30 janeiro, 2022

𝑽𝒂𝒎𝒐𝒔 𝑳𝒆𝒓! 𝑼𝒎 𝑪â𝒏𝒐𝒏𝒆 𝒑𝒂𝒓𝒂 𝒐 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒐𝒓 𝑹𝒆𝒍𝒖𝒕𝒂𝒏𝒕𝒆, de Eugénio Lisboa

 


Autor: Eugénio Lisboa
Título: Vamos Ler! Um Cânone para o Leitor Relutante
N.º de páginas: 132
Editora: Guerra e Paz
Edição: Março 2021
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3310)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este pequeno livro é um autêntico convite à leitura para leitores, leitores compulsivos e sobretudo leitores relutantes. Para estes últimos, a quem efectivamente se dirige o livro, apresenta uma lista de 50 livros, de 35 autores portugueses.
Eugénio Lisboa começa por apresentar a sua experiência pessoal como leitor, os seus gostos literários, o seu método de leitura e indica muitas dicas interessantes.
“ Já então, eu vivia dentro dos livros” (p. 34),
“O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer.” (p. 46)
e
“(…) desde muito novo, senti que a leitura, para ser proveitosa, não devia encontrar um leitor passivo e apático. O leitor deve reagir, deve focar um olhar dinâmico, enriquecedor e crítico naquilo que lê. O leitor deve pensar naquilo que lê. O leitor deve pensar naquilo que lê.” (p. 70)
De seguida, explica a razão da sua escolha e argumenta que para convencer quem ainda não gosta de ler, a “isca” tem de incluir livros mais acessíveis e termina com uma breve apresentação, um “vol d’oiseau”, sobre os autores da lista.
“As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam.” (p. 46)

Cita vários escritores, não incluídos na lista, que podem também cativar leitores: Maupassant, Simenon, Somerset Maugham, Kipling, Edgar Poe, Mark Twain, Domingos Monteiro, Torga ou Rodrigues Migueis – “todos estes grandes escritores são perfeitas “iscas” para vencer o fastio do leitor mais renitente” (p. 55)
Ao longo da sua exposição, o autor indica os seus autores de eleição portugueses e estrangeiros, e não evita algumas farpas a Gabriela Llansol, a James Joyce e a Agustina Bessa Luís, sendo as desta última, excessivamente duras, na minha opinião.

Não sendo eu uma leitora “relutante” posso afirmar que este pequeno livro é uma pérola para leitores viciados. Da sua leitura retirei algumas boas sugestões, confirmei outras tantas possíveis leituras e sublinhei imensas frases interessantes!

“E, agora, VAMOS LER!” (p. 132) já que “A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica” (p. 42)



27 janeiro, 2022

Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto

 


Holocaust Encyclopedia - United States Holocaust Memorial Museum
(La selección de judíos húngaros en el campo de exterminio de Auschwitz-Birkenau, mayo de 1944.)



Fila Escura

Será possível escolher-se um percurso mais absurdo?
No Corso San Martino há um formigueiro
A meio metro dos carris do elétrico,
E precisamente na cabeça do carril
Estende-se uma longa fila escura,
Toca-se uma com outra formiga,
Talvez a espiar a sua vida ou fortuna.
Enfim, estas estúpida irmãs 
Obstinadas lunáticas obreiras
Escavaram na nossa a sua cidade,
Traçaram sobre os nossos os seus carris,
E percorrem-nos sem receio
Apressadas atrás dos seus subtis afazeres
Sem se preocuparem com
        Não quero escrevê-lo,
Não quero escrever sobre esta fila,
Não quero escrever sobre nenhuma fila escura
                     
                                                                     13 de agosto de 1980

Primo Levi,  Auschwitz, Cidade Tranquila



26 janeiro, 2022

𝑩𝒂𝒍𝒂𝒅𝒂 𝒑𝒂𝒓𝒂 𝑺𝒐𝒑𝒉𝒊𝒆, de Filipe Melo e Juan Cavia



Autor: Filipe Melo
Ilustrador: Juan Cavia
Título: Balada para Sophie
N.º de páginas: 305
Editora: Companhia das Letras
Edição: Junho 2021
Classificação: Novela gráfica
N.º de Registo: (3308)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Esta novela gráfica é uma obra-prima! Com um argumento sublime escrito por Filipe Melo e magistralmente ilustrado por Juan Cavia, esta história transporta o leitor para um mundo sensorial, intenso, sensível, de uma beleza extraordinária. O enredo é triste e simultaneamente arrebatador. Há momentos de dor intensa, de desilusão, de amor, de ódio, de arrependimento, de solidão, de esperança. São momentos mágicos, deslumbrantes com um final brutal.
Não vou desvendar nada da história (a sinopse já revela muito). Cada leitor deve descobri-la e desfrutá-la com prazer, intensamente. Apenas referir que se trata de uma história de vida, sobre a complexidade humana perante as adversidades, sobre a redenção.

