30 abril, 2022

𝒒𝒖𝒆𝒓𝒊𝒅𝒂 𝒊𝒋𝒆𝒂𝒘𝒆𝒍𝒆, de Chimamanda Ngozi Adichie

 


Autor: Chimamanda Ngozi Adichie
Título: querida ijeawele
Tradutora: Ana Saldanha
N.º de páginas: 94
Editora: D. Quixote
Edição 3.ª: Março 2021
Classificação: Não-ficção
N.º de Registo: (3355)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em 𝒒𝒖𝒆𝒓𝒊𝒅𝒂 𝒊𝒋𝒆𝒂𝒘𝒆𝒍𝒆 estamos perante a carta que a autora endereçou como resposta a uma amiga de infância quando esta lhe perguntou: Como educar a minha filha para o feminismo?

Numa linguagem simples, franca, emotiva e assertiva a autora apresenta quinze sugestões que abordam temas que reflectem os princípios fundamentais de uma educação para a igualdade de direitos para mulheres e homens, para a criação de um mundo mais justo e sobretudo para a importância de reflectirmos e decidirmos sobre o que verdadeiramente queremos ser.

“Toda a gente vai ter opiniões sobre o que deverias fazer, mas o que importa é o que tu queres para a tua vida e não o que os outros querem que tu queiras.” (p. 17)

Ela recorre a exemplos claros do dia-a-dia, cita acções e palavras de pessoas conhecidas/famosas, partilha vivências pessoais, define objectivos e expectativas, rejeita actos de permissão, de obediência, de condicionamento da mulher “ «Porque és menina» nunca é razão para nada. Nunca.” (p. 24)

Educar para o feminismo é ser uma pessoa inteira, completa; é partilhar os cuidados do bebé igualmente; é “questionar a ideia do casamento como um prémio para as mulheres”; é escolher brinquedos por tipo e não por género; é anular a “ideia da igualdade condicional das mulheres”; é promover a leitura, o prazer dos livros; é questionar a linguagem e ensinar o que se deve valorizar; é encarar o casamento como uma relação de igualdade, de felicidade; é ter consciência da humanidade, ser honesta e corajosa, rejeitar o desejo de agradar e de ser “boazinha” para com as pessoas más; é criar um sentido de identidade cultural; é desenvolver hábitos de atividades saudáveis; é aceitar a sua feminilidade e não relacionar a aparência com a moralidade (“Nunca lhe digas que uma saia curta é imoral” (p. 67)) mas sim uma questão de gosto e de atractividade; é reconhecer a importância da biologia como matéria, mas nunca como “justificação para qualquer norma social”; é falar abertamente de sexualidade e é saber dizer “não” e é sobretudo não associar a vergonha à sexualidade; é saber receber e dar amor; é não atribuir valor à diferença, é preparar para “sobreviver num mundo de diversidade”; é ser humilde e não “universalizar os seus padrões e experiências”; é finalmente ser feliz e saudável.

Após a leitura deste manifesto, pode-se concluir que a forma mais evidente de caminharmos para uma sociedade igualitária assenta na possibilidade de nos questionarmos sobre o papel da mulher e do homem na sociedade, sobre a aceitação do outro e de si próprio (ser uma pessoa inteira, completa). Compreender que ser feminista não é excluir o homem, é aceitar as diferenças de cada um, é aceitar a igualdade de direitos para todos, é tentar criar um mundo mais justo.

“Para mim, o feminismo é sempre contextual. (…) A nossa premissa feminista deveria ser: Eu tenho importância. Eu tenho igual importância. Não «se ao menos». Não «desde que». Tenho igual importância. Ponto final.” (p. 12)



29 abril, 2022

𝑺𝒊𝒏𝒐𝒑𝒔𝒆 𝒅𝒆 𝑨𝒎𝒐𝒓 𝒆 𝑮𝒖𝒆𝒓𝒓𝒂, de Afonso Cruz

 

Autor: Afonso Cruz
Título: Sinopse de Amor e Guerra
N.º de páginas: 175
Editora: Companhia das Letras
Edição: Dezembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Sinopse de Amor e Guerra é o segundo livro da colecção Geografias, cuja acção se desenrola em Berlim, depois da II Guerra Mundial, mais concretamente nos anos anteriores e pouco depois à construção do muro, parede que viria a dividir uma cidade e a separar vidas, amores, destinos, “Uma parede que era a prefiguração da morte” (p. 109)

