A Fundação Caixa Agrícola Costa Azul organizou, nos dias 27, 28 e 29 de junho, a IV Edição da Festa do Livro em Santiago do Cacém.
Durante três dias, e respondendo ao mote Entre Mundos e Palavras, foram realizadas múltiplas actividades no âmbito do livro e da leitura.
No dia 29, das 9h00 às 13h00, concretizou-se, sob um calor intenso, a Rota Literária com 18 paragens em espaços históricos/emblemáticos da cidade. Previamente, a Fundação atribuiu cada paragem a um embaixador/leitor que, por sua vez, escolheu livremente um texto que se adaptasse ao local.
Foi-me destinado o ponto n.º 4 - Passeio das Romeirinhas (junto aos Espiguinhas) para o qual seleccionei um poema de Al Berto.
Foi um prazer enorme, apesar do calor, ter participado neste evento. Aprendi imenso sobre Santiago e conheci novos entusiastas da leitura bem como da história e do património locais.
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oxidadas albas líquidas povoações onde abandonámos os corpos a sonhar
voragem do mar ruínas de sal lodo basaltos eis a devassada nudez da terra argilas quartzos granitos calcários esculpidos pelo contínuo vento
ali está a vereda de giesteiras floridas onde o sol fabrica o doloroso mel e o corpo estendido expele imagens de água enquanto a morte tudo corrói vagarosamente
depois continuámos pela orla branca do papel regressámos felizes à falsidade das palavras mas já não conseguimos ser os mesmos que ali tinham vivido e amado
In O Medo – Uma Existência de Papel (1984/85), Al Berto, Assírio & Alvim, 2000, p. 498
andamos pelo mundo experimentando a morte dos brancos cabelos das palavras atravessamos a vida com o nome do medo e o consolo dalgum vinho que nos sustém a urgência de escrever não se sabe para quem
o fogo a seiva das plantas eivada de astros a vida policopiada e distribuída assim através da língua... gratuitamente o amargo sabor deste país contaminado as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel
enquanto durmo à velocidade dos pipelines esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares e ao acordar... a incoerente cidade odeia quem deveria amar
o tempo escoa-se na música silente deste mar ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo em que apetecia morrer e voltar
Salsugem, Al Berto
Al Berto faleceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1997, com apenas 49 anos
O grupo de leitores de Uma Casa Sem Livros esteve ontem reunido para falar de livros, de poesia, de música, de liberdade. As autoras em destaque foram Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Três Marias, três Mulheres que lutaram para que nós, mulheres, possamos, hoje, estar reunidas e falar livremente.
Apresentámos as nossa leituras, lemos excertos e poemas e ouvimos o poema "Segredo" cantado por Cristina Branco.
Os livros lidos pelos presentes e discutidos foram os seguintes:
As Novas Cartas Portuguesas, das três autoras;
A Desobediente - biografia de MTH, de Patrícia Reis
Minha Senhora de Mim; A Paixão Segundo Constança H.; As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta;
Maina Mendes e Lucialima, de Maria Velho da Costa;
De Noite, Maria Isabel Barreno.
Hoje, dia 23, celebramos O Dia Mundial do Livro, objecto que nos faculta conhecimento; daqui a dois dias celebraremos a Liberdade que nos permite falar, ver e ouvir.
Vivemos dias conturbados, estranhos, não podemos permitir o regresso a um país triste, vestido de cobardia e hipocrisia.
O verso de Sophia ressoa, outra vez, com urgência: "Vemos, ouvimos e lemos não podemos ignorar".
Viva a Leitura. Viva a Liberdade.
Nota: hoje, no auditório durante a representação de Uma peça de teatro, ouvi a actriz clamar que "A Liberdade é a cedilha da palavra esperança!" E eu gostei porque quero acreditar que assim é.
Segredo | Maria Teresa Horta
Não contes do meu vestido que tiro pela cabeça nem que corro os cortinados para uma sombra mais espessa Deixa que feche o anel em redor do teu pescoço com as minhas longas pernas e a sombra do meu poço Não contes do meu novelo nem da roca de fiar nem o que faço com eles a fim de te ouvir gritar
Não: devagar. Devagar, porque não sei Onde quero ir. Há entre mim e os meus passos Uma divergência instintiva. Há entre quem sou e estou Uma diferença de verbo Que corresponde à realidade.
