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29 março, 2015

Um presente






Faz por ti

Faz o Sol por ti antes que arda. 

Faz a chuva por ti antes que chores. 
Faz a Lua por ti antes do dia. 
Faz um sonho por ti antes do pequeno-almoço. 
Faz um filho por ti com alguém. 
Faz um negócio por ti por dinheiro. 
Faz um vestido, não por ti, mas pelo teu corpo. 
Faz um caminho por ti antes que te doam as pernas pela falta de uso. 
Faz um festival da canção, afasta a mesa da sala, usa uma escova como microfone, faz as canções todas do mundo por ti e as brilhantinas todas do mundo por ti. 
Faz uma corrida por alguém e corta por ti a meta. 
Corta por ti uma laranja e sorve o sumo por uma pessoa só se tiveres muita sede. 
Faz por ti um facho… e alumia quem te segue. 
Faz por ti com rigor mesmo rodeado de indolentes. 
Faz por ti com calma mesmo assolado por patrões. 
Faz por ti a coragem e serás assustador sempre que for preciso. 
Faz por ti a sabedoria e saberás sempre que estiveres calado. 
Não faças pouco de ti. 
Não faças pouco dos outros. 
Faz por ti como o dia quando acordas.


João Negreiros

09 junho, 2011

Um poema de João Negreiros

A mãe


Quando crescer quero ser a mãe
só p’ra ser a minha
e me dar carinho sem ter que mo pedir
quero morrer p’ra ser a mãe de alguém
mas com as mãos a voz e o cheiro da minha
mãe
és a minha mãe
antes não fosses
antes fosses a mãe de todos
p’ra que todos fossem felizes
se fosses a mãe do mundo o mundo era melhor
e eu não existia
mas acredita que não me importava
porque haveria de viver no som dos teus beijos
no fresco da tua mão contra a testa febril
no olhar que encontra o brinquedo
na luz que me apaga o medo
haveria de viver no teu coração como um filho que não nasceu
e que morre todos os dias para provar que sempre te amou

in "o cheiro da sombra das flores"


08 julho, 2010

a fruta que se queria cristalizada de João Negreiros




a fruta que se queria cristalizada

não sei qual é o tempo da fruta

como o que me dão
sem pensar na hora a que o Sol se põe

as castanhas congeladas do verão sabem-me bem

os diospiros podres da primavera também

não sei quando acaba a época

não sei quando começa a nova

e na minha época também não encontro espaço

finjo maduro sem saber se verde

e amoleço com a mágoa de quem devia ser duro

não sei a que horas devo dar sumo nem como me hei-de chamar

tenho a dificuldade de me reconhecer a origem

a idade

o sabor

o sangue

tenho o medo de me mandar analisar

podia ser obrigado a cortar-me todo e a secar aos bagos

às rodelas

aos nacos

sou a fruta de época que vem a seguir à carta dos gelados
escrita à mão pelo gerente do restaurante que fechou

sou a fruta sem época

sem sumo

sem sabor

e com caroços e pevides a fazer de lágrima

gota de gelo escorre

bochecha da lagarta morta

vai à melopeia da arca das consequências

a que me quer frio para conservar um tempo sem gente

sem árvores

sem chão

e sem os meninos que estiveram para me roubar

aqui está muito frio

ninguém me vai comer

e eu queria

queria a boca que me quebrasse o jejum

me lambesse as feridas

me chupasse as veias

me fizesse as ideias em gomos

e não vem

a boca não vem e imagino-me no palácio quente de marfim a matar-me por todo o lado

mastigando-me por todo o lado

desconjuntando-me por todo o lado para me acabar a eternidade que demora tanto

não tenho validade

não sei a validade

morri por dentro

sou incomestível como a sobremesa fria do natal

e levo as pontas dos dedos a tremer há décadas

se ao menos tivesse luvas

se ao menos tivesse dedos

se ao menos soubesse o que é a lareira

se ao menos me lembrasse da árvore

se ao menos soubesse esperar

se ao menos tu existisses com fome e me amasses com fome eu desfazia-me na tua língua e dava-te o sumo seco azedo de quem
de quem não sabe

de quem não foi convidado para a ceia

de quem não tem família

nem amigos

e que vai levar a vida

e o que falta da morte a tiritar no frio e a implorar pelo fim

in a verdade dói e pode estar errada, de
João Negreiros

25 maio, 2010

"O murro" de João Negreiros

Poema feito à Imagem - "O Murro" from Abraham Tark on Vimeo.