Através de uma escrita simples, fluída e poética, muito poética, vamos acompanhando a história de Theobald Thomas e Bluma Janek, dois amigos que se conhecem desde a infância, que parecem feitos um para o outro e que, mais tarde, através do poder dos livros e da poesia acabam por se apaixonar. “ A vida de ambos pacificara-se e convergira. Encostavam olhares, encostavam as mãos ao arrumar os livros, citavam poetas, por vezes em uníssono. Era uma boa explicação do amor, essa coincidência dos versos que diziam.
Descreviam-se um ao outro pela forma como as palavras saíam das suas bocas, simultâneas e idênticas. Esculpiam-se mutuamente, tendo por ferramenta a poesia.” (p.89):

Este livro é inspirado numa história real, focado no binómio amor e guerra, com realce para a ausência, para a perda e para reencontros, para a banalidade do mal como forma de sobrevivência. Contudo, nos dias sombrios que vivemos, quero acreditar que, tal como na narrativa, há um raio de sol que brilha e que permite ter esperança num mundo melhor, num mundo mais unido, mais pacífico, sem medo, sem separação, sem barbárie.


Para além da história de Theobald e Bluma, o autor deu uma piscadela de olho ao poder dos livros, à beleza das palavras, da poesia. É notória a sua força na transformação das frases em algo de sensível, de belo e, simultaneamente, educativo “ Telefonar sem qualquer motivo é sinal de amor” (p. 76), é apenas um dos muitos exemplos.

Soube a pouco, gostaria que houvesse mais desenvolvimento, mais detalhes para uma maior compreensão e aceitação das personagens, das suas motivações, das suas decisões. Gostaria de obter mais respostas sobre os limites do amor e da guerra, sobre as questões afloradas.
Será que neste mundo em que vivemos, vale tudo?
Apesar de tudo, não me considero defraudada porque o título é claro, trata-se de uma sinopse…


25 abril, 2022

𝑨𝒃𝒓𝒂ç𝒐, de José Luís Peixoto

 



Autor: José Luís Peixoto
Título: Abraço
N.º de páginas: 655
Editora: Quetzal
Edição: Outubro 2011
Classificação: Crónicas
N.º de Registo: (2857)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Abraço é uma colectânea de cento e sessenta e duas crónicas escritas ao longo de dez anos e que marcam três fases distintas: os seis, os catorze e os trinta e seis anos da vida do autor. A sequência das crónicas que integram este livro foi sublimemente organizada. Tudo faz sentido. Assumimos o livro como um todo e não como uma colectânea de textos que foram publicados de forma avulsa em jornais e revistas.

Os textos apresentam uma escrita intimista, corajosa e aparentemente simples, já que o autor parte do banal, do quotidiano, por vezes, de uma palavra, de uma ideia, de uma emoção para olhar para dentro de si, para expor os seus segredos, as suas vivências pessoais e familiares, sobretudo com os filhos, os pais e a irmã, as suas viagens, o seu processo de criação, as suas leituras, os seus pensamentos, as suas vitórias. Falam da sua infância e adolescência no Alentejo; falam de livros, livrarias, escritores, de filmes e cinema, de objectos banais; falam de amor, da vida, da sua vida de forma desassombrada, intimista, sem filtros, e cativante.

À conta de tudo isto, há todo um processamento da memória, mas há também o registo presente, simultâneo, do vivido e do escrito e há ainda a interpelação directa ao leitor que, em muitos textos, participa quase espontaneamente como se ele próprio abraçasse a escrita. Interessante como a narração, a descrição de um facto banal se transforma em literatura, em prosa poética e o leitor fica suspenso nas palavras, nas frases, na beleza da história.

