30 maio, 2022

𝑬, 𝒅𝒆 𝒓𝒆𝒑𝒆𝒏𝒕𝒆, 𝒂 𝒂𝒍𝒆𝒈𝒓𝒊𝒂, de Manuel Vilas

 


Autor: Manuel Vilas
Título: E, de repente, a alegria
Tradutor: Vasco Gato
N.º de páginas: 405
Editora: Alfaguara
Edição: Março 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3225)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


E, de repente, a alegria é a continuação, de certa forma, do seu romance anterior. Neste, fica mais clara a figura do narrador autobiográfico. Temos a exaltação do amor filial evocado quer pelas memórias dos pais (os seus fantasmas) quer pelas vivências dos seus filhos ainda jovens. Focando-se na sua vida de escritor, o “viajante da palavra” como ele se intitula, vai deambulando pelo mundo para falar dos protagonistas do seu último livro, aquele que efectivamente lhe deu protagonismo, encontrando sempre algo que lhe avive a memória e o transporte para o passado e inevitavelmente para o pai ou para a mãe.

Assim, Manuel Vilas, de país em país, de cidade em cidade, de hotel em hotel, sempre em viagem com a sua mala e as suas memórias, vai coabitando com Arnold, “o senhor da minha confusão, o chefe da minha instabilidade emocional” (p.53) e revisitando o passado para resolver o futuro.

“Aquela mala e eu, duas estátuas de solidão, a andar pelo mundo, os dois infinitamente perdidos, a pedir alegria, a andar pelos aeroportos, de cidade em cidade, ambulantes, pois o movimento é prova de vida.” (p. 53)

Com extrema facilidade fala de si e dos seus próximos mais queridos (pais, filhos e mulher actual), das suas emoções, das suas perturbações e fragilidades e da sua solidão. Escreve para “arrumar” a sua vida, para dar sentido às suas memórias, para criar marcas que ficarão nas memórias dos seus filhos. Escreve para que a sua vida fique registada, para que os filhos, no futuro, não precisem de inventar o passado do pai como ele teve de fazer com os seus. Escreve “em busca de um perdão imaginário.”

O seu registo intimista e confessional penetra no leitor e fá-lo intuir e partilhar o que lhe vai na alma. O leitor torna-se cúmplice dos seus momentos de alegria, de procura da beleza, mas também da sua luta interior, das suas noites em branco, dos momentos negros que lhe infernizam a vida e o colocam, por vezes, na iminência da autodestruição. Mas o amor sobrepõe-se à depressão, à vontade de acabar com tudo.

Manuel Vilas ao falar de si e dos seus entes mais queridos, fala também de Espanha, do mundo e das transformações culturais, sociais e políticas.
Percebemos que há uma forte consciência da fugacidade do tempo (“O violento ciclo da vida, e penso agora no meu envelhecimento, cumpre-se inexoravelmente”), da proximidade da morte e da necessidade clara de reflectir sobre a sua existência, sobre a solidão, o desespero e a depressão e, sobretudo, a busca incessante da beleza, ou seja, da alegria. A beleza que surge nas coisas mais banais do quotidiano, ou no amor que sente ainda pelos pais, ou no convívio com os filhos e a mulher ou ainda numa conversa com um leitor numa das suas múltiplas apresentações que faz pelo mundo.

“(…) disse que eu era um órfão com cinquenta anos. É uma definição exacta de mim mesmo. Um órfão com mais de cinquenta anos que se arrasta pelo mundo atrás de uma coisa nova que apareceu na sua vida: uma esperança à qual umas vezes chama beleza, e outras, alegria. E há que ter fé na alegria, porque sem ela a vida humana não prevalecerá.” (p.239)



22 maio, 2022

𝑨 𝑺𝒂𝒏𝒈𝒓𝒂𝒅𝒂 𝑭𝒂𝒎í𝒍𝒊𝒂, de Sandro William Junqueira


Autor: Sandro William Junqueira
Título: A Sangrada Família
N.º de páginas: 195
Editora: Caminho
Edição: Junho 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3358)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio do autor e as expectativas estavam altas. Não desiludiu. A história das famílias Capote e Monteiro é narrada a quatro vozes. Filomena, Ezequiel, Teodoro e Manuel Monteiro são os protagonistas deste “drama-pouco-burguês” que vivem do medronho e que praticam o ódio e a violência, mas também de amor de uma maneira pouco convencional.
“ Duas famílias equidistantes em terras e riqueza, inimigas em medronho, continuam a exercer o ódio e a praticar o rancor. (…) E se ele cair, podre, no chão, não há fermentação nem destilação. E não há aguardente para ninguém. E sem não há substância que nos alimente. O ódio fermentado. O amor destilado” (p. 28)

O enredo desenrola-se na serra de Monchique onde o fogo é um “turista” devorador e recorrente que facilmente anula as ilusões dos seus habitantes e produtores da famosa aguardente de medronho.
Parece uma história banal, não tivesse o autor subvertido a escrita, o enredo, a estrutura, as palavras e até os ditados populares. Num jogo complexo, as quatro personagens, de forma alternada, contam-nos as suas histórias (e as histórias dos outros elementos da sua família), os seus actos, os seus pensamentos, os seus desejos e vinganças.

