28 agosto, 2021

𝒆𝒔𝒕á 𝒇𝒓𝒊𝒐 𝒍á 𝒇𝒐𝒓𝒂..., de António Panarra



Autor: António Panarra 
Título: Está frio lá fora...
N.º de páginas: 862
Editora: Guerra & Paz
Edição: Novembro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3269)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Está frio lá fora… é o primeiro (grande) romance de António Panarra. É um romance intimista, narrado a várias vozes, que aborda essencialmente temáticas intemporais como o amor, a perda, a sexualidade, a amizade, a solidão, a espera, a morte. De memórias, de escrita...
“Ao silêncio seguiu-se o seu sorriso. Inequivocamente triste. Evocador – diria eu – de memórias, histórias, sofrimentos. Poucos segundos levaram os seus olhos a despedir o tom baço, quase de cegueira e a regressarem à vida, num refulgir que os fez de novo azuis, da cor do céu.” (p. 193)

Manuel, o protagonista, narra-nos o grande amor da sua vida. Num enredo intenso, longo, dissecado, vamos acompanhando a paixão avassaladora entre Manuel e Afonso. Uma paixão de encontros, ternura e prazer, mas também de ausências e esperas, de solidão, de tristeza. É uma paixão que permanece para além da morte. “Encontro-me noutro plano da minha própria existência. Algures no meu interior, onde afinal habitas e habitaste sempre (…)” (p. 633)
É uma paixão de incertezas, de procura do “eu”, de dúvidas existenciais, de questionamentos,… “E eu precisava saber de mim. Saber quem sou, sem dúvida, mas essa era uma aventura que eu queria viver e só no fim, porventura, teria respostas. No confuso mapa de questões em que neste momento me movimento, preciso de saber pra onde ir, preciso de saber para onde posso ir sem que os meus passos sejam falsos logo à partida.” (p. 308)

Mas para além da história de Manuel e Afonso, há outras, muitas outras como a de AH, de Llena, de Idalina, de Simone, de Tomás, de Sancha,… histórias de vida complexas, todas marcadas pela dor de uma perda. Histórias narradas, de forma sublime, em longas conversas, por vezes, monólogos de quem rememora o passado, de quem revê memórias, em jeito de catarse.
“(…) A sua solidão! Profunda. Profundíssima. E não falo de ser ou não amada, de amar ou não. Falo de uma forma muito mais fundamental de solidão. Aquela em que um indivíduo está exclusivamente perante a sua consciência, perante o seu passado, perante as suas perdas e a sua própria fragilidade.” (p.393)

É um livro magnífico, perturbador, marcado pelo amor e pela liberdade de escolhas. É um livro que recomendo, que deve ser saboreado, tal como refere o protagonista quando, na página 129, fala das suas leituras:
“ Leio devagar (…) ler deixou de ser uma diversão ou uma forma de ocupar o tempo. Ler passou a ter valor. Ler passou a ser importante. (…) Aprendi então que um livro vale pela história que conta, e também que uma história contada vale pelas palavras escolhidas para conta-la. (…) Descobri-me sensível ao belo das palavras e ao que contêm de transcendência. Seja a arte das palavras harmónica ou dissonante, ou mesmo violenta e brutal, sobressai delas – se sabiamente escolhidas – o poder de acordar em quem as lê a intuição da dor, do sofrimento, do amor ou da alegria, da felicidade ou da mais profunda tristeza.”

É mesmo isto. Este livro vale pela história que conta e também pelas palavras sabiamente escolhidas.

15 agosto, 2021

𝑨𝒒𝒖𝒊 é 𝒖𝒎 𝒃𝒐𝒎 𝒍𝒖𝒈𝒂𝒓, de Ana Pessoa e Joana Estrela


Autor: Ana Pessoa
Ilustração: Joana Estrela
Título: Aqui é um bom lugar
N.º de páginas: 244
Editora: Planeta Tangerina
Edição: Março 2019
Classificação: Diário gráfico
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Aqui é um bom lugar é um diário gráfico muito original. Escrito por Ana Pessoa e ilustrado por Joana Estrela tem como protagonista uma jovem de 17 anos, a terminar o ensino secundário.
De leitura rápida e fácil revela textos curtos, pensamentos, emoções, memórias, banalidades, frases que ouve na rua, situações da escola, de leituras que inicia, que acaba …. De vez em quando lança uma pergunta, (O que é a loucura? O pensamento?...) dá a resposta, faz jogos de palavras, cita provérbios, expressões idiomáticas, revela a sua paixoneta pelo professor de Educação Física, etc, etc…. e tudo isto muito bem ilustrado com desenhos, recortes, fotos. A própria escrita (tamanho, estilo,…) diverge e torna-se por si só uma ilustração. Tudo escrito e ilustrado a azul e preto sobre caderno branco.

