31 maio, 2020

Trold - Histórias dos mares do Norte, vol.1, de Jonas Lie



OPINIÃO

Este primeiro volume contém 16 contos. A maioria desenrola-se no Norte da Noruega, nos mares, nos fiordes, nas falésias escarpadas, nas florestas. É nestes ambientes agrestes que a população vive, tendo no mar o seu principal sustento. “Não era nada fácil lutar contra as ondas do mar nas tempestades de inverno. Não era muito longa a vida dos pescadores. “
Jonas Lie relata-nos essas dificuldades povoando os seus contos de monstros e seres fantásticos com poderes sobrenaturais, deuses nórdicos, povos estranhos, figuras fantasmagóricas. Estamos perante uma temática plena de misticismo e crenças populares. 
“Toda a falésia escarpada de Lofoten tem um aspecto tão estranho que evoca exactamente os trolls do Loke de Utgard, os quais foram transformados em pedra, lá no distante mar do Norte”

É uma leitura agradável. Facilmente ficamos seduzidos pela escrita simples destas histórias encantatórias.



28 maio, 2020

O Egipto - Notas de Viagem, de Eça de Queiroz



OPINIÃO


Estas notas são os registos e impressões de Eça resultantes da viagem que realizou ao Oriente, em 1869, como convidado para assistir à inauguração do canal de Suez. Tinha então quase 24 anos, e a viagem prolongou-se por 2 meses e 10 dias… 

Eça conhece várias cidades e aí visita mesquitas, museus, túmulos, cemitérios, bazares, pirâmides, … ; toma um banho turco; viaja de comboio, de barco, de caleche, de burro; deambula pelas ruas estreitas e pelos bairros apinhadas de gente, pelo rio Nilo, pelo deserto e tudo e todos observa atentamente e regista nos seus cadernos.

“A pureza indizível da cor, da diafaneidade, da vida da água, o desenho nítido das pequenas vegetações formam um todo cheio de suavidade. Dá vontade de nos banharmos, de movermos o corpo naquela virgindade viva do elemento” (…) Ao fundo , o morro de Gibraltar, escuro sobre o doce azul, com o seu perfil violento e altivo (…) De longe o seu aspecto é duro, hostil, repulsivo e a cidade, amarelada e humilde, parece uma aldeia pobre perdida na serra áspera, sem nada das outras doces cidades do Sul, (…). O morro de Gibraltar é impenetrável como um deus bárbaro, severo como a lei inglesa.” (pp. 22 e 23)

Tudo nos é descrito com minúcia, por vezes de forma repetitiva, e com grande riqueza de detalhes.

[nos bazares do Cairo] “Tudo aquilo é feito de materiais ligeiros, ténues, frágeis: as traves são delgadas como dedos, esculpidos como cabos de punhais venezianos; vêem-se colunas finas como cajados de pastores, torcidas, dobradas sustentando galerias, amparando pórticos de uma fantasia estranha. As fachadas são rendilhadas, tão buriladas, tão cheias de galerias, de ornatos, de arabescos, que parece que de cima a baixo se estende uma cortina de renda suja, escura, deslavada, rasgada aos pedaços. (…) É uma visão, é uma caricatura, é uma fantasmagoria! “ (p. 156)
Nas suas descrições apreendemos e absorvemos os cheiros, os sabores, as cores, os sons, a música, os cantos , as danças. Parece que também nós, leitores, viajamos até ao Oriente e testemunhamos tudo isto.
Só mesmo Eça de Queiroz com um grande poder de observação e uma curiosidade inata para absorver e transmitir tudo o que viveu, visualizou e captou.
“O Nilo ali é estreito, menos largo que o Tejo. Uma vegetação poderosa, profunda, violenta, cobre as margens, e vem mergulhar as suas raízes na água. Ao longe, as culturas têm o aspecto de uma decoração maravilhosa. É solene, é quase bíblico, de uma serenidade profunda e consoladora. Sente-se que quem atravessa aquelas culturas deve falar baixo. Do céu cai uma luz imóvel e abundante. (…) Aquelas longas linhas, aquela transparência de cores, a serenidade daqueles horizontes, tudo faz pensar num mundo que se desprendeu das contradições da vida, e entrou, se fixou na imortalidade.” (pp. 52 e 53)
“ O fellah (cultivador do vale do Nilo) é alegre, risonho, loquaz, imaginoso; tem uma degradação profunda de carácter , desconhece o que é consciência, dignidade, individualidade. Mas no fundo é feliz. Possui o clima! Anda roto, quase nu, mas neste ar puro e tépido não é um sacrifício (…) de resto, o fellah tem vícios: é mentiroso com simplicidade, falsifica tudo.” (p. 60)
No seu estilo muito próprio, acutilante e sarcástico, Eça descreve a beleza da natureza e ataca ferozmente a degradação das cidades, dos portos, das mesquitas, enfim tudo o que caiu, ruiu e pereceu por culpa do homem, da ganância do homem. Este homem tão bem personificado pelo abutre que voa ´”no céu implacável”.
“ E o rio, a verdura vão perder-se ao longe nas culturas do Delta, que se esbatem nos distantes horizontes, sob a pulverização faiscante da luz. Depois, mais longe, sobre a linha amarelada e fulva do deserto, destacam-se com uma das faces alumiada de sol, nítidas, de contornos finos, poderosas, enormes, as três pirâmides de Gizé. (…)
"O Cairo, visto da cidadela, é o Cairo histórico, dramático, sombrio. É a imensa cidade escura, pobre e arruinada, caindo em pedaços. (…) O Cairo morre de todas as feridas que lhe tem feito cada um dos governos, que lhe têm dado uma dentada! (…) Ali sente-se uma política sem força e sem ideal, uma religião sem espírito, uma arquitectura sem ideia, um povo sem pátria, uma existência de acaso, a ignorância, a vaidade, a sensualidade!” (pp.96 e 97)