Podem acompanhar a leitura com o acompanhamento musical disponibilizado aos visitantes do site Bandas Desenhadas:

Ou pelo vídeo, no youtube, “Filipe Melo toca 'Balada para Sophie'"




24 janeiro, 2022

𝑬𝒄𝒐𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂, de Joana Bértholo

 

Autora: Joana Bértholo
Título: Ecologia
N.º de páginas: 499
Editora: Caminho
Edição: Maio 2018
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Bib)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Leitura complexa, intensa e inquietante que nos coloca constantemente perante questões pertinentes e muito actuais de uma sociedade “doente”, tais como, a linguagem na desvalorização da palavra face às redes sociais; a ausência de pensamento, de opinião perante um facto; a aniquilação das relações interpessoais; a imposição do medo; as consequências do capitalismo e da privatização de tudo, onde tudo se paga, até as palavras; o conformismo de uns e a revolta de outros (poucos) perante certas decisões; a ausência de consciência e a negligência em relação ao meio-ambiente.
“Muitos Consumidores ainda não entendem que quando os produtos e serviços lhes são oferecidos, isso significa que eles próprios são o produto.
Mesmo aqueles que o entendem, pesam as grandezas em jogo e decidem-se a favor da qualidade de vida. Embarcam numa existência com controlo sobre variáveis e imprevistos, mas permanentemente controlados, Já não há «estar fora». Em nenhum aspecto da vida. Uma utopia individual dentro de uma distopia colectiva.” (p. 418)

Livro distópico que apresenta uma posição muito crítica, sustentada no progresso e no avanço tecnológico sem limites, na descoberta de palavras, pela voz de Candela, a criança que ao longo do livro vai colocando questões desconcertantes e que se constitui como um enorme campo experimental e lúdico de jogos de palavras (sinonímia, polissemia, antonímia, normalização, monitorização).
Numa estrutura invulgar, fora do comum, com tipologias textuais diferenciadas, Ecologia dispersa-se por várias linhas narrativas que revelam situações diversas, histórias familiares, personagens várias e que segundo um fio condutor acabam por se ligar e dar sentido ao que aparentemente parece desconexo. À semelhança de outras distopias bem conhecidas, há um “sistema” criado por Darla Walsh que apresenta um plano que vai transformar as palavras em produtos de consumo, taxadas de forma aleatória. Para tal, cria tecnologia avançada que permita registar, contabilizar, monitorizar as palavras ditas pelas pessoas e assim atribuir-lhes um valor a pagar. Mas como toda a tecnologia, também esta revela pontos fracos e acaba por não detectar palavras pronunciadas por gagos, ou cantadas, ou ditas ao contrário entre outros subterfúgios que as pessoas vão descobrindo.

Joana Berthólo ao projectar no futuro esta sua visão da sociedade, acaba por pôr em evidência o presente, a realidade. Vivemos numa sociedade de consumo e de (des)informação, sob o engodo do marketing (muito bem demonstrado no livro) e do livre (falso) acesso à informação veiculada pelas redes sociais, tudo se paga, tudo se compra, todos opinam, todos escrevem, todos têm razão, nada se verifica, nada se confirma, nada se analisa…
Através de um discurso irónico, corrosivo, bem-humorado, a autora desmonta a relação ambígua entre o poder e o saber, questiona a hierarquia de valores, ou a falta dela, e alerta para as questões ecológicas.