O conhecimento da história destas duas famílias, que sempre se odiaram, mas que a dada altura se ligam por amor, ou será por ânsia de vingança? (Cabe-vos a vós, futuros leitores, desvendar este enleio) vai ser adquirido capítulo a capítulo, de voz em voz, ora baralhando, ora esclarecendo.
Numa escrita direta, desabrida, vernácula, fragmentada e repetitiva, as múltiplas facetas das personagens desfilam ao longo das 195 páginas e o leitor deixa-se arrastar e seduzir sem por vezes destrinçar a ficção da realidade.
O autor é eficaz nessa ilusão pois ao transpor para as personagens essa dúvida, consegue actuar diretamente no leitor e, assim, confundi-lo. “Quem me dera ser uma personagem e este drama todo, uma ficção” refere Manuel Monteiro (p. 129).
Penso que é graças à presença desta ilusão e à interpelação constante do leitor que a mensagem passa, que a crítica, nem sempre, perceptível se constrói e se interioriza.
“ Se falo disto, se conto estas coisas, é porque dói.
Faltam árvores a este país e ninguém faz nada.
É só palavras, palavras, palavras:
Se não fossem eles, Teodoro, Ezequiel e Filomena, eu não estaria aqui:
Se não fossem eles e o fogo, vocês não estariam aqui.” (p. 75 – voz de Manuel Monteiro)


14 maio, 2022

𝑨 𝒉𝒆𝒓𝒂𝒏ç𝒂 𝒅𝒆 𝑬𝒔𝒛𝒕𝒆𝒓, de Sándor Márai

 



Autor: Sándor Márai
Título: A herança de Eszter
Tradutor: Ernesto Rodrigues
N.º de páginas: 150
Editora: D. quixote
Edição 6.ª: Fevereiro 2011
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em A herança de Eszter, a narrativa desenvolve-se numa analepse, isto é, a protagonista, narradora omnisciente, conta a “história do dia em que Lajos veio ver-me pela última vez e me roubou.” (p. 7). Por isso ela conhece bem os factos, as intrigas e o carácter de Lajos, o único homem que amou em toda a sua vida.
Como um círculo que se fecha, também Eszter sentiu necessidade de rever e de narrar a sua vida de enganos, de submissão, de abandono. Fê-lo porque sentiu que, aproximando-se da morte, só assim resgataria a paz. É o ponto final de uma história de mais de vinte anos, de uma história de mentiras, de desilusões, de roubos e, contudo, de esperança e de sonho.

Vamos assistindo incrédulos a tudo o que Eszter nos narra sobre Lajos e não entendemos tanta submissão, tanta inércia, tanta cedência.
Sándor Márai é exímio na descrição psicológica das suas personagens. Numa escrita simples, profunda e sensível conta-nos a história desta mulher solteira que viveu sem brilho um amor doentio por um canalha sedutor e sem escrúpulos.
É brilhante como o carácter das personagens é desvendado e como vamos assimilando a noção de dever (“cumprir o meu dever”) da protagonista, como a sua fragilidade emocional vai num crescendo, tornando-se facilmente manipulável, permanecendo, contudo, lúcida.

Fica assim bem claro o antagonismo de carácter das duas personagens, tornando incompreensível, para o leitor, a atitude de Eszter.

Livro que se lê num dia, mas que deixa marcas porque é uma história verosímil de grande densidade psicológica.
 Recomendo.


13 maio, 2022

 


Autor: Vera Duarte
Título: Amanhã Amadrugada
N.º de páginas: 104
Editora: Vega
Edição: 1993
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (BMS)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Em Amanhã Amadrugada, Vera Duarte revela-se uma lutadora pelos direitos humanos. Para tal, convoca o amor, a paixão , a justiça, a igualdade, ou pelos menos, um maior equilíbrio de género, a liberdade.

A sua escrita revela-se de forma antagónica, dividida e sempre indagadora e consciente do muito que ainda há para fazer numa sociedade onde a mulher permanece “prisioneira de estereótipos interiorizados e recusados” (p. 10).
Vera Duarte divide o seu livro em quatro partes (“Cadernos”) e neles descreve o que viveu, o que sentiu, o que observou de forma “confessional, emotiva e crítica”.

Temos textos sobre o amor, a paixão, o Eu/Tu, a mulher, o mar, o arquipélago, a morte, a revolução, o sonho, a ânsia da liberdade.

