23 março, 2021

𝙊 𝙖𝙢𝙤𝙧 𝙦𝙪𝙚 𝙨𝙞𝙣𝙩𝙤 𝙖𝙜𝙤𝙧𝙖, de Leila Ferreira


 Autor: Leila Ferreira
Título: O amor que sinto agora
N.º de páginas: 220
Editora: Planeta
Edição: 1.ª- Julho 2018
Classificação: Romance
N.º de Registo: 3151


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Foi um livro que me surpreendeu pela positiva. Foi-me oferecido e só o li porque me foi recomendado. É um daqueles livros que nunca compraria pelo título, mas ainda bem que cedi à recomendação e confesso que também fui influenciada pela opinião do Agualusa.
Trata-se de um livro assaz pequeno, não pelo número de páginas, mas pela quantidade de texto já que se trata de um romance epistolar. A escrita é simples, mas profunda e que subtilmente nos conduz através de uma narrativa dura, intimista e dolorosa que nos faz reflectir sobre violência, amores, desamores, opções de vida, incompletudes.

Quatro anos após a morte de sua mãe, Ana arranja finalmente coragem para ler a carta que ela lhe deixou. É uma carta dolorosa como se calcula e Ana ao “abrir as janelas do quarto trancado onde guardou a dor”, sente necessidade de retomar o diálogo, de ”desenterrar o léxico do [nosso] afecto e devolver a cada sílaba e a cada sentimento o direito de existir” (p.16) e, então, decide escrever-lhe cartas para lhe narrar tudo o que nunca teve coragem de dizer de viva voz.
O leitor vai acompanhando a viagem interior de Ana, vai tomando conhecimento da sua infância infeliz, dos seus medos, das suas reflexões. Ana recebe uma herança pesada, sofrida, violentada, que se inicia com a sua bisavó, e chega até ela. Quatro gerações, é muito tempo para quebrar hábitos e valores estabelecidos em que tudo se suporta, mesmo a violência sexual por amor aos filhos.
Ana, caiu no fundo, mas lentamente soube erguer-se, fez o luto das três mulheres que marcaram a sua vida, sobretudo a sua mãe, e conquistou a esperança de ser feliz.

22 março, 2021

𝙑𝙖𝙡𝙚 𝘼𝙗𝙧𝙖ã𝙤, de Agustina Bessa-Luís




Autor: Agustina Bessa-Luís
Título: Vale Abraão
N.º de páginas: 273
Editora: Relógio d'Água
Edição: 7.ª- Setembro 2017
Classificação: Romance
N.º de Registo: 3162

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em Vale Abraão, deparamo-nos com uma releitura de Madame Bovary, de Flaubert. A história de Ema, a “Bovarinha” portuguesa vai desenrolar-se nas margens do Douro senhorial e vinhateiro.
Ao longo da obra, admiraremos a beleza da região ,magnificamente descrita, e assistiremos à decadência das suas casas, das famílias rurais e à imposição da “burguesia de jeans”.
“Sim, é certo, das janelas do Romesal via-se o Vale Abraão, terra de Paivas e Semblanos. Destacavam-se as propriedades mais sumptuosas, entre maciços das árvores de jardim; o resto eram casas agaioladas com mansardas revestidas de lousa, mas raras. Que o vale era sobretudo recatado na sua abastança, que decaíra muito com a alta dos salários e as vocações migratórias.” (p.43)

Ema que casou com um dos Paivas, Carlos Paiva, o médico medíocre e apático, vai manter uma vida que romperá com os valores tradicionais atribuídos à mulher da província. Inteligente e de uma beleza exorbitante, por isso considerada de perigosa quer pelos homens, que a desejam e rejeitam simultaneamente, quer pelas mulheres que a invejam.
“Desde que se dispôs a frequentar uma sociedade acima do seu meio e educação. Ema optou por usar, a título de ameaça, um comportamento desequilibrado. Encarnou a personagem associal, primeiro desajeitadamente, o que era quase o segredo do seu sucesso.” (p. 200)

Ema, à semelhança de muitas protagonistas agustinianas, vai ter uma vida tumultuosa, de constantes crises, sempre em busca de algo que a satisfaça. Invejada e inconstante, rejeita o fracasso e repele o sofrimento. Inconformada com a passividade e mediocridade do marido, considerado por muitos como um santo e o “cornudo simpático”, procura fora de casa uma forma de consolo, de prazer carnal, já que verdadeiramente, não ama ninguém. Insatisfeita com os seus próprios desejos, leva uma vida mesquinha e fútil tentando escapar de uma mediocridade há muito interiorizada. “ Os mimos, os pequenos sonhos perdulários que o pai lhe permitia, estavam proibidos naquela casa que era pior do que pobre, era mesquinha.” (p. 47).

Ao longo da narrativa, e à medida que vamos assistindo ao desgaste físico e psicológico da protagonista, vamos igualmente acompanhando a degradação e a ruína das casas do vale. Desde cedo que se antevê um final trágico para Ema e para a região.

Recomendo a leitura desta e de outras obras. A autora que tem uma obra riquíssima é, por muitos, ignorada porque se considera a sua escrita complexa. Pode ser verdade, mas se lida com cuidado e atenção, verificaremos que é afinal sublime e veiculadora de uma história bem portuguesa.