Este livro é um compêndio de abraços à vida, às palavras lidas e escritas, aos leitores, aos lugares.
“Pureza, aceita esta palavra nos teus gestos, em cada uma das tuas palavras, e, aos poucos, chegará ou regressará aos teus pensamentos. (…) Não deixes que te armadilhem os cálculos e labirintos. São demasiado fáceis de construir. Quando mal entendidos, são máquinas de guerra. E, no entanto, não há palavras más. Perante a pureza, deus, só há palavras boas. (…) Pureza, repete. Tu tens direito à felicidade.
Agora, vai. Tens a vida à espera de abraçar-te.” (pp. 653 a 655)




16 abril, 2022

𝑨𝒔 𝑷𝒆𝒒𝒖𝒆𝒏𝒂𝒔 𝑽𝒊𝒓𝒕𝒖𝒅𝒆𝒔, de Natalia Ginzburg

 


Autora: Natalia Ginzburg
Título: As Pequenas Virtudes
Tradutor: Miguel Serras Pereira
N.º de páginas: 143
Editora: Relógio D'Água
Edição: Junho 2021
Classificação: Ensaios
N.º de Registo: (3356)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐




Livro fabuloso. A beleza e a leveza da escrita, a clareza das palavras elevam-nos e encantam-nos e o que é dito obriga-nos a reflectir, a mergulhar no nosso imo. Nenhum leitor permanecerá indiferente e certamente que jamais será o mesmo, após a leitura destes breves textos.
Este é um livro que não pode ficar arrumado na estante dos livros comuns. É um livro que deve juntar-se aos grandes escritores, na estante da boa literatura, à qual podemos sempre voltar.

Em As Pequenas Virtudes, livro de 11 breves ensaios escritos entre 1944 e 1966, em momentos diferentes e de forma independente, a autora aborda vários temas, muito autobiográficos numa perfeita mescla de memórias, de vivido, de sentido e de observado. Com extrema sensibilidade e sinceridade, mas também com tristeza e nostalgia, ela detém-se nos detalhes do quotidiano, na sua vida, nas relações humanas, no seu relacionamento com os próximos, no seu “ofício” e de forma direta, clara, crua, por vezes, ela entremeia a memória, a reflexão, a fantasia e oferece-nos estes ensaios de uma grande lucidez e sobriedade.

O livro está dividido em duas partes, na primeira, temos, sob um olhar próprio e subtil, textos sobre lugares de desterro (Itália) e exílio (Inglaterra), sobre pessoas que conheceu nesses momentos de sofrimento e sobre figuras importantes na sua vida, os dois maridos e o poeta Cesare Pavese. A segunda parte debruça-se sobre temas mais gerais que permitem uma autoanálise profunda e reflexões sobre a sua formação, a sua escrita, sobre valores, vocações e afectos, amizades e sobre a educação. O último texto, que dá título ao livro, é sublime.
"No que se refere à educação dos filhos, penso que lhes devem ensinadas não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença pelo dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desprezo do perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor da verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de conhecer." (p. 129)

Poderia continuar a opinar e a citar sobre cada um dos ensaios de tão belos e cativantes que são. Não vou fazê-lo. Prefiro que o leiam, lentamente, e que, tal como eu, o descubram e desfrutem da sua beleza e intensidade. Porém, termino com uma citação de um dos textos que mais me arrebatou.

“Há um perigo na dor, do mesmo modo que há um perigo na felicidade, no que se refere às coisas que escrevemos. Porque a beleza poética é um conjunto de crueldade, de soberba, de ironia, de afecto carnal, de fantasia e de memória, de claridade e de obscuridade, e, se não conseguirmos alcançar todo esse conjunto, o nosso resultado será pobre, precário e pouco vital. (…) Há o perigo de sermos astuciosos e de fazermos batota. È um ofício bastante difícil, como se pode ver, mas o mais belo ofício do mundo.” (pp. 95 e 97)

14 abril, 2022

Um poema




Química

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

 José Saramago, in Os Poemas Possíveis


13 abril, 2022

𝑵𝒊𝒌𝒆𝒕𝒄𝒉𝒆: 𝑼𝒎𝒂 𝑯𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒐𝒍𝒊𝒈𝒂𝒎𝒊𝒂, de Paulina Chiziane

 


Autora: Paulina Chiziane
Título: Niketche; Uma História de Poligamia
N.º de páginas: 334
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2002
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1582)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


História muito bem conseguida. Narrada na primeira pessoa, pela voz de Rami, a protagonista é uma mulher do sul (Maputo), bonita, casada com Tony, comandante da polícia, mãe de cinco filhos e primeira-dama de um casamento polígamo.

