se tivermos em conta o período em que viveu. Bafejada por um destino cruel, impiedoso e sofrido, tudo faz para sobreviver e servir com amor os seus, sobretudo os filhos.

A Boneca Despida, é assim, um documento histórico pois espelha o papel da mulher ao longo de um século, mas também evidencia a repressão homossexual, a “beatice” vivida na Igreja que alimentava nos seus crentes noções de culpa e de pecado, impondo um moralismo excessivo, “Com bênção e selo papal, carimbava-se a aliança entre Igreja e Estado para a orientação dos portugueses nas suas vidas. No seio da família rezava-se e perdoava-se bastante.” (p. 155)

A escrita de Paulo M. Morais é fluida e apaixonante com passagens muito poéticas, mas também muito duras. A realidade social, histórica e social apodera-se da ficção, ou será o contrário? Não importa a ordem, o importante é mesmo que o leitor seduzido se deixa conduzir e, assim, página após página, vive intensa e emocionalmente a existência desta mulher, “que à custa da sua fraqueza [em impor as suas intenções], falhara” muitas vezes, mas que nunca desfaleceu perante as agruras do destino. Quantas mulheres calaram e continuam a calar uma vida de dor, de violência? Termino como iniciei: é urgente repensar a nossa existência, os valores da nossa sociedade. O que queremos? Para onde nos dirigimos?

Recomendo a leitura deste e dos outros livros do autor.



13 março, 2024

Oppenheimer, de Christopher Nolan

 


com Matt Damon, Robert Downey Jr., Emily Blunt, Cillian Murphy, Florence Pugh

Biografia; Drama |  180 min  | M/14 |  EUA, GB | 2023

estreia 20 - 07 - 2023



Sinopse:

Escrito e realizado por Christopher Nolan, "Oppenheimer" é um thriller épico filmado com câmaras IMAX® que puxa o público para o abissal paradoxo do enigmático homem que tem de arriscar destruir o mundo para o salvar.
O filme conta com Cillian Murphy como J. Robert Oppenheimer e Emily Blunt como sua mulher, a bióloga e botanista Katherine “Kitty” Oppenheimer.
O vencedor de um Óscar®, Matt Damon, interpreta o General Leslie Groves Jr., diretor do Projeto Manhattan, e Robert Downey Jr. é Lewis Strauss, comissário fundador da Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos.



Ver Trailer:



11 março, 2024

Vencedores dos Óscares 2024



Os Óscares foram entregues na noite de 10 para 11 de março, numa cerimónia realizada no Dolby Theatre, em Los Angeles. 
“Oppenheimer” que era o mais nomeado dos filmes, com 13 nomeações obteve  no final,   sete estatuetas: Melhor Filme, Melhor Realização (Christopher Nolan, Melhor Ator (Cillian Murphy), Melhor Ator Secundário (Robert Downey Jr.), Melhor Banda Sonora Original, Melhor Fotografia e Melhor Montagem.  



Premiados:

Melhor Filme — "Oppenheimer", Emma Thomas, Charles Roven e Christopher Nolan (produtores)

Melhor Realização — "Oppenheimer", de Christopher Nolan

Melhor Atriz — Emma Stone ("Pobres criaturas")

Melhor Ator — Cillian Murphy ("Oppenheimer")

Melhor Atriz Secundária — Da’Vine Joy Randolph ("Os excluídos")

Melhor Ator Secundário — Robert Downey Jr. ("Oppenheimer")

Melhor Filme Internacional — "A zona de interesse", de Jonathan Glazer (Reino Unido)

Melhor Curta-Metragem — "A incrível história de Henry Sugar", de Wes Anderson

Melhor Longa-Metragem de Animação — "O rapaz e a garça", de Hayao Miyazaki

Melhor Curta-Metragem de Animação — "War is over", de Dave Mullins e Sean Lennon

Melhor Documentário — "20 days in Mariupol", de Mstyslav Chernov

Melhor Curta-Metragem Documental — "The last repair shop", de Kris Bowers e Ben Proudfoot

Melhor Argumento Original — "Anatomia de uma queda", de Justine Triet e Arthur Harari

Melhor Argumento Adaptado — "American fiction", de Cord Jefferson e Percival Everett

Melhor Banda Sonora Original — "Oppenheimer", de Ludwig Göransson

Melhor Canção Original — "What was I made for?", de Billie Eilish e Finneas O'Connell, para "Barbie"

Melhor Design de Produção — "Pobres criaturas", James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek

Melhor Montagem — "Oppenheimer", Jennifer Lame

Melhor Fotografia — "Oppenheimer", Hoyte Van Hoytema

Melhores Efeitos Visuais — "Godzilla minus one", Takashi Yamazaki, Kiyoko Shibuya, Masaki Takahashi e Tatsuji Nojima

Melhor Som — "A zona de interesse", Tarn Willers e Johnnie Burn

Melhor Caracterização — "Pobres criaturas", Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston

Melhor Guarda-Roupa — "Pobres criaturas", Holly Waddington




10 março, 2024

Apresentação do livro Súbito, de Ana Zorrinho

                                                                            Foto de Paulo Pereira

Cumprimento todos os presentes.

