28 março, 2022

𝑨 𝑬𝒗𝒐𝒍𝒖çã𝒐 𝒅𝒆 𝑪𝒂𝒍𝒑𝒖𝒓𝒏𝒊𝒂 𝑻𝒂𝒕𝒆, de Jacqueline Kelly


A Evolução de Calpurnia Tate


Autora: Jacqueline Kelly
Título: A Evolução de Calpurnia Tate
Tradutora: Irene Guimarães
N.º de páginas: 246
Editora: Contraponto
Edição: Junho 2011
Classificação: Juvenil
N.º de Registo: (3352)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Calpurnia Tate, também apelidada por Callie Vee, é uma garota encantadora. Tem onze-anos-quase-doze e é a “única rapariga de sete irmãos”, factor relevante para a sua formação.
A história decorre no Texas, no ano de 1899, na viragem do século, numa época em que a mulher ainda se dedicava à aprendizagem das lides domésticas, aos bordados, à costura e às lições de música, de piano mais concretamente. Ora a nossa protagonista detesta estas tarefas convencionalmente femininas e prefere dedicar-se à leitura (é fascinada por Darwin, Dickens, e outros) e à investigação de animais e de plantas.
“CONTRA A MINHA VONTADE, chegara àquela idade em que uma jovenzinha deve adquirir as competências necessárias para governar o lar depois do casamento.” (p. 155)

Filha de uma família abastada que mantém a tradição de educar os filhos com determinados valores e de preparar as raparigas para a gestão do lar e da criação de uma família, Calpurnia foge habilmente a estas obrigações e refugia-se no laboratório com o avô. Curiosa e inteligente vai saber conquistar este homem, que detesta crianças e confunde os netos, e que vive num mundo onde tudo se questiona, se pensa e se regista num caderninho de apontamentos; num mundo repleto de experiências, de pesquisas, de observação, de catalogação e de análise quer de animais, de plantas, de um céu estrelado.

É neste mundo de aprendizagem, de mistério e de descoberta que Calpurnia se sente feliz ao ponto de desejar ir para a universidade (impensável para as raparigas da época que deviam casar e procriar) e tornar-se cientista. Sempre incentivada pelo avô com quem estabelece uma amizade sincera e cúmplice, Calpurnia vai evoluindo e desenvolvendo o seu espírito crítico.
“Saí pelas portas das traseiras e dirigi-me ao laboratório. Porquê perder tempo a «brincar», como me tinham ordenado, quando podia passar um tempo precioso com o avô? Ele não me considerava perigosa, quando me punha a pensar sobre alguma coisa. Na verdade, ele até me encorajava a isso.” (p. 212)

Narrado na primeira pessoa, Calpurnia seduz o leitor que se deixa facilmente envolver nas suas peripécias e na sua busca constante quer do autoconhecimento quer do conhecimento científico/naturalista.

Há razões suficientes para recomendar a leitura, sobretudo aos jovens curiosos.


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21 março, 2022

Um poema de Gastão Cruz (20/07/1941 - 20/03/2022)

 


foto minha


Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.

Gastão Cruz


20 março, 2022

𝑬𝒖, 𝑴𝒂𝒍𝒂𝒍𝒂, de Malala Yousafzai com Christina Lamb

 


Autora: Malala Yousafzai com Christina Lamb
Tradutores: Maria de Almeida, Carlos Andrade e Cristina Carvalho
Título: Eu, Malala (A minha luta pela Liberdade e pelo Direito à Educação)
N.º de páginas: 351
Editora: Editorial Presença
Edição 6.ª: Outubro 2014
Classificação: Biografia
        N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Eu, Malala é um livro que documenta a vida de uma jovem paquistanesa que desde muito cedo lutou pela liberdade e pelo direito à educação para todas as crianças. Malala teve o privilégio de nascer numa família progressista que sempre a incentivou a estudar, a emitir a sua opinião, a falar publicamente e a lutar pelos seus sonhos.
O pai, homem instruído e defensor de uma educação para todos, abriu escolas para que meninos e meninas a pudessem frequentar e assim diminuir a taxa de analfabetismo no seu país.
Malala e as suas amigas adoravam ir à escola e tornaram-se excelentes alunas, mas as ameaças começaram a surgir, sobretudo sob o regime talibã e muitas meninas abandonaram a escola. Incentivada pelo pai, ativista social reconhecido por muitos e odiado por outros, percebeu que devia lutar pelo direito à educação das raparigas e tornou-se, também ela, uma ativista desafiadora do regime autoritário e opressor da liberdade das mulheres e da educação das crianças.

Narrada na primeira pessoa, a história de Malala expõe a violência, os massacres, as perseguições, o bombardeamento de escolas, a destruição de lojas, de casas… Mas expõe também a hospitalidade e a solidariedade de um povo dilacerado pelo terrorismo e a esperança de um mundo mais justo e mais livre onde as crianças possam sorrir e ser felizes.
Malala nos Agradecimentos referiu “Tive muita sorte em ter nascido de um pai que respeitou desde sempre a minha liberdade de pensamento e de expressão e que me fez parte da sua caravana da paz e de ter nascido de uma mãe que não só me encorajou, como encorajou também o meu pai, na nossa campanha a favor da paz e da educação.” (p. 346)

Esta sorte, Malala soube muito bem aproveitá-la e apesar das ameaças, de ter sido baleada e ter estado à beira da morte, esta jovem inteligente e corajosa sempre acreditou no poder das palavras, no poder da educação e é com elas que luta para que todas as crianças do mundo beneficiem de uma educação gratuita
“ – Peguemos nos nossos livros e nas nossas canetas. São as nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo.” (p. 333)

Ao ler este livro, não posso deixar de ter um pensamento pelo povo ucraniano, também a sofrer sob o jugo de um ditador ganancioso e cruel que mata, bombardeia, destrói e separa famílias. Tudo pela ânsia de um império maior.