11 março, 2021

𝙊𝙨 𝙇𝙤𝙪𝙘𝙤𝙨 𝙙𝙖 𝙍𝙪𝙖 𝙈𝙖𝙯𝙪𝙧, de João Pinto Coelho

 


Autor: João Pinto Coelho
Título: Os Loucos da Rua Mazur
N.º de páginas: 311
Editora: Leya
Edição: 1.ª- Novembro 2017
Classificação: Romance
N.º de Registo: 3043


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Nesta segunda leitura, realizada para participar no evento promovido pelo clube de Leitura do PNL2027, e conhecendo já a história, apreciei sobretudo a escrita, deliciei-me nos melhores momentos do enredo e despachei as descrições de crueldade e de intolerância.

São belíssimas as descrições dos encontros dos três amigos de infância, Yankel, Eryk e Shionka, mas sobretudo de Yankel e Shianka. Assim, como a descrição final.

Neste livro, há uma demonstração clara do comportamento humano, e no caso, em particular, protagonizado numa pequena localidade por vizinhos cristãos e judeus. Enquanto nas crianças vinga a inocência e o amor, nos adultos domina a inveja e a intolerância que os leva a cometer actos de grande crueldade.

Continuo a achar que é um livro magnífico, agora ainda mais. Não é um livro sobre o Holocausto, embora possa parecer, é um livro sobre a leitura, o amor e a maldade humana.

Recomendo muito, esta e qualquer obra do autor.

08 março, 2021

Dia da Mulher





O mar dos meus olhos

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes,

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética




06 março, 2021

𝙀𝙢 𝙏𝙤𝙙𝙤𝙨 𝙤𝙨 𝙎𝙚𝙣𝙩𝙞𝙙𝙤𝙨, de Lídia Jorge



Autor: Lídia Jorge
Título: Em Todos os Sentidos
N.º de páginas: 261
Editora: D. Quixote
Edição: 1.ª- Abril 2020
Classificação: Crónicas
N.º de Registo: 3230


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


São 41 os textos classificados na introdução pela autora como crónicas “Como não podemos vencer o tempo, escrevemos textos que o desafiam a que chamamos crónicas.” (p. 11). Porém, no texto 24, “O Signo da Brevidade”, a autora também escreve “dizem-me que estas crónicas não são verdadeiras crónicas porque têm contos na sua origem. Aceito essa declaração de impureza. Infiel seria eu se assim não fosse. Pois, na verdade, escrevo contos desde que aprendi a redigir,… Porque um conto é um raciocínio colorido,” (p.149).

Ora é justamente esta mescla de crónica, de conto, de testemunho, de memórias que tornam estes textos interessantes e singulares. Neles, a autora apresenta-nos o seu olhar atento e lúcido sobre a actualidade, reflexões críticas deste mundo ora cruel, ora solidário, ora selvagem… mas também de um mundo belo, de amizade, de aceitação do outro,… estes textos revelam uma enorme serenidade, sabedoria e lucidez.

Todos partem de uma história, de uma memória, de um facto concreto, mas que em crescendo se vão desenvolvendo até ao propósito final que por vezes é apenas sugerido. O que me leva a concordar com a afirmação “ Existe um oximoro na arte, ela atinge-nos em pleno peito quando sugere, e não mostra.” (p. 211)

Recomendo vivamente.


01 março, 2021

𝙊 𝘿𝙚𝙡𝙛𝙞𝙢, de José Cardoso Pires


Autor: José Cardoso Pires
Título:O Delfim
N.º de páginas: 363
Editora: Moraes
Edição: 1.ª- Maio 1968 - 7..ª  - Janeiro 1978
Classificação: Romance
N.º de Registo:184


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de O Delfim, considerada a melhor obra do escritor, foi um autêntico deleite linguístico. Muito bem escrito, num tom bem-humorado e repleto de ironia, transporta-nos para uma pequena localidade, Gafeira, onde nada de importante acontece a não ser a caçada anual.
“Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas.” (p.39)

É nesta magnífica encenação que o leitor vai tomar conhecimento, pela voz do escritor-caçador, de uma história de crime e mistério que ocorreu na lagoa da aldeia.
“Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.” (p.9) e acrescento eu, O Delfim.

Gafeira, terra de uma família tradicional e privilegiada, dona de uma lagoa mítica, é então o palco do passado, das lendas, dos rumores, das sombras, das superstições, onde a sua população vive uma existência rural, alheia ao progresso, apesar das marcas de modernidade que vão surgindo, e confinada em si mesma, onde misticismo e realidade muitas vezes se confundem.

Este livro, publicado em 1968, é uma verdadeira caricatura do Estado Novo e simboliza, por excelência, o tempo da decadência, o fim de um regime, muito bem plasmado em Palma Bravo, O Delfim, que sem poder ter filhos, representa o fim de uma linhagem, em Maria das Mercês, sua mulher, que morre afogada na lagoa, na própria lagoa que adquire características fantasmagóricas e no narrador que insone no seu quarto desfila em pensamento o passado e o presente, as conversas que teve com os habitantes da aldeia e os acontecimentos que ocorreram, sem todavia desvendar o mistério das mortes.

Se ainda não vos convenci a ler este livro, deixo mais dois excertos que considero magníficos:
Falta uma vírgula na paisagem:
E a tarde escorre sem estremecer. Nem um golpe de ar, nem um pássaro, um ruído ao menos a descer dos montes pela estrada. Isto, no fundo, é morte. Podia-se pôr uma cegonha na torre da igreja – seria a vírgula. Um pescoço longo e curvo. Espalmado no ar sobre o largo.” (pp.136 e 137)
e
“«Mulher inabitável…» Gosto, é frase altiva, a prumo – de título para alegoria:
A MULHER INABITÁVEL
Na brancura de uma folha de papel (que é indiscutivelmente um território de sedução, um corpo a explorar), no centro e bem ao alto, planta-se a frase. Ela apenas, o título, como um diadema de dezassete letras.” (p. 139)