Quero agradecer o convite formulado pela Ana Zorrinho para estar ao seu lado nesta iniciativa de partilhar palavras poéticas.

Quero congratular a Liliana Rodrigues e os elementos da sua equipa por nos proporcionarem este momento e este espaço maravilhoso. É tão bom falar de poesia num ambiente de fotografias de mulheres com livros.

É um prazer enorme assinalar o Dia Internacional da Mulher partilhando convosco as palavras escritas e ditas pela Ana Zorrinho. Ela sabe que é verdade.


Este dia, 8 de março  de 2024, é duplamente importante porque celebramos os 50 anos do dia “em que emergimos da noite e do silêncio” como o imortalizou Sophia de Mello Breyner no seu poema 25 de Abril 

      Esta é a madrugada que eu esperava
     O dia inicial inteiro e limpo
     Onde emergimos da noite e do silêncio
     E livres habitamos a substância do tempo


e porque estamos a dois dias de exercer um acto cívico e democrático (direito conquistado pelas mulheres).

 Acabámos de ouvir publicamente uma jovem, a Catarina, a tocar violino e uma mulher a ler a poesia que escreveu. 
Em 1943, no boletim mensal da Mocidade Portuguesa Feminina, publicava-se o seguinte texto (apud A Boneca Despida, Paulo M. Morais)

"Queridas raparigas! Sede boas, sensatas, alegres, dedicadas, esquecidas de vós mesmas e sereis mulheres superiores, sem pretender rivalizar em tolas superioridades com os homens, o que nada vos engrandece, antes diminui! Cada um deve ocupar o seu lugar - aquele que a Providência lhe marcou. E o vosso, como rainhas do lar, é o mais belo."

Este estatuto de "fada do lar" prolongou-se até 1974. A Ana Zorrinho nasceu em 1978. Já a madrugada era inteira e limpa. Este facto permitiu-lhe crescer em liberdade, frequentar a escola, ler, escrever, pensar, sorrir, sonhar e entender o mundo “como poder ser o lar que a palavra espera” como o escreveu e acabou de ler no prefácio de Súbito.

No seu primeiro livro Histórias de um tempo só, a Ana, sem o ter vivido, oferece-nos histórias desse tempo, sombrio, histórias de vida tecida, de momentos, de memórias. Micro histórias de gente trabalhadora, sofrida, enrugada, cansada, resignada. Dez textos de um tempo “frio, cortante”, ventoso, escuro, silencioso, sem palavras. Um tempo indiferente à dor, à violência, à solidão, à velhice, à morte…

(Leitura do texto "Maria". p. 13, por Sónia)

Quando em Julho na Festa do livro me vi com Súbito na mão, observei-o atentamente, (gostei da apresentação) folheei-o, li na diagonal alguns poemas, tentei perceber a razão do título e na contracapa procurei alguma informação extra, uma sinopse. Deparei-me com algo pouco comum: o significado da palavra Súbito. Fiquei a matutar…. E pensei: É natural, a Ana é assim mesmo, gosta de surpreender o leitor. Gosta de o conduzir na descoberta de sentidos, de emoções, convoca-o a participar ativamente, não lhe facilita a vida porque nem tudo é dito. O mais importante fica mesmo nas entrelinhas.

Era necessário, obviamente, ler os poemas.

Voltei ao início e li o primeiro poema “palavras” (p. 9). Este sugere, desde logo, uma leitura expressiva, sentida, impetuosa (súbita), silenciosa, … fui até ao fim do livro e descobri “palavra nascente” que nos remete para a importância do nascer, como um recomeço.
 
Leitura do poema (p. 73- Ana)

Na leitura e releitura dos restantes poemas deixei-me conduzir pelas palavras, pela escrita visual, sensível e sensual.

(Leitura do poema “lugar” p.11, por José)

Descobri um ritmo variável, vagaroso, torrencial, deslizante, reflexivo, súbito…. Gosto desta volubilidade.

