19 junho, 2021

𝑨 𝑳𝒖𝒂 𝒆 𝒂𝒔 𝑭𝒐𝒈𝒖𝒆𝒊𝒓𝒂𝒔, de Cesare Pavese

Autor: Cesare Pavese
Título: A Lua e as Fogueiras
N.º de páginas:159
Editora: Colecção Mil Folhas
Edição: Outubro 2002
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1390)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Em A Lua e as Fogueiras, provavelmente um romance de carácter autobiográfico, Cesare Pavese confronta-nos com o mundo interior e exterior do protagonista.
Trata-se de um romance intimista, que retrata a vida solitária de um homem em busca de uma identidade que nunca encontrará mesmo quando regressa à sua terra natal e que, simultaneamente, relata a vida de uma comunidade rural.
“Não sabia que crescer queria dizer partir, envelhecer, ver morrer, encontrar Mora como estava agora. (p.72)

A narrativa foca-se no regresso do protagonista, de 40 anos, que volta à sua aldeia natal, às suas raízes, após uma longa ausência de 20 anos, nos Estados-Unidos, para onde partira em busca de uma melhor vida, mas sobretudo com o intuito de apagar o nome de “bastardo” que todos lhe atribuíam e de inverter o seu destino votado à pobreza.
Assim, temos uma narrativa sobre a passagem do tempo regida pelas estações do ano, a angústia existencial de um homem que vive só, mas também a descoberta e a revelação de factos que compõem a sua memória e o seu passado. Na descrição do vale revisitado, estão vivos os sabores, os odores, os sons, as cores, a crença na lua e nas fogueiras que povoaram a sua infância.
“Que significa este vale para uma família que venha do mar, que nada saiba da Lua e das fogueiras? É indispensável tê-lo sentido com os ossos do corpo, tê-lo nos ossos como o vinho e a polenta. Então é possível conhecê-lo sem ser preciso falar dele, e quando andou dentro de nós muitos anos sem o sabermos, desperta agora ao chocalho de uma carroça, ao sacudir do rabo de um boi, ao sabor de uma sopa, a uma voz que se escuta na praça, à noite." (p. 51)

Nesta narrativa está ainda patente a critica a uma sociedade fragmentada que vive sob o espectro da guerra, e estratificada socialmente, determinada pela riqueza e pelo poder. É nas conversas que mantém com Nuto, seu amigo de infância e que reencontra na terra, que a crítica é mais evidente:
“- Lembras-te das conversas que tínhamos com o teu pai na loja? Ele já nessa altura dizia que os ignorantes nunca abandonariam a sua condição, visto que a força está na mão de quem tem interesse em que as pessoas não compreendam, nas mãos do governo, dos exploradores, dos capitalistas,…Então reinavam os fascistas e era preciso calar estas coisas…” (p.129).

É um livro interessante que nos faz reflectir. Sabendo que o autor se suicidou poucos meses depois da saída deste livro, não podemos dissociar a vida do protagonista da narrativa e a própria vida do autor.



18 junho, 2021

Valter Hugo Mãe vence Grande Prémio de Romance e Novela da APE 2020


                                        Imagem: Antena Minho /antenaminho.pt


Valter Hugo Mãe é o vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores/DGLAB), pela obra Contra mim. 

O júri fundamentou a sua escolha com estes argumentos: “…Contra mim, de Valter Hugo Mãe, merecedor do Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB 2020 pela qualidade de construção narrativa, na cuidada arquitectura do texto, e pela expressividade poética da linguagem, na poderosa evocação de tempos e de lugares da infância. Esta escrita recria, sensível e ironicamente, o olhar comovido da criança, na descoberta do mundo e das palavras, e nesse gesto de resgate podemos ler a projecção de um autor a desenhar-se perante os seus leitores. ”




13 junho, 2021

𝑶 𝑱𝒂𝒑ã𝒐 é 𝒖𝒎 𝒍𝒖𝒈𝒂𝒓 𝒆𝒔𝒕𝒓𝒂𝒏𝒉𝒐, de Peter Carey



Autor: Peter Carey
Título: O Japão é um lugar estranho
N.º de páginas:174
Editora: Tinta da China
Edição: 1.ª Setembro 2010
Classificação: Viagem
N.º de Registo: (2649)