Numa narrativa repleta de humor e de autenticidade, acompanhamos a vida de Rami que financeiramente estável, é atormentada pela constante ausência do marido. Numa sociedade onde predomina uma cultura fortemente machista e patriarca, a culpa recai nela porque não sabe manter o casamento e agarrar o marido. Apesar de saber que o marido é a causa do seu sofrimento e da sua tristeza, Rami, vira-se para o espelho e questiona: “Diz-me, espelho meu; serei eu feia? Serei eu mais azeda qua a laranja-lima? Por que é que o meu marido procura outras e me deixa aqui? O que é que as outras têm que eu não tenho? (… ) Oh, espelho meu, o que achas de mim? Devo renovar-me?
- Renova-te, sim. Mas antes, procura uma vassoura e varre o lixo que tens dentro do peito. Varre as loucuras que tens dentro da mente. Varre, varre tudo. Liberta-te. Só assim viverá a felicidade que mereces.” (p. 34)

Ao descobrir os motivos da ausência do Tony e como uma fera ferida de traição vai cobrar satisfações à sua rival e acaba por saber que afinal não tem só uma, mas quatro (Julieta, Lu, Saly e Mauá). Decidida a vingar-se, vai atrás de cada uma delas e marca uma reunião secreta em sua casa e expõe o marido perante a situação e obriga-o a assumir a poligamia conforme a tradição do país.
“Somos éguas perdidas galopando a vida, recebendo migalhas, suportando intempéries, guerreando-nos umas às outras. O tempo passa, e um dia todas seremos esquecidas. Cada uma de nós é um ramo solto, uma folha morta, ao sabor do vento – explico. Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de nós será um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor. Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o destino.” (p. 107)
Rami vai assim, inconformada mas decidida, tomar conta desta situação e vamos acompanhando o seu crescimento interior, as suas angústias, as suas dúvidas, …

Paulina Chiziane numa escrita poética, irónica e subtil ilustra o percurso de Rami, a submissão da mulher ao regime patriarcal, a violência opressiva imposta pelas tradições, a união e a transformação da mulher, a reivindicação do seu papel de mulher e de mãe numa sociedade que encara a mulher como ser inferior, destinada a servir o homem e a sofrer em silêncio.
“Quero ser tudo: vento, peixe, gota de água, nuvem branca, qualquer coisa menos mulher. (…) Quero ser um grão de areia ao vento e dançar o meu niketche ao som das flautas de todas as brisas.” (p. 304)

Recomendo muito a leitura. Rami é uma mulher fantástica que expõe as suas fraquezas, mas também a sua força e a sua nobreza. Toda a narrativa é construída na base da sua consciência que nos faz refletir sobre a condição da mulher negra na sociedade moçambicana. É uma crítica de costumes que traduz a luta pela igualdade de género.
Com um estilo leve, sarcástico e divertido, a autora gere a narrativa a seu belo prazer e que ora encanta e diverte ora comove o leitor com as peripécias de ciúmes, de luta, de vingança, de infidelidade, mas também de amor e partilha.

10 abril, 2022

𝑴𝒖𝒓𝒓𝒐 𝒏𝒐 𝑬𝒔𝒕ô𝒎𝒂𝒈𝒐, de Paulo Jorge Pereira

 


Autor: Paulo Jorge Pereira
Título: Murro no Estômago
N.º de páginas: 205
Editora: 20|20 Editora (Influência)
Edição: Outubro 202o
Classificação: Testemunhos
N.º de Registo: (3353)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Neste livro, Paulo Jorge Pereira reúne sete histórias de vítimas de violência doméstica e oito testemunhos de profissionais que acompanham de muito perto estes casos e que lutam por combater este flagelo cada vez mais crescente.

Alice, Beatriz, Carla, Deolinda, Patrícia, Sónia e Telma legam-nos, na primeira pessoa, as suas histórias duras, sofridas e emotivas na esperança de “que mais ninguém sofra” e como exemplo para “que mais ninguém tenha medo de contar a sua” história.