 (leitura do poema “último poema” p. 67, por Paulo)

Este “último poema” sugere o fim da vida, mas é apenas o fim que conduzirá forçosamente ao recomeço. Esta circularidade da vida expressa nas Palavras contidas nos títulos e nos poemas, como já referi, torna-se mais consistente se tivermos em conta a existência de um fio condutor que é o Tempo. O Tempo surge na espera, na solidão, na brevidade da vida, na morte, na ausência, na verdade, na suspensão (“Oh ampulheta/Inclina-te um pouco/Suspende o cair do grão” (p. 45), na saudade, no mergulho, na esperança, no silêncio, no prazer, na cadência, no vazio da escrita pasmado em "vértice" (p. 51)
          
                            No extremo do vértice
                            Vejo plenamente o vazio a 360 graus
                            Flicto-me para o salto
                            Sobre o limite
                            da linha
                            Mergulho no nada
                            Desta página em branco
                            Afogo-me 
                            Nas palavras inexistentes


O drama do escritor perante a página em branco e nas palavras inexistentes, transborda para mim, leitora, em magia, deslumbramento. Não me canso de o ler. De os ler, todos.
Para concluir posso afirmar que a subjetividade presente na escrita da Ana exige do leitor uma participação efetiva, oferecendo-lhe múltiplas leituras. Súbito cumpre, deste modo, o propósito da poesia.

8 de Março de 2024 | 21h30 | Centro de Exposições
Centro de Artes de Sines

Graciosa Reis





05 março, 2024

Encontro com o autor Ondajki - Texto de apresentação


Foto GR

Ndalu Almeida, conhecido por Ondjaki é um poeta e escritor do mundo. Nasceu e estudou em Angola (5 julho de 1977), licenciou-se em Lisboa (sociologia), fez o doutoramento em Itália e estudou ainda em Nova Iorque. O seu percurso artístico vai para além da escrita, passa pelo cinema (filmou um documentário), pelo teatro, pela pintura e em 2020 lançou-se num novo projecto ao criar a Livraria Kiela em Luanda.

As suas obras (contos, poesia, romances, novelas, teatro) estão traduzidas em várias línguas. E com elas já recebeu inúmeros prémios em Angola e no estrangeiro. Destaco o Prémio Saramago em 2013 com o romance Os Transparentes.

Quando em 2007, na Livraria A das Artes ouvi, pela primeira vez, Ondjaki falar, ou melhor, contar estórias, fiquei maravilhada e decidi nunca mais o perder de vista.

Ao ler os seus livros, acredito que Ondjaki teve uma infância de momentos de aqui, felizes, aconchegada de palavras ditas por um “tio Rui que era poeta”, por uma tia Alice que “tirava letras do bigode do tio” e sobretudo pela “avó dezanove” que tinha segredos, “gigantescas maravilhas” e que lhe contava, e se calhar ainda conta, estórias de “pirilampos cintilantes”, “pirilampos apagados”, “estrelas pirilampas”, de borboletas, de brincadeiras, de soviéticos, de transparentes…

Ondjaki, atento e sensível, cientistou a alegria, o brilho, os pirilampos, os cheiros, mas também a sua rua, o seu bairro, a sua cidade, o seu país, o seu/nosso mundo; aprendeu que olhar através de Uma escuridão bonita é sonhar, é sentir o coração, é espanadar tristezas, medos, dificuldades; entendeu que assobiar resgata a alma, desperta desejos e sentimentos e liberta o sonho (outra vez o sonho. Sempre o sonho.)

Ondjaki, na sua escrita, legou-nos o seu entendimento do mundo. Nela há prendisajens, há palavras poéticas que enlaçam, abraçam, esculpem e tornam-no xão. Como exemplo, nas estórias de Os da minha rua, fica claro pela voz de Ndalu, como as pequenas coisas são importantes para as crianças. Como os ensinamentos dos mais velhos são preciosos, sábios….

Para escrever os seus livros, Ondjaki resgata memórias, vivências, deslembramentos, sonhos e futuros. Em todos, cria universos mesclados de realidade, sentimento, imaginação, fantasia. Em todos, destaca e critica a sociedade angolana, abordando desigualdades sociais, violência (guerra), preconceitos, racismo. Em todos, manobra as palavras, como lhe escreveu Manoel de Barros, inventa palavras, brinca com os sons, os ritmos, os sentidos das palavras. Em todos imortaliza sonhos, emoções.

Por tudo isto, Ondjaki é um contador de estórias único e encantador. Gosto de o ouvir falar. Gosto de o ler. Gosto de o ler em voz alta para melhor captar a harmonia e a poesia das suas palavras.

Vou terminar, mas como Ndalu, também não gosto de despedidas. E agora, cito:  ”Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração.”

Será que nós, adultos, sabemos? Fica a pergunta. Eu, não vou responder, prefiro passar a palavra e escolher a ternura que toca a alegria de ter Ondjaki aqui, na nossa biblioteca para nos contar mais umas estórias e assim a nossa “escuridão ficar mais bonita”.

Biblioteca escolar ESPAB, 05 de Março de 2024
Graciosa Reis