OPINIÃO ⭐⭐⭐


O Japão é um lugar estranho é a história da viagem do autor com o filho, de 12 anos, a Tóquio, em busca do mundo dos autores de anime (filmes animados) e da manga (banda desenhada). Peter Carey deixa-se atrair pela nova cultura japonesa. É o filho, Charley, que completamente apaixonado por estes temas o motiva para empreenderem esta viagem. Mas não será uma viagem convencional, o filho só aceita ir se não forem visitar o “Verdadeiro Japão, não – disse Charley. – Tens de me prometer. Nada de templos. Nada de museus.”
 (p. 27.)

Como Carlos Vaz Marques referiu no prefácio, no início deste século XXI, há uma nova vaga de adolescentes ocidentais vidrados na cultura popular japonesa. “Há já quem se refira a um fenómeno de m.a.s.s. culture: manga, anime, sushi e sashimi. A viagem que este livro nos propõe é uma tentativa de descoberta da fonte desse fascínio.” (p.16)
Confesso que para uma leiga, como eu, desta vertente cultural japonesa, o livro tornou-se um pouco estranho, mas ao mesmo tempo interessante porque me permitiu conhecer um pouco mais deste país estranho. Já para os aficionados de manga e anime aceito que seja deveras cativante.
Outro aspecto importante e que mais me agradou foi perceber o choque cultural, o confronto de duas civilizações tão díspares. O estrangeiro que chega ao Japão com ideias pré-concebidas e arrogantes que causam mal-entendidos, rapidamente conclui que nada entende deste país, desta sociedade regida por regras próprias e rigorosas. “É melhor não saber nada do que saber apenas um pouco” (p. 76)

Neste confronto cultural, vamos viajando com o pai e filho e descobrindo a gastronomia, a forma de vestir, de cumprimentar, o desenvolvimento informático e as particularidades dos quartos dos hotéis (dimensão do quarto, da casa de banho, das sanitas) entre outros aspectos históricos como o trauma, ainda presente, causado pelos bombardeamentos e bem representado em vários anime; os samurais também eles personagens de manga.

Tratando-se de um livro de viagens, de caracter informativo, considero que é interessante pela abordagem cultural, pela visão ocidental ignorante e errada deste país estranho. Contudo, e apesar, deste povo evidenciar uma mentalidade forte e cumpridora, também não escapa à ocidentalização.
“Charley entregou o presente [à avó de Takashi] e a seguir fez uma vénia à senhora.
Ela retribuiu a vénia e subitamente, inesperadamente, inclinou-se para a frente e deu-lhe um beijo na cara. (…)
- Surpreendeu-me que ela te tivesse beijado. - disse eu – Não pensei que eles fizessem isso.
- Deve ser o Verdadeiro Japão. – disse ele [Charley]” (pp. 167e168)





11 junho, 2021

𝑨𝒍𝒎𝒐ç𝒐 𝒅𝒆 𝑫𝒐𝒎𝒊𝒏𝒈𝒐, de José Luís Peixoto

 


Autor: José Luís Peixoto
Título: Almoço de Domingo
N.º de páginas: 257
Editora: Quetzal
Edição: 1.ª Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3274)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Este romance biográfico revela-nos uma narrativa que decorre no futuro. Os três capítulos que o compõem marcam três dias importantes da vida de um alentejano de Campo Maior, império dos cafés Delta.

26, 27 e 28 de março. Os dois primeiros dias antecedem uma data muito importante, o dia do aniversário do Sr. Rui. São 90 anos. 90 anos de uma vida cheia de acontecimentos memoráveis. 90 anos de memórias e de recordações que de forma magistral e com muita sensibilidade nos vão sendo narradas.
Nestes três dias, e numa estrutura muito bem arquitectada, vamos descobrindo, no presente, a rotina pessoal e profissional do biografado, pela visão do narrador, e o passado que flui através da memória do mesmo protagonista. A acção que acontece no presente traz à memória uma acção idêntica, mas com anos de distância. E assim, numa intersecção de presente e passado, ao sabor da memória do Sr. Rui (ou será que é ao sabor da escrita do autor?) vamos conhecendo a sua família, as suas casas, os seus amigos, os seus empregados, os seus afectos, os seus sonhos, a sua resistência à pobreza, a sua luta no contrabando, a sua generosidade, o seu sucesso. Fica claro que para este homem a sua família desempenhou e continua a desempenhar um papel fulcral. Através da sua memória ele mantém essa ligação. Nos seus pensamentos convivem os pais, os irmãos, o tio, a sempre presente e doce Alice, a sua esposa, os filhos, as noras, os netos e bisnetos.