O murro

ontem disseram-me que eu era razoável e eu parti
todos os dentes a quem me disse tal coisa

é que não aguentei

porque não insultou minha mãezinha e seus hábitos
conjugais como eu estava à espera?

porque não insultou a minha mãezinha afirmando
que todos os homens do globo poderiam ser o meu
paizinho?

porque não me disse que cheirava mal?

porque não me inventou uma corcunda?

porque não aproveitou conjugando as duas
correntes e descreveu minha mãezinha como
um ser desprovido de higiene e com protuberâncias
dorsais que rivalizariam com os picos da Europa?

chamar-me a mim razoável?!

eu que sou extraordinário de tão ruim

eu que estou nos pólos com os iões

eu que faço tudo para me destacar

violo meninas em plena avenida para depois salvar
o mundo

dou o antídoto aos venenos e o veneno sem antídoto

mato pessoas que idolatro e amo tudo a quem não
gosto


eu que sou magnânimo na intermitência da ruindade

eu rei dos povos e súbdito dos mendigos

eu sou o contrário do razoável

ninguém me ama com medo de se apaixonar

todos me batem com jeito de açoitar o puro-sangue
que se habituou ao cheiro da glória que não se quer
render á vida para procriar

eu sou o Deus triste que está na lama das estrelas

o imperador de palácios vazios

o vagabundo de séquito interminável

a divindade a quem faltam promessas

o risco sem medo

a justiça sem pecador

vivo para lá da lei na origem dos decretos

chamar-me a mim razoável quando sou limpo
sem rasuras

sem razão

chamar coerente a quem inventou a loucura é dar pão
aos patos quando o mar está revolto

dá-me antes um murro em plena face
resvalando a jeito de me partir o nariz para depois
me tratares
com curativos pintados de bonecos de infância que
estava no armário dos medicamentos

ser razoável é pior que mau

é melhor que bom

e é igual a mais ou menos

ser razoável é nem sequer estar

é estar sem querer

é comer sem gosto

é borrar sem cheiro

é morrer sem choro

é cantar sem alma

é estragar o que está precisamente maduro

é esquecer o que acabou de se fazer

é dar as costas à felicidade e o virar de cara ao
infortúnio

ser razoável é ser medíocre ser medíocre é pior que
mau

é melhor que bom

e é igual a qualquer coisa

dá-me antes outro murro para retomar os sentidos e
me lembrar que no extremo está a virtude

nos pólos está mais frio e as criaturas são mais brancas

mais pretas

com mais chifres

e mais longe de casa porque abominam o que é
doméstico

o cão de colo que me perdoe mas sou o urso polar
o esquimó fresquinho que o menino não chega a
lamber porque está no fundo da arca paraalém do rio
mais gelado e do pingo do nariz

chamar-me a mim razoável é chamar ao homem
selvagem e à mulher mulher dele

chamar-me a mim razoável é chamar é chamar a vós também
que levais os ouvidos tapados

