31 julho, 2023

Inquietação !

 

                             
                                           Les Amoureux aux Marguerites | Marc Chagall



Ser Poeta (Perdidamente)

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!


Florbela Espanca


30 julho, 2023

Desencontro !

 

Eu


Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca, in Livro de Mágoas




28 julho, 2023

𝑶 𝑷𝒐𝒍𝒂𝒄𝒐, de J. M. Coetzee

 

Autor: J. M. Coetzee
Título: O Polaco
Tradutor: J. Teixeira de Aguilar
N.º de páginas: 149
Editora: D. Quixote
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3460)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este romance está dividido em seis capítulos e a história é narrada por entradas numeradas. Passo a explicar:

Capítulo UM
“1. A mulher é a primeira a causar-lhe problemas. Para pouco depois se lhe seguir o homem.
2. No início ele tem uma ideia perfeitamente nítida de quem é a mulher.

(…)”
Esta estrutura atribui à narrativa uma cadência como se de uma partitura se tratasse, como se fosse composta por andamentos curtos ou longos e pausas; e torna-a aparentemente, simples. Porém, à medida que o leitor avança, intui que a complexidade, apesar da escrita concisa e simples, das personagens vai num crescendo, que o carácter reflexivo se adensa e que a história de (não) amor narrada é cada vez mais desconcertante. “Há qualquer coisa de contranatura em amar sem esperar ser amado.” (p.85)

O Polaco, pianista, de setenta e dois a os, é convidado a actuar em Barcelona. Aí conhece e apaixona-se pela organizadora do evento, Beatriz, uma mulher casada, de cinquenta anos. É este relacionamento que Coetzee vai magistralmente desenvolver.
Vai manipular os sentimentos e as emoções das duas personagens causando no leitor ora empatia, ora incompreensão. E é este jogo que torna sedutora e, simultaneamente, desconcertante a relação destas duas personagens. O leitor curioso com o desfecho, não despega e diverte-se, primeiro, com a perplexidade de Beatriz perante a paixão do pianista, e, depois, com a capacidade como impõe as suas vontades, como marca os encontros e os desencontros.
Coetzee é singular na abordagem às diferenças de idade e de cultura. Usa com mestria a ironia e o sentido de humor para realçar comportamentos e emoções.
O capítulo SEIS é composto exclusivamente de cartas e a última termina com um post scriptum: “P.S: Voltarei a escrever.” E eu prometo que voltarei a ler J. M. Coetzee.

Recomendo vivamente.





26 julho, 2023

Aprendiz de viajante



                                                     Foto GR
                                        
        Um dia li num livro: «viajar cura a melancolia».
Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
        Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
        A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite... Avancei sempre, sem destino certo.
        Tudo começou a seguir àquela doença.
        Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noite sobre um rio, amei a existência.
     Dormia onde calhava; no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
         E quando regressei, com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
        Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza, de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
        A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único, não se confunde com nenhum outro.
       Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
       O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
       Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
        Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.


Al Berto, in Anjo Mudo




25 julho, 2023

Eduardo Pitta (1949 - 2023)


                                                                    créditos Bertrand Livreiros



Foi contigo que aprendi a cidade, 
sílaba a sílaba,
pedra, aço e lascas de cristal.

A cidade dos pássaros interditos
na ocasionalidade
de um galho por acaso.

A cidade das buganvílias
violáceas de medo,
excrescentes de lirismo.

A cidade dos pães calcetados
e dos meninos que, de
fome, os apetecem.

A cidade das culatras
inevitáveis
para o alvo que lhes sobra.

A cidade protestada a prazo
de um dia
de nunca mais.

A cidade geometrizada
na infalibilidade
dos seus labirintos.

Foi contigo, foi.
Foi contigo que aprendi a amar
desordenadamente.


Eduardo Pitta, in Sílaba a Sílaba



Silêncios!