22 janeiro, 2022

𝑶 𝑪𝒐𝒏𝒕𝒐 𝒅𝒂 𝑰𝒍𝒉𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒄𝒐𝒏𝒉𝒆𝒄𝒊𝒅𝒂, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: O conto da ilha desconhecida
N.º de páginas: 39
Editora: Caminho
Edição (3.ª): dezembro 2007
Classificação: Conto
N.º de Registo: (2643)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Já li, reli e voltei a ler este pequeno conto de Saramago, mas nunca escrevi sobre ele. Por motivos profissionais tornou-se uma leitura obrigatória e quase anual. Mas sempre que o leio, é com um prazer redobrado que acompanho o pedido do homem “dá-me uma barco” e a decisão da mulher da limpeza em acompanhá-lo à procura da ilha desconhecida. Não vou desvendar a história que narrada sublimemente nos leva a questionar sobre a nossa existência, que nos faz olhar para dentro.
A ilha desconhecida mais não é do que uma alegoria à busca interior e ao conhecimento de si próprio “(…) mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, (…) Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós,” (pp. 27 e 28)
Não desistir dos seus sonhos é outra mensagem que se retira deste pequeno texto, ou será que é a mesma? E que afinal está tudo interligado. Concretizar os sonhos mais não é do que lutar por algo que se deseja, desvendar o que nos vai na alma e, no caso, o desejo material do homem era na verdade a descoberta do seu íntimo, do seu auto-conhecimento. Não sabendo como resolver essa premissa, por si só, transferiu-a para a descoberta de uma ilha desconhecida.
“Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar” (p. 23)

Numa mescla de fantasia e filosofia com pinceladas de ironia, Saramago propõe-nos uma auto-reflexão e mostra-nos um caminho para a resolução das muitas dificuldades que nos vão surgindo pela vida.
Trata-se, afinal, de um conto com múltiplas viagens… a viagem de cada leitor.
Recomendo muito este conto, sobretudo para quem se quer iniciar no vasto mundo saramaguiano. Sendo um texto curto permite ao leitor abordar e adaptar-se ao estilo muito próprio do autor com pontuação reduzida, diálogos não assinalados e um ritmo peculiar. (Lê-lo em voz alta, facilita)


12 janeiro, 2022

𝑼𝒎 𝑷𝒊𝒏𝒈𝒐 𝒏𝒂 Á𝒈𝒖𝒂, de Ann Yeti

 


Autora: Ann Yeti
Título: Um Pingo na Água
N.º de páginas: 156
Editora: Sell Out (Narrativa)
Edição: Março 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3336)

OPINIÃO ⭐⭐⭐

Neste seu segundo livro, Ann Yeti apresenta-nos uma protagonista deveras interessante. É uma mulher inteligente, trabalhadora, super independente, sensual e bem-disposta. Desde muito jovem, devido a circunstâncias pessoais, foi obrigada a tornar-se autónoma e a gerir a sua vida pessoal e profissional.
É uma mulher de sucesso, profissionalmente bem resolvida e, até certa altura, poder-se-á afirmar que em termos afectivos também o é, tendo em conta que é bastante independente e moderna quanto ao seu relacionamento amoroso.
Sendo uma mulher bonita, sensual e inteligente, Ana provoca nos homens uma forte atracção, levando alguns a cometer algumas loucuras saudáveis.
Assim, numa escrita escorreita, cativante, concisa e transparente como “um pingo de água”, a narrativa transporta-nos para o quotidiano de Ana e vamos acompanhando o seu sucesso e reconhecimento profissionais, bem como as suas opções amorosas e relações sexuais que vai manter com João e Carlos. Cada um à sua maneira, porque muito diferentes, conseguiu quebrar a barreira erguida por Ana e conquistar o seu coração.
Gostei da história narrada, gostei das personagens, sobretudo da feminina com o seu carácter honesto, lúcido, independente e, por vezes ambíguo, que lhe confere encanto e empatia.
É uma história de amor, de vivências intensas, mas também de perda e de superação.

11 janeiro, 2022

No dia do seu aniversário... (74 anos)


Foto minha


"Tudo vem ao chamamento. Penso mar, e o mar enche-me a alma e as mãos. Balbucio cal, e na pele do tempo cresce uma casa onde não viverei, ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos, e nela nos ferimos.
Digo sol, e quase cego consigo tocar-lhe. Só por ti clamo, e não te acendes, nem regressas, e me queimas.”