"Carência

Amar-te loucamente
abrir sobre ti as janelas do meu ser
ser campo aberto e florido
e viver assim
em estranhas madrugadas
à luz dos candeeiros
envolta em luas e neblinas?

antes
êxtase e paixão
mãos vazias
corpo carente"

Percebemos, à medida que avançamos na leitura dos textos e dos poemas, o seu amor incondicional a Cabo Verde, a África, e o desejo de uma pátria livre.
Penso que ao interligar prosa (poética) e poemas, fica claro que a ausência de fronteiras na literatura se deveria aplicar ao mundo. A sua liberdade ficcional, representa o seu desejo de liberdade como mulher e como povo.

“(…)
Homens mulheres crianças
Na pátria livre libertada
Plantando mil milharais
Serão a chuva caindo
Na nossa terra explorada”

10 maio, 2022

𝑶 𝑫𝒆𝒔𝒆𝒓𝒕𝒐 𝒅𝒐𝒔 𝑻á𝒓𝒕𝒂𝒓𝒐𝒔, Dino Buzzati

 

Autor: Dino Buzzati
Título: O Deserto dos Tártaros
Tradutora: Margarida Periquito
N.º de páginas: 231
Editora: Cavalo de Ferro
Edição 4.ª: Maio 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3359)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Feliz a hora em que me recomendaram a leitura deste livro, no clube de leitura do PNL. Foi assim que descobri o autor e esta belíssima e surpreendente narrativa. Provavelmente ter-me-ia escapado, como me escapou até à data, e, agora, depois de o ler, confesso que seria uma lacuna literária imperdoável.

O Deserto dos Tártaros foi publicado pela primeira vez em 1940, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. É considerada a obra mais importante de Buzzati e integra a extensa lista dos clássicos da literatura mundial.
Narra a história de Giovanni Drogo promovido a oficial. O jovem tenente é destacado para a Fortaleza Bastiani localizada na fronteira com um deserto. Lugar isolado e inóspito, sem acção, sem guerra, que apenas promove uma vida entediante, rotineira, porém ditada pela burocracia e por protocolos completamente anacrónicos.

Drogo de início pensou desistir e abandonar a Fortaleza, mas algo de inexplicável aconteceu assim que avistou o edifício e a paisagem envolvente e acabou por ficar…
“Todavia, como na tarde anterior do fundo do desfiladeiro, Drogo olhava-a [a fortaleza] hipnotizado, e uma inexplicável agitação penetrava-lhe no coração.” (p. 22)
Não vou revelar mais nada sobre a vida do protagonista na fortaleza, pois tiraria todo o encanto da descoberta da leitura. Posso, contudo, acrescentar que “ justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo (…) Sentira o pulsar do tempo a marcar avidamente o compasso da vida.” (pp. 52-53)

Todo o oficial que é enviado para este lugar tem o sonho, o desejo, de alcançar a glória numa batalha, a “esperança de coisas nobres e grandiosas”, mas o narrador omnisciente vai fornecendo indícios, presságios ao longo da narrativa e cedo percebemos que tal poderá não acontecer. Mas a dúvida persiste no leitor e este jogo é magnificamente conduzido ao longo do texto.

Acompanhamos o tédio, o torpor, a apatia, a inércia perante uma tomada de decisão, a infelicidade, mas também a vaidade militar, o “prazer das regras de serviço”, o prazer da solidão, o hábito de uma vida acomodada e rotineira e as emoções sentidas perante a beleza das “negras voragens do vale”, das montanhas cobertas de neve, dos ecos das cornetas, das luzes do crepúsculo, …

Tal como no mito de Sísifo onde “o homem vive sua existência em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível”, aqui, na narrativa os homens preparam-se diariamente para uma batalha que nunca acontecerá, para a glória que nunca conhecerão. “A glória é a moeda mais inútil, vã e falsa em uso entre nós.“ (Montaigne)

É o absurdo! E assim, o tempo passa, e passa e “a vida da Fortaleza devorava os dias, um após outro, todos semelhantes, a uma velocidade vertiginosa.” (p. 75)
É um livro sobre a fugacidade do tempo, sobre decisões, sobre oportunidades perdidas e sobretudo sobre o conformismo, e, apesar de tudo, também sobre a esperança.
É um livro que levanta muitas questões, que nos faz reflectir sobre o sentido da vida, sobre as decisões que tomamos, ou não, ao longo da nossa existência.

Recomendo vivamente!

 

01 maio, 2022

Dia da MÃE!



“Conheço a tua força, mãe, e a tua fragilidade.
Uma e outra têm a tua coragem, o teu alento vital.
Estou contigo mãe, no teu sonho permanente na tua esperança incerta
Estou contigo na tua simplicidade e nos teus gestos generosos.”

Poema de António Ramos Rosa