No final, não nos restam dúvidas sobre o que verdadeiramente extasiou e surpreendeu Eça .

22 maio, 2020

Nova Iorque, de Brendan Behan


OPINIÃO



Este livro narra histórias muito pessoais de Brendan Behan vividas em Nova Iorque. Brendan Behan é um poeta e dramaturgo irlandês que revela ter uma grande paixão por Nova Iorque o “lugar mais fascinante do mundo”. É um livro de viagens diferente do habitual. O autor foca-se não tanto nos lugares, mas sim nas pessoas com quem se cruza e convive e nos muitos bares que frequenta. 
Sabemos por Vila-Matas, no prefácio, que o livro foi ditado pelo autor “espectacularmente bêbado". Este facto explica a narrativa, por vezes caótica, que saltita de assunto para assunto, tal como um ébrio que vai titubeando. Mas penso que é esta particularidade que cativa o leitor. Estamos perante uma deambulação mental por bares e saloons, com muitas histórias e conversas com famosos e imigrantes irlandeses. Nessa deambulação, há também memórias do seu país natal, da sua família e algumas incursões a Londres e Paris.




18 maio, 2020

O Fio das Missangas, de Mia Couto




OPINIÃO

29 contos (29 “missangas”) integram este livro. Uma temática diversificada que capta o interesse do leitor e o deixa a matutar no final de cada estória. 

“A missanga todos a vêem. 
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. 
Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."

Mia Couto dá relevância ao universo feminino, aqui, quase sempre a mulher é submissa, esquecida, maltratada, pelo homem (marido, pai, tio, irmão…) tal como o fio que une as missangas e que não se vê. A mulher é colocada perante situações de violência, de suicídio, de separação, de traição, de incesto, de morte e de loucura. 
Poderíamos pensar que se trata de um livro duro, cruel devido às temáticas abordadas, mas a escrita poética e os finais mais sugeridos do que explícitos suavizam a realidade e sensibilizam o leitor. Outra característica muito própria do autor e que engrandece a escrita é a criação de neologismos que tão bem interpretam o sentimento, o estado de alma das suas personagens.
“Mas eis: uma súbita vez, passou por ali um formoso jovem. E foi como se a terra tivesse batido à porta de suas vidas. Tremeu a agulha de Evelina, queimou-se o guisado de Flornela, desrimou-se o coração de Gilda.
No tecido, no texto, na panela, as irmãs não mais encontraram espelho. Sucedeu foi um salto na casa, um assalto no peito. As jovens banharam-se, pentearam-se, aromaram-se. Água, pente, perfume: vingança contra tudo o que não viveram: Gilda rimou “vida” com “nudez”, Flornela condimentou afrodisiacamente, Evelina transparentou o vestido. Ardores querem-se aplacados, amores querem-se deitados. E preparava-se o desfecho do adiado destino.” (p. 14) 

No conto que deu o título ao livro, um homem “devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia: - A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas." (p. 68). Bela metáfora que expressa a posição da mulher perante esta sociedade machista, em terras africanas, mas que poderia acontecer em qualquer outro lugar. 