Devagar...
Sim, devagar... Quero pensar no que quer dizer Este devagar... Talvez o mundo exterior tenha pressa demais. Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo. TaIvez a impressão dos momentos seja muito próxima... Talvez isso tudo... Mas o que me preocupa é esta palavra devagar... O que é que tem que ser devagar? Se calhar é o universo... A verdade manda Deus que se diga. Mas ouviu alguém isso a Deus?
Pode um desejo imenso Arder no peito tanto, Que à branda e à viva alma o fogo intenso Lhe gaste as nódoas do terreno manto, E purifique em tanta alteza o espírito Com olhos imortais Que faz que leia mais do que vê escrito.
Que a flama que se acende Alto, tanto alumia Que, se o nobre desejo ao bem se estende Que nunca viu, o sente claro dia; E lá vê do que busca o natural, A graça, a viva cor, Noutra espécie melhor que a corporal.
Pois vós, ó claro exemplo De viva fermosura, Que de tão longe cá noto e contemplo Na alma, que este desejo sobe e apura; Não creiais que não vejo aquela imagem Que as gentes nunca vêm, Se de humanos não têm muita vantagem.
Que, se os olhos ausentes Não vêm a compassada Proporção, que das cores excelentes De pureza e vergonha é variada; Da qual a Poesia, que cantou Até aqui só pinturas, Com mortais fermosuras igualou;
Se não vêm os cabelos Que o vulgo chama de ouro, E se não vêm os claros olhos belos, De quem cantam que são do Sol tesouro; E se não vêm do rosto as excelências, A quem dirão que deve Rosa e cristal e neve as aparências;
Vêm logo a graça pura A luz alta e severa Que é raio da Divina fermosura, Que na alma imprime e fora reverbera, Assim como cristal do Sol ferido, Que por fora derrama A recebida flama, esclarecido.
E vêm a gravidade Co'a viva alegria Que misturada tem, de qualidade Que da outra nunca se desvia; Nem deixa ua de ser arreceada, Por leda e por suave, Nem outra, por ser grave, muito amada.
E vêm do honesto siso Os altos resplandores Temperados co'o doce e ledo riso, A cujo abrir abrem no campo as flores; As palavras discretas e suaves, Das quais o movimento Fará deter o vento e as altas aves;
Dos olhos o virar Que torna tudo raso, Do qual não sabe o engenho divisar Se foi por artifício, ou feito a caso; Da presença os meneios e a postura, O andar e o mover-se, Donde pode aprender-se fermosura.
Aquele não sei quê, Que aspira não sei como, Que, invisível saindo, a vista o vê, Mas pera o compreender não acha tomo; O qual toda a toscana poesia, Que mais Febo restaura, Em Beatriz nem em Laura nunca via;
Em vós a nossa idade, Senhora, o pode ver, Se engenho, e ciência, e habilidade Igual à fermosura vossa der, Como eu vi no meu longo apartamento, Qual em ausência a vejo. Tais asas dá o desejo ao pensamento!
Pois se o desejo afina Ua alma acesa tanto Que por vós use as partes de divina, Por vós levantarei não visto canto, Que o Bétis me ouça e o Tibre me levante; Que o nosso claro Tejo Envolto um pouco o vejo e dissonante.
O campo não o esmaltam Flores, mas só abrolhos O fazem feio; e cuido que lhe faltam Ouvidos pera mim, pera vós olhos. Mas faça o que quiser o vil costume; Que o Sol, que em vós está, Na escuridão dará mais claro lume.
No ano em que se celebram os 500 anos do aniversário de Luís Vaz de Camões, só podia assinalar esta data com um poema do poeta maior da Língua Portuguesa.
Verdes são os campos
Verdes são os campos, De cor de limão: Assim são os olhos Do meu coração.