 

                                                                              Foto GR


"Toda a despedida é dor... tão doce todavia, que eu te diria boa noite até que amanhecesse o dia".



William Shakespeare

24 julho, 2023

𝑺ú𝒃𝒊𝒕𝒐, de Ana Zorrinho

 


Autora: Ana Zorrinho
Título: Súbito
N.º de páginas:79
Editora: ORO - Caleidoscópio
Edição: Dezembro 2022
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3475 )




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Em Súbito, o poema “palavras”, o primeiro de muitos, sugere, desde logo, uma leitura expressiva, sentida, impetuosa (súbita), por vezes, silenciosa. A ”palavra” é recorrente nos poemas, atribuindo assim uma certa unidade, diria mesmo uma circularidade ao livro já que este termina com o poema “palavra nascente”, que nos remete para a importância do nascer (“No dia em que nasceu”) como um recomeço.

Quando escrevi sobre o primeiro livro da Ana Zorrinho, Histórias de um Tempo Só, referi o seguinte: ”Descobri uma escrita poética, marcante e extremamente sensível. Nem tudo é dito. Muito deve ser entendido nas entrelinhas, na força das palavras, no ritmo dos versos, nas frases curtas, compassadas que marcam o tempo que passa (…)”. Hoje, após a leitura deste belíssimo livro (belo em todos os aspectos), mantenho a minha opinião e acrescento que há um maior amadurecimento poético, a subjectividade colocada na escrita é mais vincada e por conseguinte a participação do leitor torna-se mais premente.

Como leitora atenta e amante de textos belos, de poesia deixei-me conduzir pelas “palavras” da Ana, pela sua escrita ritmada, visual e muito sensorial.
O ritmo é variável, adequado ao estado de alma do leitor… vagaroso, torrencial, “deslizante”, reflexivo, “súbito”… gosto desta volubilidade.

Os temas são, ilusoriamente, diversos, (solidão, morte, mar, amor, mulher, ausência,…), contudo, na minha opinião, a existência de um fio condutor - o TEMPO liga-os e torna-os uno (a tal unidade que já referi). Se atentarmos aos títulos dos poemas, podemos constatar isso mesmo. O Tempo surge na espera, na solidão, na brevidade da vida, na morte, na ausência, na verdade, na suspensão (“Oh ampulheta/Inclina-te um pouco/Suspende o cair do grão”), na saudade, no mergulho, na esperança, no silêncio, no prazer, na cadência, no vazio da escrita:

“No extremo do vértice
Vejo plenamente o vazio a 360 graus
Flicto-me para o salto
Sobre o limite
da linha
Mergulho no nada
Desta página em branco
Afogo-me
Nas palavras inexistentes.”

O drama, aqui presente, do escritor perante a página em branco e nas palavras inexistentes, transborda para mim, leitora, em magia, deslumbramento. Não me canso de o ler. De os ler, todos.

Para terminar, ofereço-vos uns versos do poema “antes de depois”. É um convite à leitura e à descoberta da beleza e da sensualidade presentes no sapato que “ficou encostado à mesa de cabeceira/Erguido/Cristalizado/(…)Contemplo-o/o momento que foi/E assim permaneceu/como se eu ainda estivesse dentro dele. (…)”.

Intuem a tal subjectividade presente na escrita e que exige do leitor uma participação efectiva?

Recomendo a leitura deste e dos outros livros da Ana Zorrinho. É na simplicidade das palavras que por vezes descobrimos caminhos que nos emocionam e nos fazem sorrir.


