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27 janeiro, 2024

𝑷𝒆𝒍𝒂 𝑳𝒊𝒃𝒆𝒓𝒅𝒂𝒅𝒆: 𝑹𝒆𝒔𝒑𝒊𝒓𝒂çõ𝒆𝒔, de Ana Luísa Amaral


Autora: Ana Luísa Amaral
Título: Pela Liberdade: Respirações
Ilustradora: Bárbara R.
N.º de páginas: 12
Editora: U. Porto Press
Edição: Outubro 2020
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3504


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



O primeiro livro da colecção Concertina, editado pela U. Porto Press é um objeto/livro belíssimo com uma apresentação fora do comum (em concertina) e magnificamente ilustrado por Bárbara R. em harmonia com os seis poemas de Ana Luísa Amaral que configuram o tema da Liberdade.
Os títulos dos poemas são desde logo elucidativos: “Identidade"; "As cores da Servidão" (1 e 2); "A outra servidão: paisagem com dois cavalos"; "O tom da liberdade"; "A luta".

São poemas que versam questões universais como a ausência de liberdade, a opressão, a raça, a escravatura, a colonização, a violência, o poder.

Em “O tom da liberdade” a autora recorre à metáfora do gato para revelar a necessidade que cada um tem de ser livre “ o estar quando se quer/ e o não estar quando não”. É um poema lindíssimo, talvez o meu preferido.

Ana Luísa Amaral nestes seis poemas revela uma escrita sensível, subtil, atenta e preocupada com a condição do ser humano.

Recomendo.







18 março, 2023

Silêncios!

 

                                                       
                                                                            foto minha


Reflexos


Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.


Ana Luísa Amaral



06 agosto, 2022

Ana Luísa Amaral (1956-2022)





TESTAMENTO

Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras.

Ana Luísa Amaral

10 outubro, 2011

3 poemas de Ana Luísa Amaral


 
                                                    Picasso, Mulher lendo, 1934

INTERTEXTUALIDADES

Microscópica quase,
uma migalha entre as folhas de um livro
que ando a ler.

Emprestaram-me o livro,
mas a migalha não.
No mistério mais essencial,
ela surgiu-me recatadamente
a meio de dois parágrafos solenes.
Embaraçou-me o pensamento,
quebrou-me o fio (já ténue) da leitura.
Sedutora, intrigante.

Fez-me pensar nos níveis que há de ler:
o assunto do livro
e a migalha-assunto do leitor.
(era pão a matéria consumida no meio
de dois parágrafos e os olhos
consumidos: virar a folha, duas linhas lidas
a intriga do tempo quando foi
e levantou-se a preparar o pão
voltando a outras linhas)

Fiquei com a migalha,
desconhecida oferta do leitor,
mas por jogo ou consumo
deixei-lhe uma migalha minha,
não marca de água, mas de pão também:
um tema posterior a decifrar mais tarde
em posterior leitura
alheia

De Minha Senhora de Quê, 1990.



O EXCESSO MAIS PERFEITO

Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.

Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.

Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.

Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.

Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.

Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada —


De Vezes o Paraíso, 1998.



Silogismos

A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)



Vozes, 2011