25 novembro, 2020

Salsugem, de Al Berto

 


OPINIÃO


Já perdi a conta ao número de leituras que já fiz deste livro. Leio sempre com um enorme prazer e confesso que a leitura nunca é idêntica. Desta vez, li para participar numa tertúlia literária. 

Salsugem é, para mim, um dos melhores livros do poeta, considero que há nele um aprofundamento na escrita no sentido em que representa o universo da sua temática: o mar, o deserto, a errância, o crepúsculo, a noite, a memória, a infância, a morte, o corpo, a escrita. 
“a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
(…)
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo”

Trata-se de uma escrita que problematiza questões actuais (“hoje é dia de coisas simples”), que evidencia o desespero, o desassossego da passagem do tempo, da precariedade da vida, a angústia das incertezas, a solidão, o desajustamento com o seu tempo, a melancolia. 

Na escrita de Al Berto “ deambula a melancolia lunar do corpo” 

se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição


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