Campo, que te estendes Com verdura bela; Ovelhas, que nela Vosso pasto tendes, De ervas vos mantendes Que traz o Verão, E eu das lembranças Do meu coração.
Gados que pasceis Com contentamento, Vosso mantimento Não no entendereis; Isso que comeis Não são ervas, não: São graças dos olhos Do meu coração.
Minha Senhora de Mim é um livro maravilhoso. MTH constrói uma poética íntima e erótica, com identidade própria, muito feminista, negando a subordinação e opressão impostas às mulheres da época, em Portugal. Em 1971, foi editado e, de imediato, censurado sob o regime conservador e patriarcal do Estado Novo.
Nos 59 poemas que compõem o livro, verifica-se uma forte piscadela de olho à poesia trovadoresca. Quero acreditar que o fez como desafio e provocação, já que este tipo de composições era estritamente assinado por homens. Desta forma, MTH reivindica uma escrita muito própria que dá voz à mulher como autora. Este aspecto também sobressai no título. O recurso aos possessivos “minha” e “mim” não deixam dúvidas de que o discurso será na primeira pessoa.
No poema inicial “Regresso” , colocado em jeito de preâmbulo, a autora confirma o título e dá o mote ao conteúdo do seu livro, ou seja, que é de si que vai falar e que vai expor “ o que é secreto”.
“Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro
(…)
Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo
(…)
Assim, o sujeito poético vai revelar-se nas memórias do “eu”, na descoberta do seu corpo como desejo próprio e desejo do outro, na descoberta do prazer, no apelo do amante, no deleite amoroso. Cito “O Meu Desejo”(p. 82).
“Afaga devagar as minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo”
MTH ao escrever abertamente sobre o seu corpo e sobre o corpo do homem objecto de desejo, transgride os cânones da literatura e ultraja a moral dos puritanos. Ora, no nosso país era inaceitável que uma mulher escrevesse “tais vergonhas” pelo que MTH foi violentamente agredida na rua e o seu livro foi retirado de circulação.
Claro que MTH sempre usou um discurso transgressor, mas esta obra marca uma viragem pela ousadia de escrever sobre o desejo feminino, atribuindo o papel central à mulher numa inversão do pré-estabelecido na sociedade portuguesa.
Para concluir, resta-me referir que, apesar de já ter lido alguns livros de MTH, descobri este aquando da leitura da biografia - A Desobediente - de autoria de Patrícia Reis.
Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu, o ar onde a respiração é doce, um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa quando te procuro de rosto cravado na luz. Eu sei que há diferenças, mas não quando se ama, não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te. Antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.
deitado há muito tempo - o cigarro luzindo como um olho de tigre vindo da noite e lá fora ainda se percebe a húmida incandescência das frésias o rumor surdo de vozes pelo jardim onde a florida macieira se recorta no intenso céu de verão.
mais além o rouxinol a madressilva a sebe de pilriteiros a brisa de um mar invisível - aflora-te a boca arde no coração a memória álgida dos limos dos casinos das praias saturadas de sal e de sedução
mas nada é perfeito - nem o magnífico chapéu de mademoiselle de noailles nem os dias que aos ziguezagues vão passando iguais e monótonos falta-me o tempo para procurar o tempo perdido e não estou deitado na recordação da infância confesso que odeio escrever cartas ou enviar recados
ando há uma semana arrumando livros - comovido acabei agora mesmo de sacudir o pequeno novelo de poeira acumulada no interior das páginas do senhor da asma
ELE bebe vinho, pousa as palavras lentamente, semeia-as no interior do caderno de capa preta sente a resinadas árvores nos dedos, a língua enegrecida pelo desejo lambe as ervas reclinadas dos campos, as coxas abertas da noite, o orvalho nasce-lhe da boca qualquer coisa continua a explodir , amarinha-me pelo ventre um astro de paredes frias por onde enfio o sexo... todos os buracos do texto se enchem de lava são longos caminhos aveludados o puto vomita, nenhum som na amanhã que aconteceu..., a língua continua impregnada de ópio esquecido, sono das papoulas, madrugada de crianças geométricas do outro lado da cidade, aquele onde não vivemos, tudo acordou normalmente