15 maio, 2020

A Montanha da Água Lilás, de Pepetela


OPINIÃO

Pepetela, nesta fábula para todas as idades como o subtítulo indica, oferece-nos uma deliciosa alegoria social.
A narrativa é-nos apresentada sob a forma de um conto. Um conto que “O avô Bento, em noites de cacimbo à volta da fogueira, nos contou.” Ora, numa linguagem simples e poética, complementada por belas ilustrações vamos conhecendo os lupis: cambutas, lupões e jacalupis, animais que “pensavam, falavam e trabalhavam”. Pepetela na sua narrativa recorre ao linguajar angolano e cria neologismos interessantes como lupilar (fala dos lupis) e jacarejar (a fala dos jacalupis), facto que a torna muito viva e atractiva. 
O autor com este conto retrata a diferenciação de classes, a instituição de um poder abusivo e opressivo, o ódio e a cobiça, a ganância e o consumismo. Um grupo que vivia em harmonia, no “sítio mais calmo e perfumado da montanha e dali se podia ver melhor o luar da Lua cheia; por isso era o Morro da Poesia”, até à descoberta da água lilás (água com características próprias), foi-se transformando porque se deixou entusiasmar pelo lucro fácil, pela conversa dos oportunistas, e pelo mau uso da ciência, rejeitando os conselhos dos mais sensatos como o lupi-pensador e o lupi-poeta. 

“Não quero discutir nada, só quero fazer as minhas experiências, a sabedoria resolve tudo. A sabedoria até pode resolver, mas depois os outros utilizam o resultado da sabedoria ao contrário e a coisa vira prejudicial, é o que tem acontecido com os lupis.” (p. 143). 
Em conclusão, o progresso, as descobertas da ciência, são positivos se forem bem utilizados, caso contrário provocam o caos, a guerra, a discórdia, a desarmonia. Esta é para mim, a grande lição desta fábula encantadora.


13 maio, 2020

Na Patagónia, de Bruce Chatwin


OPINIÃO


Este relato de viagens de Bruce Chatwin surpreende pela positiva já que, para além de descrições maravilhosas dos lugares visitados, lega-nos uma colecção de histórias intrigantes dos habitantes da região. Durante os seis meses que Chatwin passou na Patagónia, a sua viagem incidiu na busca de pessoas e de lugares com história. A cada recomendação, ele avança e descobre e vive a Patagónia, e é esta, a sua Patagónia que tão bem nos descreve, mágica e intensa. 

“Anselmo a aconselhou-me a visitar o poeta, o Maestro, como lhe chamava. O poeta vivia sozinho numa cabana de duas divisões à beira-rio, num lugar isolado coberto de damasqueiros. (…) Os seus dedos apertaram-me o braço e fixou-me com um olhar intenso e luminoso. 
- Patagónia! – exclamou. – É uma amante possessiva. Enfeitiça. Uma autêntica sedutora. Envolve-nos nos seus braços e nunca mais nos deixa partir.
A chuva tamborilava no telhado de lata. Durante as duas horas que se seguiram, ele foi a minha Patagónia. “ (p. 63)

“Archie Tuffnell adorava a Patagónia e chamava-lhe «Velha Pat». Gostava da solidão, dos pássaros, do espaço e do saudável clima seco. Tinha administrado uma fazenda de criação de carneiros durante quarenta anos por conta de uma grande companhia inglesa. Quando chegou a altura da reforma, não pôde suportar a ideia de se encafuar na Inglaterra e tinha comprado a sua própria terra, trazendo com ele dois mil e quinhentos carneiros e «o meu homem Gómez» . Archie doara a casa à família Gómez e vivia sozinho numa casinha prefabricada. A sua organização doméstica era um tratado de ascetismo: um chuveiro, uma cama estreita, uma secretária e dois bancos, mas nenhuma cadeira. “ (p.184) 

De Norte a Sul, entre a costa e o interior, o autor vai deambulando em busca de personagens e de lugares marcantes (históricos, lendários, míticos) na construção da Patagónia. “ O estreito de Magalhães é mais um caso em que a natureza imitou a arte” (p.218). Ele cruza histórias de imigrantes, de índios, de colonizadores, de navegadores (Fernão de Magalhães) com os lugares que vai visitando. Assim, a sua narrativa é construída de histórias contadas pelas figuras invulgares que habitam a região: contadores de histórias, exilados, bandidos, fugitivos, marinheiros, donos de bares, criadores de gado, gaúchos, mineiros, camionistas (que lhe davam boleia), sindicalistas, entre muitas outras …  
Se a Patagónia já me fascinava (e nunca lá estive) então, agora, ainda mais!