23 julho, 2023

𝑨 𝑰𝒈𝒏𝒐𝒓â𝒏𝒄𝒊𝒂, de Milan Kundera

 



Autor: Milan Kundera
Título: A Ignorância
Tradutor: Miguel Serras Pereira
N.º de páginas: 157
Editora: D. Quixote
Edição (2.ª): Agosto 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3426)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Em A Ignorância, Kundera apresenta ao leitor duas personagens Josef e Irena, filhos de Praga, mas emigrados na Dinamarca e França, respectivamente. Ambos, saíram do país numa época conturbada. Reencontram-se vinte anos depois quando regressam à cidade natal.
Ao longo das páginas vamos acompanhando os pensamentos e os desabafos das duas personagens. Kundera através de uma escrita simples, mas corrosiva, vai dissecando os estados de alma e pondo a nu as opções de vida de cada um. Este voyeurisme conduz-nos aos meandros da emigração, às dificuldades sentidas no país de acolhimento, ao desenraizamento linguístico e cultural, aos erros cometidos na “idade da ignorância”, nos momentos de decisão, à nostalgia, isto é, ao “sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar”(p.9). Numa intertextualidade com o mito de Ulisses e do seu regresso a Ítaca, percebemos que o tempo deixa marcas indeléveis, que as memórias não coincidem e se desvanecem, que os conhecimentos são mais vastos, díspares e por conseguinte mais lúcidos, mais desprendidos.
“à medida que trechos da sua vida caem no esquecimento, o homem desembaraça-se daquilo de que não gosta e sente-se mais leve, mais livre. (…) O homem envelhece, o fim aproxima-se, cada momento se torna cada vez mais querido e já não há tempo a perder com recordações. É preciso compreender-se o paradoxo matemático da nostalgia.” (pp. 64 e 65)

Neste romance Kundera debruça-se sobre o comportamento alheio, perscruta as emoções e as atitudes de duas personagens com histórias de vida semelhantes, que se cruzam e desdobram na problemática da emigração.



22 julho, 2023

Silêncios!

 



"Amo-te como se amam certas coisas obscuras, secretamente, entre a sombra e a alma".


Pablo Neruda




19 julho, 2023

𝑶 𝑷𝒊𝒏𝒕𝒐𝒓 𝒅𝒆 𝑩𝒂𝒕𝒂𝒍𝒉𝒂𝒔, de Arturo Pérez-Reverte

 


Autor: Arturo Pérez-Reverte
Título: O Pintor de Batalhas
Tradutora: Helena Pitta
N.º de páginas: 230
Editora: Asa
Edição (3.ª): Março 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3371)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Que livro fabuloso! Exigente, perturbador e impelente! Temos vontade de ler mais e mais, mas algo nos retém e permanecemos deslumbrados perante o poder e a força das palavras.

O Pintor de Batalhas suga-nos as entranhas, obriga-nos a inspirar profundamente antes de assimilar o que foi dito, questionado. Tal como Faulques, o protagonista, que nada diariamente “cento e cinquenta braçadas mar adentro e outras tantas de regresso “ (p.7), também o leitor mergulha nas páginas deste romance e a cada “braçada” que percorre, obriga-se a respirar, a reflectir porque não consegue avançar na “geometria do caos” que lhe é imposta.

Pérez-Reverte a partir da sua experiência jornalística constrói a personagem de Andrés Faulques, um fotógrafo de guerra que, ao longo de 30 anos de profissão, andou pelo mundo e captou imagens poderosas e devastadoras. Na narrativa, Faulques, que já tinha abandonado a fotografia e decidido isolar-se numa torre de vigia na costa mediterrânica (Puerto Úmbria), dedica-se à pintura mural numa tentativa de expor cientificamente “as regras implacáveis que suportam a guerra, (…) o caos aparente – como espelho de vida”. Na construção do seu fresco, combinam-se e misturam-se traços, cores, sombras de memórias, que recupera através das fotografias; das visitas a museus, das pesquisas em livros, das notas que registou e, sobretudo, das memórias dolorosas, impressas no “olhar de trinta anos pautados pelo som obturador de uma máquina fotográfica” (p.9) em busca de um olhar vazio, de um rosto moribundo, de um corpo violado e ensanguentado, do horror como “um franco-atirador paciente”, como um predador em busca da sua presa.