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para melhor

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que não há hipótese de mudar isto para pior

chamar-me a mim razoável é dizer a mim e a todos
que estamos a mudar tudo para mais ou menos

exijam o murro em plena face
gritem pelo murro

façam o abaixo-assinado pelo murro

mil milhões de assinaturas pelo murro em plena face

recebamo-lo com um sorriso com menos dentes
e sangue a escorrer livre

e o sangue que nos escoa da boca vai dar cor a isto

vai-vos sujar os casaquinhos imaculados que se
venderão a preços simbólicos nas feiras e por maquias
estratosféricas nas lojas de haute-couture

e na impossibilidade de encontrar o equilíbrio

o conforto

o quentinho

o meio

encontramos a humanidade que é feita de defeitos

amores impossíveis

rotas ocasionais

céus carregados

searas em chama

florestas virgens

assomos de bravura

loucuras temporárias

e tranquilidades passageiras

e tu que levas os dentes partidos só porque alguém
não te quis perfeito sabes agora a importância de
saber

tu que lavas a boca no chafariz na despedida do
incisivo sabes agora ao que vens

ao que venho

ao que vimos

sabes agoraque somos

somos tudo

somos completamente tudo

somos o que sobra do sorriso depois dos dentes se
afogarem pela rapidez do rio


João Negreiros in a verdade dói e pode estar errada

21 março, 2010

Um poema de João Negreiros

"é agora que os mato agora": curta-metragem de Sérgio Castro com João Negreiros



é agora que os mato agora


é agora

é a esses que eu mato agora

é agora

é a esses que eu quero agora

é agora

os que são melhores do que eu que eu mato agora

é agora que os mato por inveja

e depois por pena

e depois por medo

e depois por raiva

raiva louca roxa que me leva o sangue às ideias

é agora

é já

nem mais um de espera

é agora que os desfaço

nem mais um de vida

é agora que os mato com a angústia que levo destes anos todos

é agora a hora da vingança que não leva a nada mas que eu preciso para respirar de novo o ar dos homens

para ser de novo um homem

é agora que eu preciso de matar alguém para estar cá de novo como dantes antes de me darem conta do sorriso que veio no segundo a seguir ao parto

é agora que os mato agora

para me encontrar

para lhes dar o que merecem mesmo sabendo não ser justo

vou-me preparar e comprar a gabardina mais coçada dos filmes de acção para me dar o primeiro gozo da vida depois da montra da drogaria partida pelo tijolo

é agora que os rasgo sem frases de libertação

mas com o urro de quem perdeu a voz pelo meio das humilhações

a dignidade que me ficou para trás irei recuperá-la nos vossos trémulos corpos no momento do abate