“A cachopa foi à biblioteca. Escolheu um livro que se chama “O AMANTE”. A cachopa lê sobre o amante porque não tem um amante. Bruxo.” (a ilustração representa a capa do livro onde consta o desenho de um pássaro, o título e a autora - Marguerite Duras)

Na página seguinte continua: “ A protagonista do livro tem 15 anos e já tem um amante. A leitora tem 17 anos e nunca teve um amante na vida.
PROTAGONISTA – 1 Leitora – 0”

Parece muito simples, não é? É, mas o simples é belo porque há sinceridade, sensibilidade e, por vezes, uma ponta de ironia. E espelha bem a maneira de agir e de pensar de uma adolescente. Vou tentar disseminar esta ideia, criar um diário gráfico, junto dos mais jovens.


13 agosto, 2021

𝑳𝒆𝒗𝒂𝒏𝒕𝒂𝒅𝒐 𝒅𝒐 𝑪𝒉ã𝒐, de José Saramago

 



Autor: José Saramago
Título: Levantado do Chão
N.º de páginas: 366
Editora: Caminho
Edição 14ª: Fevereiro 1999
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1039)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em A estátua e a pedra - o autor explica-se, texto que José Saramago apresentou numa conferência em Turim e que foi mais tarde publicado em livro, é-nos dito pelo próprio que Levantado do Chão (1980) é o primeiro livro do ciclo da estátua tendo o segundo ciclo, o da pedra, iniciado com  Ensaio sobre a Cegueira (p. 45).
Para que possamos entender esta metáfora, transcrevo a explicação do próprio autor: “(…) começou outro período da minha vida de escritor, no qual desenvolvi novos trabalhos com novos horizontes literários, dispondo portanto de elementos de juízo suficientes para afirmar com plena convicção que houve uma mudança importante no meu ofício de escrever. Não falo de qualidade, falo de perspectiva. É como se desde o Manual de Pintura e Caligrafia até a O Evangelho segundo Jesus Cristo, durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. (…) Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com o Ensaio sobre a Cegueira.” (pp. 33 e 34)

Partindo desta explicação, entende-se melhor a importância da obra Levantado do Chão, já com o estilo que se tornará muito próprio de Saramago. A história situa-se no Alentejo, descreve a vida de três gerações da família Mau-Tempo, desde os finais dos século dezanove até à Revolução de Abril de 1974 e relata a vida duríssima do campo, a miséria do povo, o poder dos latifundiários, da guarda republicana, a hipocrisia da igreja e as lutas camponesas para conseguir trabalho, redução de horário e um pagamento mais justo, a perseguição aos comunistas e a violência praticada quer nos postos da guarda quer nas prisões.
É um livro brilhante. Saramago de forma muito crítica retrata uma época política difícil, mas é nas pessoas, no seu quotidiano, nas suas lutas, nas suas dificuldades que ele centra toda a acção. E ao acompanharmos a família Mau-Tempo, vamos percebendo a evolução política e social do país, vamos entendendo a luta duríssima dos camponeses pelos seus direitos por uma vida mais digna e justa.

Saramago apresenta-nos uma escrita crítica, sensível, poética e perturbadora. Por exemplo, quando descreve um dos momentos mais cruéis, de tortura, recorre à metáfora do carreiro de formigas que surpreende, perturba e, simultaneamente, encanta o leitor.



03 agosto, 2021

𝑶 𝑳𝒊𝒗𝒓𝒐 𝒅𝒐 𝑫𝒆𝒔𝒍𝒆𝒎𝒃𝒓𝒂𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐, de Ondjaki

 


Autor: Ondjaki
Título: O Livro do Deslembramento
N.º de páginas: 229
Editora: Caminho
Edição: Julho 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3236)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Ondjaki é um contador de estórias cativante. Gosto de o ouvir falar. Gosto de o ler. Gosto de o ler em voz alta para melhor captar a harmonia e a poesia das suas palavras.
Neste último romance auto ficcional, ele dá voz a uma criança angolana, que vive em Luanda. Numa Luanda ainda assolada pela guerra, onde ainda impera o medo “a cidade andava cheia de silêncios” (p.228). Porém, a narrativa centra-se em grande parte numa época de paz e só no final assistimos ao reacender da guerra civil.