Na sua torre, Faulques, isolado e perturbado pela memória da mulher amada (Olvido), recebe, inesperadamente, um ex-soldado croata, um dos muitos rostos fotografados, que vem confrontá-lo com o seu passado, com as repercussões de uma fotografia que percorreu o mundo “ onde o horror se vende como arte, onde a arte nasce já com a pretensão de ser fotografada, onde conviver com as imagens do sofrimento não tem relação com a consciência nem com a compaixão.” (p. 175)

Nesse confronto de memórias, de silêncios, de encolher de ombros, de observação, os dois homens discorrem de forma intensa e dolorosa sobre as consequências da guerra, “a guerra como sublimação do caos”, a violência desmedida do homem, o poder da fotografia, o acto “selvagem” do fotógrafo no momento fatal da retina, que escolhe o alvo, a ética no fotojornalismo, o remorso, a expiação, a morte.

Reverte num crescendo de intensidade conduz o leitor, pela via da beleza da arte (fotografia e pintura), aos caminhos ignóbeis da guerra, à visão da morte, ao desfecho imprevisível das duas personagens. A narrativa desenvolve-se em vários planos que se entrelaçam magistralmente: as memórias de Faulques com a mulher amada; as memórias do registo da fotografia como acto solitário e fugaz nos palcos da guerra e o presente, que consiste na pintura do mural e no diálogo reflexivo, inquietante e intenso entre os dois homens. Reverte numa escrita lúcida, concisa e sincera arrebata e incomoda o leitor. Não há um vislumbre de esperança, não há um resgate de humanidade. Há, sim, uma “geometria do caos”, as linhas que desenham a vida e traçam a morte. Reverte recorre, neste livro, a um realismo artístico, a uma pintura numa parede circular, para espelhar a sua visão amargurada do mundo. E fê-lo porque considera que a fotografia apenas sugere e não consegue mostrar “o xadrez caótico, regra implacável que governa o acaso perverso do mundo e da vida.” (p. 38)
Recomendo vivamente.



16 julho, 2023

Silêncios!

 

Acrílico s/ tela: My Heart Your Heart, por © Ronnie Biccard


VESTE-ME A SEDA

Veste-me a seda
das tuas mãos
serenas
Veste-me a roupa quente da tua pele
e aperta-me com o cinto dos teus braços
no lugar onde o meio traz cansaços
Evita que na ausência de ti gele
Recorta-me
em pequenos pedaços
Ata-me em laços
e guarda-me no coração
antes de saíres para o mundo
e bater no fundo
da traição que te apetece



Edgardo Xavier, in Amor Despenteado



15 julho, 2023

𝑨 𝒎𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓 𝒎𝒂𝒊𝒔 𝒃𝒐𝒏𝒊𝒕𝒂 𝒅𝒂 𝒄𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆, de Charles Bukowski


Autor: Charles Bukowski
Título: A mulher mais bonita da cidade
Tradutor: Vasco Gato
N.º de páginas: 366
Editora: Alfaguara
Edição: Setembro 2014
Classificação: Contos
N.º de Registo: (3148)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Há muito que adiava a leitura de um livro de Bukowski. Sem nenhum motivo em especial, mas simplesmente porque outros livros, outros autores se interpunham. Como precisei de um título com seis palavras, decidi que chegara finalmente o momento de ler este, já que preenchia a premissa.
Já tinha lido que Bukowski escreve das entranhas, que relata a miséria humana, a marginalidade, o bas-fond da sociedade americana.
É mesmo assim. Em A mulher mais bonita da cidade, o autor brinda-nos com trinta contos. Todos nos convocam para um submundo imundo, de excluídos, de loucos, de vigaristas e de desacatos onde o álcool, o sexo, o jogo e a violência dominam. O realismo cru e horrível, mas também mordaz e irónico de Bukowski, surpreende pela irreverência. Sem rodeios, e na primeira pessoa (Bukowski é personagem das histórias), o autor destrinça a miséria dos bares que frequenta, das ruas que percorre, dos bêbedos, das mulheres “caprichosas”, das amantes com quem se relaciona.
A sua escrita é crua, directa, sem moralismos. Bukowski usa e abusa de vocabulário vulgar, trivial, mas próprio do meio onde as suas personagens, ele incluído, se inserem.
Os seus textos curtos repudiam o tão aclamado formalismo académico, a sua verve mergulha na vida comum, nos vícios do ser humano, na realidade crua, na autenticidade do amor, do sexo, da perda, do consumo do álcool e do tabaco, das noites mal dormidas, nas vicissitudes de uma vida desregrada. Mas nem tudo é irreverente e marginal. De permeio surge a sua sensibilidade, o sentido de humor e a paixão pela literatura e pela música.