é agora que mato todos os que estiveram quase a fazer-me o mesmo

iam fazer-me o mesmo

quase me fizeram o mesmo

já praticamente me fizeram

já praticamente me fizeram o mesmo

eles fizeram-me antes

vou fazê-lo depois

vou fazê-los

vou comer-lhes o sangue e os olhos para que não me vejam chorar nem mais uma vez

tem que ser

tem mesmo que ser

nem podia ser de outra forma

eles obrigam-me

obrigaram-me

empunharam-me a arma

ergueram-me os pulsos a tapar o Sol com a baioneta

eles levam o veneno no copo para que eu fuja do brinde e lhes dê a sede de beber

é agora

é agora que os mato agora

aos que estavam quase a

assassino-os a sangue-frio em legítima defesa pois sei

sei muito bem

sei-os demais

são iguais a mim

eu estou a matá-los

se são iguais a mim matar-me-ão mais tarde

se são como eu penso

vão acabar comigo

por isso mato-os agora

pronto

matei

pronto

morreram

pronto

já está

pronto

não há

pronto

não há ninguém

não vive ninguém

matei-os antes de ir

termina assim

eles eram iguais mas

se eram iguais

se eram mesmo iguais deviam ter pensado o mesmo que eu

matando-me no preciso momento

mas não

não pensaram

não eram

eram outros

diferentes

não pensavam

não queriam

não quiseram

não fizeram

não porque estou cá

não lhes li os pensamentos

não sabia

eles foram-se sem dizer ao que vinham

e eu fiquei a pensar no que fiz

estou a pensar no que fiz

e eles não pensam porque não o fizeram

eu fiz primeiro

sou o primeiro a fazer

sou o primeiro a fazer

sou o inventor do mal

sou o primeiro a fazer

sou o assassino

sou o primeiro a fazer

sou o carrasco

sou o primeiro a fazer

sou eterno

sou o primeiro a fazer o mal

sou o último

o que ficou para trás

estarei sempre atrás

a assobiar a sombra do remorso

sou o que vos quis como a ele

como a si

como vós

e arrumo os barbitúricos de novo no armarinho

e lambo as feridas das arestas do revólver

e rasgo a fronha da almofada para devolver as penas ao ar

espero toda a vida por sobreviventes

e no fim dela mato-me


in a verdade dói e pode estar errada, de João Negreiros

15 março, 2010

João Negreiros publica 2 livros

João Negreiros, o escritor português revelação de 2009, publica dois novos livros.

O autor já tem publicado, na área do teatro, Silêncio e Os Vendilhões do Templo (2007), O segundo do fim e Os de sempre (2008)

e em poesia, o cheiro da sombra das flores (2007), seleccionado de entre as melhores obras de poesia ibérica publicadas entre 2007 e 2008 pelo Prémio Correntes d' Escritas de 2009, e luto lento (2008).

Prémios: 1º lugar no Prémio Internacional OFF FLIP de Literatura 2009 (Brasil), categoria Poesia; Prémio Professora Therezinha Dutra Megale, São Paulo e o Prémio Nuno Júdice 2009.

23 janeiro, 2010

Ontem estive no inferno - João Negreiros




ontem estive no inferno

sabes o que me assustou mais?

foi não ter dado por nada

ontem estive no inferno e não dei por nada porque o que existe lá é o mesmo que existe aqui

ontem estive no inferno e estive mesmo para te chamar
mas achei que não ias querer ver

não tinha nada de novo
e o novo que tinha não era mau o suficiente

era talvez um pouco melhor
um pouco pior
um pouco diferente

mas na essência era o mesmo

o mesmo cheiro

o mesmo sabor

o mesmo som

o mesmo sujo

o mesmo ar

a mesma gente

só que diferente

com roupas rasgadas e esgares de dor

não
espera
o esgar de dor era igualzinho

as roupas
sim
eram diferentes

não
espera
que ontem vi um homem que estava
pois
pois é
nem as roupas

ontem estive no inferno para depois poder contar a todos como é

mas acabei por perder a viagem porque não tenho nada para contar

e o inferno continua

e está a arder nos meus olhos e nos teus também

e nos teus também

e um dia vamos lá parar todos

mas felizmente não vamos sofrer com a diferença

e vamo-nos sentir todos em casa porque a nossa casa é toda a mesma e está a cair como um baralho de cartas que nunca chegou a castelo

ontem estive no inferno e perdi-me lá dentro

e continuo lá

e sei que não vou dar com a maçaneta da porta

e se der não a vou saber rodar

e se a rodar um muro vai tapar a saída

e se o derrubar vai haver um guarda

e se matar o guarda vai haver um homem

e se rasgar o homem vai haver um papel

e não vou ter tesoura

e se tiver tesoura vai aparecer o demónio

e se beijar o demónio na boca e ele me deixar passar para que não conte a ninguém que o amei vai haver um Santo com a inocência ao colo

e não vou ter como o afastar

mas se o Santo perder a inocência e fugir para a procurar eu vou continuar em frente até à próxima barreira que és tu

que eu quero por seres a última

e vou tirar-te à vida devagar
deliciosamente e sem esforço por seres a única e última coisa viva que me impede de encontrar o fim do mundo que é vazio

e magro

e débil

e negro

e seco como o último galgo da corrida

o cão cego que só ganharia se tacteasse o coelho que está no infinito à espera

ontem estive no inferno

ontem estive no inferno

estava lá tudo

estavam lá todos

tu não
tu não
tu não

se estivesses não seria a mesma coisa


in luto lento, de João Negreiros

(poema e vídeo retirados do Blogue de João Negreiros)