Este romance transpira humildade e generosidade quer do autor quer do biografado. É um hino ao Alentejo, à sensibilidade, à beleza e à resistência da gente alentejana. É uma homenagem ao homem, ao patriarca de uma família, ao patrão de toda uma povoação. É uma ode ao amor, ao amor sincero de toda uma família, a do passado e a do presente, que se reúne num almoço de domingo para celebrar os 90 anos do homem que tão bem soube conduzir a sua vida e a dos outros.

“Há silêncio bom, a companhia e a importância uns dos outros. Incentivado pelo domingo, começo a dizer alguma coisa, talvez alguma história da escola, não importa o assunto, desta vez não importa o assunto, conta muito mais que, neste instante, estamos juntos, tenho a atenção do meu pai, da minha mãe, das minhas irmãs e do meu irmão, Olham-me e escutam-me, estão fixos em cada palavra que digo. Estamos juntos. Sem parar de falar, satisfeito e criança, baixo o olhar sobre as minhas mãos de dez anos.
Quando o senhor Rui levantou o olhar das mãos de noventa anos, a pele engelhada e as veias nas costas das mãos, tinha todos à sua frente: os filhos, os netos, as noras, os bisnetos.” (p. 238)

“Com noventa anos o senhor Rui estava rodeado pela sua vida.” (p.249)


03 junho, 2021

𝑪ã𝒆𝒔 𝑴𝒂𝒖𝒔 𝒏ã𝒐 𝑫𝒂𝒏ç𝒂𝒎 , de Artur Pérez-Reverte

 


Autor: Arturo Pérez-Reverte
Título: Cães Maus Não Dançam
N.º de páginas: 157
Editora: Asa
Edição: 1.ª Fevereiro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3270)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Cães Maus Não Dançam é uma parábola arrepiante, mas fabulosa! É pela perspectiva de um cão, Negro, que o autor nos leva a refletir sobre os valores da vida, sobre o politicamente correcto. Numa narrativa sublime, o autor cativa-nos e conta-nos uma história de sobrevivência, de amizade e de lealdade. Estes valores acabam por se sobrepor à extrema violência e, no final, salvam-se os bons e os maus são castigados.
À medida que acompanhamos a história de Negro, vamos também descobrindo o carácter do homem. O cão mata apenas por instinto de defesa, para sobreviver, mas quando tem um dono, é-lhe leal, segue-o até ao fim, ao contrário do homem que é capaz de o abandonar na beira de uma estrada porque já não lhe serve ou vai de férias…

“Há momentos na vida de um canídeo em que este arrisca tudo, como dizem os humanos, numa só cartada. E nessa cartada têm muito peso a nossa reputação e as nossas maneiras. As nossas atitudes. Entre os humanos há de tudo: seres dignos que nos dão educação, amor e felicidade, e seres miseráveis cujas virtudes não estão à altura das de um bom rafeiro: gente vil que nos dá cabo da vida e nos leva à tristeza, ao abandono, à solidão, ao horror e à loucura. Entre estes últimos, os maus, há também tipos muito diversos, do animal estúpido cuja bestialidade grosseira supera a nossa, até ao que tem dois dedos de testa e consegue raciocinar com inteligência.” (p. 128)

Adorei conhecer Negro, o “cão rafeiro, cruzamento de mastim espanhol e cão-de-fila brasileiro (…) olhos de velho, alma cheia de cicatrizes e olhar resignado, feito de séculos de sangue e fatalidade.” (p. 11), adestrado para assassino pelo homem, “corajoso e impiedoso” e sobretudo leal para com os seus amigos.