Confesso que aderi com prazer à genialidade da sua franqueza, ao seu incivismo. Encarei sem pudor nem preconceitos a sua forma de escrever. Aderi às propostas de reflexão que se apresentam nas entrelinhas. Tentei captar a crítica social emanada do cinismo e desencantamento tão presentes nas várias histórias.

De certeza que partirei à descoberta de mais livros do autor. Contudo, não posso deixar de referir que a sua escrita, considerada por alguns críticos como a mais “icónica” deste género literário, pode causar repulsa a leitores menos apreciadores de certas palavras, de uma linguagem mais vulgar.



12 julho, 2023

Exercício de escrita criativa com David Machado

No workshop de escrita criativa que decorreu em Évora (6/7/2023), David Machado indicou as seguintes premissas para o exercício de construção de um texto/conto:

Início: "Às oito horas, quando o despertador tocou, Catarina estava acordada há várias horas. pela primeira vez, em muitos anos, tinha atravessado uma noite inteira sozinha na cama."

No texto incluir duas das quatro frases
- "O silêncio dos últimos meses parecia mais intenso que nunca."
- "No lava-loiça os pratos sujos tinham-se acumulado."
- "as fotografias dispostas na cómoda fizeram-na sorrir."
- "Experimentou três vestidos até encontrar aquele mais adequado à situação."

Final - escolher um dos dois facultados):
- "Quando por fim se sentou ao volante do carro, apercebeu-se de que estava a chorar."
- "Na rua o calor do sol encheu-lhe o rosto."




Texto 

Às oito horas, quando o despertador tocou, Catarina estava acordada há várias horas. Pela primeira vez, em muitos anos, tinha atravessado uma noite inteira sozinha na cama.
Insone, percorreu os tempos felizes que partilhou com o companheiro. Sorriu ao recordar os livros lidos e discutidos à volta de um gin, entre beijos e carícias; os filmes vividos; os passeios,... tudo lhe veio à mente!
Por que caímos  no abismo, se éramos felizes?
Por que não soubemos manter acesa a paixão que nos unia?
Por que não soube entender que o silêncio dos últimos meses parecia mais intenso que nunca? Questionava-se Catarina.
Como fui tonta, como me deixei enganar, como não vi o óbvio?!
E agora, que vou fazer da minha vida? Manter-me nesta inércia doentia ou agarrar-me à vida? 
Catarina levantou-se. Tinha de se apressar ou chegaria atrasada ao emprego e suportaria os olhares reprovadores e trocistas dos colegas.
Tomou um banho bem cheiroso e reconfortante, experimentou três vestidos até encontrar aquele mais adequado à situação, engoliu algo e bebericou um café.
Escolheu brilhar! Escolheu viver! 
Pegou na mala e nas chaves do carro. Saiu. 
Na rua, o calor do sol encheu-lhe o rosto. Sorriu. 