04 maio, 2020

As Pessoas Felizes, de Agustina Bessa-Luís





OPINIÃO

A escrita de Agustina é profunda, complexa e requer uma leitura atenta com vários recuos e idas ao dicionário. No prefácio, António Barreto informa o leitor que “ este [romance] também não tem enredo. Quase não tem enredo. (…) os locais de Agustina são as memórias, os sentimentos, ou as consequências do real. E as alusões (…) a cronologia de Agustina é sempre incerta, ou antes, nunca é certa, pois é feita de memória e sem sequência”. Assim, ficamos logo a saber que não vai ser fácil, mas que é fascinante e compensador, isso é. 

O enredo situa-se no Porto no final do Estado Novo. Estamos perante uma burguesia muito tradicionalista e conservadora que circula entre a cidade e o meio rural. 
“O lugar era o Porto. Cidade com um preconceito a respeito do trabalho, como outras têm a respeito do prazer, ela era sobretudo uma terra onde a curiosidade é o vandalismo da inteligência e uma espécie de antologia do vazio. O gume da curiosidade actua nos mais insólitos campos, até no olhar que mede a miséria do pobre, esse pobre que vive na via pública e menos da caridade do que da curiosidade burguesa. “ (p. 63)

Nel, a personagem principal, é incapaz de ser feliz apesar da sua riqueza interior, “ O que faz as pessoas felizes é não terem vida interior. “ (p. 118). Ela é a ameaça da estabilidade familiar. Ela vive rodeada de gente frívola e medíocre que deve manter as aparências: “Carranca tinha um ideal, a bem dizer ao nível duma preocupação: conservar a fortuna, a honra e os amigos, o que é demais para um mundo em mutação onde a mediocridade ainda faz triunfar um homem, mas onde os seus talentos não servem para lhe assegurar o triunfo. “ (p.62)
Nel , desde muito jovem, era aconselhada a não pensar. “Pensar é um ofício para os pobres. Goze a vida, conheça gente bela, cultive alcachofras, coisas pouco substanciais. “ (p. 60). Era indesejada porque temida. 

No livro, Nel personifica a beleza e a riqueza de uma região que pretende mudar, modernizar-se, contudo rejeitada por uma sociedade conservadora e acomodada a valores ultrapassados que teme a novidade, a incerteza. 

Recomendo. Como todos os livros de Agustina que já li, também este nos enche a alma pois obriga à reflexão. Também apreciei a constante presença de Anna Karénina, de Tolstoi pela voz de Nel.



03 maio, 2020

Retrato da Mãe




     Conheci-a, pessoalmente, quando ela tinha 28 anos e, desde então, vivemos sempre juntas. Há quem diga que somos parecidas, talvez tenha herdado um pouco dos olhos redondos dela, verde acastanhados, ou então, o formato da cara (meio oval, meio redondo). Pensando bem, até é capaz de ser a voz ou a maneira de rir (gargalhadas repentinas); confundem-nos sempre ao telefone, mas também há quem diga que são as mãos, muito finas e compridas, um problema para encontrar anéis!
    A pele, ao contrário da minha, é mais morena, mas não deixa de ser branca. Assim como o cabelo, que é bem diferente do meu, ao nível do pescoço, ondulado com tendência a formar caracóis bem pretos, mas com madeixas brancas próprias da idade. Ela tem ainda a boca pequena e fina e o nariz, também pequeno, mas pontiagudo, típico de alguém "sem papas na língua" e curiosa.
   E esta é a minha mãe, nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, caracterizada pela inteligência e perspicácia não deixando de ser, no entanto, divertida e amiga.

PR 
28-03-2004

Nota: redescobri este texto em dia de arrumações. 

Dia da mãe




MÃE

Conheço a tua força, mãe, e a tua fragilidade.
Uma e outra têm a tua coragem, o teu alento vital.
Estou contigo mãe, no teu sonho permanente na tua esperança incerta
Estou contigo na tua simplicidade e nos teus gestos generosos.
Vejo-te menina e noiva, vejo-te mãe mulher de trabalho
Sempre frágil e forte. Quantos problemas enfrentaste,
Quantas aflições! Sempre uma força te erguia vertical,
sempre o alento da tua fé, o prodigioso alento
a que se chama Deus. Que existe porque tu o amas,
tu o desejas. Deus alimenta-te e inunda a tua fragilidade.
E assim estás no meio do amor como o centro da rosa.
Essa ânsia de amor de toda a tua vida é uma onda incandescente.
Com o teu amor humano e divino
quero fundir o diamante do fogo universal.


 António Ramos Rosa, em “Antologia poética”.