O autor intercalou cada uma destas histórias com o testemunho de vários profissionais: da APAV (assessor técnico da direção), da Polícia de Segurança Pública, Polícia Judiciária (diretor), do Serviço Social (casa de abrigo), do Ministério Público, Polícia Judiciária (psicóloga forense), Comunicação Social (SIC), da APAV (psicóloga clínica). Para quem lê, a inclusão destes textos é importante, primeiro porque alivia a tensão e a dor sentidas na leitura de cada história, mas sobretudo porque são complementares e esclarecedores de todo o processo desenvolvido no apoio, na assistência e na defesa destas mulheres (e crianças) vítimas de violência.

Recomendo a leitura deste livro porque é importante que se leiam estas histórias reais. É importante denunciar quem sofre. É importante acusar quem agride física e psicologicamente. É importante acabar com este flagelo que matou “ mais de 500 mulheres nos últimos 15 anos” e como refere Daniel Contrim no prefácio "A violência doméstica é democrática. Atinge todos os sexos, todas as idades, todas as cores. De todo o lado. Em todo o lado" pelo que não podemos ignorar.

Se queremos que as nossas crianças vivam num mundo melhor, é urgente alterar esta forma de encarar a violência porque “a violência aprende-se” facilmente em casa, na escola, no recreio, na rua… “ A violência doméstica é responsabilidade de cada um de nós. Qualquer que seja o nosso papel na sociedade. A liberdade é natural. O amor é natural.” (p. 17, prefácio)




03 abril, 2022

𝑨çú𝒄𝒂𝒓 𝑸𝒖𝒆𝒊𝒎𝒂𝒅𝒐, de Avni Doshi

 

Autora: Avni Doshi
Título: Açúcar Queimado
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 286
Editora: D. Quixote
Edição: Agosto 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3321)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


“Mentiria se dissesse que a infelicidade da minha mãe nunca me deu prazer.
Sofri às mãos dela em criança e qualquer dor que, ulteriormente, ela sentisse me parecia um espécie de redenção, um reequilibrar do universo…"

Assim inicia o livro de Avni Doshi. Avni, filha de imigrantes indianos, nasceu nos Estados Unidos, em 1982. Hoje, vive no Dubai e oferece-nos uma história sobre a memória e sobre a relação complicada e instável entre uma filha e sua mãe.

É Antara, a narradora, que o profere e que, de imediato, dá o tom à narrativa. Percebemos que a relação não será pacífica e que talvez haja um acerto de contas entre mãe (Tara) e filha (Antara).

Mas como agir quando tudo se desmorona, quando se perde a capacidade de viver o presente, de recordar o passado, de prever o futuro? É neste desconcerto que Antara nos vai relatando a sua vida, na companhia intermitente da mãe.
Intercalando passado e presente, Antara descreve a sua relação com a mãe. Foca-se nas diferenças, no antagonismo existente entre ambas e na ilusão de se entenderem e de se amarem. Antara é a antítese de Tara.
“A minha mãe tem um nome lindo. Tara. Significa «estrela»… Ela chamou-me Antara «intimidade», não por adorar o nome, mas por se odiar a si própria. Queria que a vida da filha fosse o mais diferente possível da sua. Antara era, na realidade, an-Tara: Antara seria a negação da mãe.” (p. 263)

Numa escrita inteligente e directa com laivos de humor, ironia e sagacidade, vamos acompanhando a vida desta mulher (a vida que ela escolhe viver) feita de altos e baixos, de (des)entendimentos, de rejeição, de desespero, de rancor, mas também de superação, de procura de uma solução, e sobretudo de amor.

Para além da relação de amor e ódio entre mãe e filha que domina toda a narrativa, destaco ainda outros aspectos interessantes como, a problemática da doença, o respeito à identidade, a ambiguidade da maternidade e a diversidade cultural.
“ Nunca estive tão perto de a odiar como nesses anos de adolescência. Desejava muitas vezes que ela nunca tivesse nascido, sabendo que isso me aniquilaria também; percebia que estávamos profundamente ligadas uma à outra e que a destruição dela acarretaria irrevogavelmente a minha.” (p. 214)

No final da leitura, dilacerante, retenho o desespero de uma filha que tenta resgatar a memória de sua mãe como meio de afastar a proximidade da morte, ao ponto de colocar em risco o seu próprio casamento e a sua sanidade mental.
“Nunca me libertarei dela. Está-me entranhada na medula e nunca lhe serei imune.
(p. 285)