09 julho, 2023

𝑶 𝑫𝒆𝒗𝒆𝒓 𝒅𝒆 𝑫𝒆𝒔𝒍𝒖𝒎𝒃𝒓𝒂𝒓 - 𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑵𝒂𝒕á𝒍𝒊𝒂 𝑪𝒐𝒓𝒓𝒆𝒊𝒂, de Filipa Martins


Autora: Filipa Martins
Título: O Dever de Deslumbrar - Biografia de Natália Correia
N.º de páginas: 680
Editora: Contraponto
Edição: Março 2023
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3468)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Nesta biografia de quase setecentas páginas, Filipa Martins viveu, durante seis anos, mergulhada no universo da sua biografada. O trabalho final revela um conhecimento e rigor notáveis.
Pelas palavras de Filipa Martins vamo-nos deslumbrando com a vida de Natália Correia que foi uma mulher de excepção, quer pela sua beleza quer pela sua forma de ser e de estar; uma mulher que marcou o século XX – a sua história confunde-se com a História de Portugal, nomeadamente, nos períodos do Estado Novo e do PREC; uma mulher da Europa, pensadora e defensora das mulheres e de causas, sejam elas quais forem; apoiante de todos os que se manifestaram contra o regime; uma mulher da intelligentsia portuguesa, que promoveu em sua casa e no Botequim tertúlias, debates, discussões políticas sobre variadíssimos assuntos: luta contra a censura, apoio e defesa de presos políticos, (muitos eram seus amigos), ideologias, apoio a futuros candidatos, …
Ao longo do texto, deparamo-nos com a dualidade de carácter da biografada. Natália Correia revela-se frágil, intempestiva, acutilante, decisiva, apartidária, libertária. Revela-se ainda uma mulher de múltiplas funções: escritora, radialista, cançonetista, jornalista, pensadora, ”supostamente” espia e comunista, deputada, conselheira, oradora. Em tudo manifestou paixão e loucura.
Ficou muitíssimo bem expresso na obra e de forma indelével, a importância desta mulher forte de convicções, o seu papel genial e único na literatura, nas artes em geral, na política, na religião e na sociedade. Natália, apesar de ter as suas obras constantemente censuradas, de ser vigiada pela PIDE, conseguiu levar uma vida confortável e de luxo, contrariando as normas instituídas e a moral e os valores vigentes. Mesmo no período pós 25 de Abril, Natália Correia mantém os seus ideais, por vezes contraditórios. As suas convicções isolam-na em muitas das decisões que toma, ao ponto de estar, como deputada, no lado oposto do seu partido. Amiúde foi criticada e mesmo ridicularizada. Sempre se posicionou activa, emotiva e corajosamente na vida. As decisões que tomou sempre foram pautadas por ideais de igualdade e liberdade. Foi sempre uma mulher muito avançada para o seu tempo, que nunca se resignou perante a adversidade e o conservadorismo.

Filipa Martins revela-se uma excelente biógrafa, pois de forma insigne consegue expor numa escrita viva, cativante e imparcial toda a dimensão da mulher avassaladora “que é maior do que o país” e, simultaneamente, os acontecimentos marcantes da época.
Filipa Martins transporta-nos para o mundo individual e colectivo da sua biografada, para o mundo literário nacional e internacional da época, para a política vigente. Convida-nos, assim, a mergulhar na vasta e diversificada obra de Natália Correia. Obra desconcertante, controversa e apaixonada que merece ser lida e que terá “o dever de deslumbrar” qualquer leitor que aprecie fortes emoções literárias. Pelo que foi apresentado nesta biografia, o leitor não saíra defraudado.  


02 julho, 2023

O Tempo...



Salvador Dalí: A persistência da memória, 1931. 


O tempo

desliza de mansinho
escapa entre instantes, palavras, sorrisos
foge
separa almas, corpos
agrilhoa o coração 
solidão!


impõe contratempos
incita angústia, silêncio, ausência
desassossega
carrega imagens, memórias
alimenta sonhos
mudança (in)desejada!


tropeça em avanços e recuos
persiste 
vacila entre desejos e receios
teima
oscila entre o ser e o devir
travessia (in)segura!

GR