13 março, 2022

𝑴𝒂𝒅𝒂𝒍𝒆𝒏𝒂, de Isabel Rio Novo

 

Autora: Isabel Rio Novo
Título: Madalena
N.º de páginas: 199
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3346)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Nunca saio defraudada das leituras que faço dos livros de Isabel Rio Novo. Neste momento, considero-a uma das melhores escritoras portuguesas na nossa produção literária contemporânea.
O livro baseia-se em duas histórias, a da narradora e a da sua bisavó Madalena, assente em tempos distintos: o presente, o passado (1920) e o sonhado, mas que acabam por se interligar e dar sentido à narrativa.
Nesta narrativa há registos autobiográficos soberbamente mesclados à escrita ficcionada. A professora de história doente oncológica vai ocupar o seu tempo, “Tempo para esperar. E até lá, até esse desfecho qualquer, tempo para cumprir.” (p. 55) a ler as cartas dos seus antepassados e a descobrir a “viagem que com elas começava.” (p. 27).
Logo no início, somos informados da doença que afecta a protagonista, receamos pelo teor da narrativa, mas rapidamente percebemos que a urgência da protagonista não é a das “decisões expeditas”, mas sim a de descobrir “novas dimensões do tempo” e por isso opta pela arrumação de coisas velhas herdadas, partindo à descoberta de cartas, livros, fotografias…
Será então o tempo, a passagem do tempo, o fio condutor desta belíssima narrativa. É de vida e de morte, de bons e maus momentos, de sonhos, de memórias, de experiências vividas, de vivências sofridas, de novas dimensões do tempo, de “recorte de momentos, uma coleção de retalhos cheia de emendas e intervalos.” (p. 25)
É na intersecção dos vários tempos que considero que a autora brilhou. A narrativa balança harmoniosamente entre a história da narradora e a da Madalena Brízida, a bisavó, conduzindo o leitor nos meandros da doença e da crise matrimonial, do amor e do desamor, dos amores recalcados. A narrativa é construída no paralelismo destas duas personagens femininas e no final tudo faz sentido.
Gostaria ainda de focar dois aspectos que considerei interessantes. O primeiro é a referência, no enredo, de dois títulos de obras da autora e a segunda é a excelente selecção da obra “Les feuilles mortes”, da pintora surrealista Remédios Varo para a capa. Pormenores que evidenciam a preocupação com os detalhes e com a concepção de uma obra de arte que afinal o livro também é.



06 março, 2022

Cantata de Paz, Sophia de Mello Breyner Andreson

 

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Cantata de paz


Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.


"Vemos, ouvimos e lemos/Não podemos ignorar" é o refrão do poema escrito para uma vigília na Capela do Rato, em Lisboa, contra a guerra colonial e a favor da liberdade. Um poema que dá voz à revolta e que Francisco Fanhais musicou e cantou em 1970. 

Hoje, que a Ucrânia está a ser invadida e arrasada, é urgente revisitá-lo. 


04 março, 2022

𝑶 𝑷𝒊𝒓𝒂𝒕𝒂 𝒅𝒂𝒔 𝑭𝒍𝒐𝒓𝒆𝒔, de Tiago Salazar



Autor: Tiago Salazar
Título: O Pirata das Flores
N.º de páginas: 180
Editora: Oficina do Livro
Edição: Novembro 2021
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: (3350)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A possibilidade de “parir um escrito”, este escrito, como refere o autor no prólogo chegou-lhe por email “Assunto: pirata. Conteúdo: açoriano, das Flores, Lages. Nome: António de Freitas. «Tens aqui o teu próximo livro», escreveu em apenso. Doravante era comigo.” (p. 11) e assim surgiu um romance histórico e de aventura que relata a viagem de António e do seu amigo Fernão que descontentes com a “vida beata” que levavam no Seminário de Angra e almejando ambos um futuro melhor, decidiram fugir e partir em busca de riqueza.
“Duas almas imberbes entregues a um rebanho de padres excitados pela castidade, obrigados a actos de contrição e a limpar as culpas com penitências (…) veio a nascer este ímpeto de escaparmos ao purgatório da ilha.” (p. 19)
Fernão que gosta de ler e de escrever vai ter a função de narrar todas as peripécias de pirataria, de crime, de corrupção, de libertinagem …
Gosto da escrita cuidada do autor e do rigor como enquadrou o enredo no tempo e no espaço históricos e culturais. Estruturado em duas partes – Uma Longa Jornada e A Oriente – o romance descreve, na primeira, as aventuras extraordinárias, por vezes cruéis, da viagem nos mares e na segunda, a vida “pecaminosa” levada em Macau rodeados de prazeres, mas também de malvadezas, de negócios ilícitos mantidos durante anos (tráfico de ópio, casas de prazer e de jogo). Tudo em prol de um enriquecimento louco, ávido e sem escrúpulos.
“Assistíamos e cometíamos estas vis malvadezas com confessa alegria, nem que fosse pelo sucesso de arrecadarmos os espólios, sem nos vermos na triste condição dos espoliados, “ (p. 74)
e
“O ingénuo aspirante a seminarista dera lugar ao astuto bandido, nada lhe molestando a consciência.” (p. 145)
O carácter dos dois piratas açorianos retratado no romance, transporta-nos para o tempo dos descobrimentos, em que os portugueses foram arrojados, inovadores e aventureiros.