É então pelas lembranças e pelo olhar de Ndalu (Ndalinho) que vamos conhecendo as suas estórias e a dos camaradas adultos (família, amigos e vizinhos). São páginas de puro encanto, de sensibilidade e boa disposição. Nem tudo é verdade, mas parece que é de tão bom o registo que enleva o leitor. Mas isso não tem importância e o leitor foi informado, logo na página 16, que “em Luanda, cadavez uma pessoa não sabe passar um dia só sem inventar uma estória”

E as estórias verdadeiras ou inventadas são maravilhosas, e como "às vezes aqui quando te dizem uma coisa, é mais fácil só acreditar, duvidar dá muito trabalho e ainda traz discussões que não levam a lado nenhum” (p. 56), então deixemo-nos embalar pelas lembranças e pensamentos de Ndalinho e pelas palavras poéticas de Ondjaki.
“ gosto dessa hora de muito cedo, parece que a cabeça também fica mais limpa, com bom espaço para pensamentos
as coisas que chegam dos sonhos, os restos da noite, misturam-se com todas essas coisas frescas que penso de manhã, penso sozinho: penso de lembrar, penso de imaginar e penso ainda de misturar com todos os barulhos e as coisas que tenho de imaginar que estão a acontecer nas outras casas, nos outros quintais, depois, se a pessoa deixar os olhos fecharem, quase que recomeça a sonhar…” (p. 104)

e ainda

“ eu a olhar o olhar da tia Tó toda orgulhosa, como ela dizia, da minha língua portuguesa, ás vezes ela perguntava-me onde é que eu ia buscar tantas ideias, se eram de verdade ou inventadas, eu tinha de lhe explicar outra e outra vez que em Angola não era preciso inventar nada, ou a cidade te dava as estórias, ou a rua, ou a escola ou então havia sempre uma caixa cheia de estórias em cada família” (p.226)

É verdade, Ondjaki tem uma enorme caixa cheia de belas estórias que tão bem sabe partilhar com os seus leitores.
Recomendo muito este livro, ou qualquer um do autor. Este foi publicado em 2020 para assinalar os 20 anos de carreira literária.



01 agosto, 2021

𝑴𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓𝒆𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝒍ê𝒆𝒎 𝒔ã𝒐 𝒑𝒆𝒓𝒊𝒈𝒐𝒔𝒂𝒔, de Stefan Bollmann

 


Autor: Stefan Bollmann
Título: Mulheres que lêem são perigosas
N.º de páginas: 150
Editora: Círculo de Leitores
Edição: Abril 2007
Classificação: Arte
N.º de Registo: (BE)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Quando descobri este livro na biblioteca da minha escola, decidi imediatamente que teria de o ler. Quem gosta de livros e de ler não fica indiferente ao título.

É sobretudo um livro de arte, belíssimo, que revela várias obras de pintura, fotografia e desenho. Todas reproduzem mulheres a ler. Todas são acompanhadas de uma breve explicação sobre o artista, a época e sobre a mulher que lê.
Elke Heidnreich refere isso mesmo no seu prefácio: “ Nas imagens deste livro faltam os homens. Trata-se apenas de mulheres que lêem. São mulheres mais velhas e mulheres mais jovens, estão sentadas ou deitadas, vestidas ou desnudas, vemos os seus braços, o seu cabelo, a cabeça inclinada, só raramente vemos os seus olhos, só quando acabaram de ler ou olham em frente depois de interromper a leitura por alguns momentos.” (p.17)

Elke Heidnreich faz uma contextualização apaixonada da leitura, da relação da mulher com a leitura, numa intertextualidade com a arte e a literatura.

Stefan Bollmann, introduz este livro com uma breve história da leitura desde o século XIII ao XXI.
“ A leitura dá-nos prazer e consegue transportar-nos para outros mundos – ninguém que já perdeu a noção do tempo e do lugar quando estava embrenhado num livro irá refutá-lo. Mas a ideia de que a leitura deve dar-nos prazer, de que esse é o seu principal objectivo, é relativamente nova: foi mais ou menos definida no século XVII e ganhou raízes mais fortes no século XVIII.” (p. 23)
No final da introdução, o autor explica o porquê da apresentação das imagens de artistas famosos. “A galeria de imagens de mulheres a ler que se segue funciona como um museu virtual. Folheando o livro para trás e para diante, o leitor pode deambular nele, captar olhares e fazer associações. Os comentários curtos destinam-se a apoiar este circuito: Até as imagens de leitura precisam de ser lidas.” (p. 37)

Em seis capítulos, como se visitássemos salas de um museu, dedicados às leitoras abençoadas, fascinadas, autoconfiantes, sentimentais, apaixonadas e solitárias, encontramos sempre imagens fortes de mulheres leitoras, livres, confiantes, curiosas, sonhadoras, enigmáticas, apaixonadas, …

Foi um verdadeiro prazer ler este livro, esta obra de arte. Não podemos olvidar que, no início a leitura era apenas uma actividade de homens, já foi muito reprimida, já foi considerada como uma heresia, já foi causadora de distúrbios familiares, políticos, …

Sendo assim, só posso concordar com Elke Heidnreich quando ela refere: “Da leitura resulta a autoconfiança, da autoconfiança resulta a coragem de ter ideias próprias.” (p.17)

Leiam e sejam perigosas!