 Al Berto, in Lunário



 

09 janeiro, 2022

𝒍𝒖𝒕𝒐, de Eduardo Halfon


Autor: Eduardo Halfon
Título: luto
Tradutor: J. Teixeira de Aguilar
N.º de páginas: 106
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3280)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Neste livro, Halfon narra a complexidade das relações familiares fechada no silêncio como processo de luto e por consequência de culpa. O narrador, que se confunde com autor, regressa à casa dos avós, nas margens do lago Amatitlán, na Guatemala, e aí vai desvendando as suas memórias e os segredos da família. Foi com o intuito de entender alguns destes segredos ou “o que me contavam em criança” (p. 11) que decidiu voltar ao seu passado em busca da verdade. Assim, revisita a sua infância marcada pela situação política da Guatemala , o exílio da família para os Estados Unidos, a deportação do avô nos campos de concentração, e sobretudo a morte do seu tio paterno Salomón, entre outros.

A narrativa fragmentada saltita entre o passado e o presente, de personagem em personagem, de história em história. Nada é linear, mas tudo faz sentido. Estes saltos fluem naturalmente e imprimem intensidade e eficácia à narrativa; as deslocações geográficas dão consistência à sua identidade; a revelação dos segredos move reflexões, sentimentos contraditórios e quebra as convicções mantidas durante anos.

À medida que a narrativa evolui, o narrador vai-se libertando do passado, e só o consegue quando se afasta da família e se aproxima de outras personagens, figuras míticas guatemaltecas, que o ajudam a “ver a sua verdade” (p. 92)

É um livro muito breve, cerca de 100 páginas, com uma escrita cuidada, simples, ritmada e poética que seduz o leitor pela sua sensibilidade.



08 janeiro, 2022

𝑶 𝑵𝒆𝒕𝒐 𝒅𝒐 𝑯𝒐𝒎𝒆𝒎 𝒎𝒂𝒊𝒔 𝑺á𝒃𝒊𝒐 - 𝑼𝒎𝒂 𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑱𝒐𝒔é 𝑺𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒈𝒐, de Tomás Guerrero

 

Autor: Tomás Guerrero
Título: O Neto do Homem mais Sábio
Tradutor: João Miguel Lameiras
N.º de páginas: 144
Editora: Levoir
Edição: 2020
Classificação: Novela Gráfica
N.º de Registo: (3340)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Considero esta novela gráfica uma belíssima homenagem a José Saramago, mas também a Fernando Pessoa, por via do seu heterónimo Ricardo Reis.

Tomás Guerrero foi feliz ao pegar na frase, ​“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, proferida por Saramago no discurso em Estocolmo, aquando da atribuição do Prémio Nobel em 1998, referindo-se ao seu avô Jerónimo Melrinho.
A tarefa de narrar em banda desenhada a vida e obra de Saramago é arriscada, mas Guerrero foi genial ao colocar os “defuntos” Jerónimo Melrinho (avó de Saramago) e Ricardo Reis, inspirando-se na obra O Ano da Morte de Ricardo Reis, em conversa animada sobre Saramago e, assim, vão guiando o leitor ao longo das páginas que o mesmo é dizer, ao longo da vida do biografado.

Esta narração a duas vozes, iniciada em Estocolmo, em 1998, vai instruindo o leitor com informações biográficas desde a infância na Azinhaga até aos últimos dias em Lanzarote, com citações muito bem enquadradas nas ilustrações, que considero magníficas, e ainda com a divulgação das obras publicadas.

A representação da história através das ilustrações, dos desenhos sai fora do comum, não temos as convencionais vinhetas tornando-o mais próximo de um livro ilustrado do que propriamente de uma banda desenhada. Como referiu Valter Hugo Mãe no prefácio “ as suas pranchas são riquíssimas, equilibradas, surpreendentes. Sem exageros, mantendo até uma estranha atmosfera da mesma humilde personalidade de Saramago.” Poder-se-á referir que por vezes os desenhos nada acrescentam ao texto em termos de informação, são naturalmente um complemento, tornam-no mais belo, mais poético.
Outra característica facilitadora da leitura do texto é a cor diferente atribuída a cada uma das duas vozes, permitindo a sua identificação imediata.

Apesar de gostar muitos da ilustração, é sobretudo o texto que mais aprecio, a conversa mantida por Jerónimo Melrinho, o homem mais sábio, que não sabia ler, e Ricardo Reis traduz a visão que Saramago tinha de si próprio, dos seus familiares e do mundo.

Recorrendo de novo ao prefácio escrito por Valter Hugo Mãe, subscrevo a sua opinião que a expressa de forma notável: “ Este livro é brilhante. É íntimo, delicado, brilhante. Com ele, Saramago continua a nascer”.


06 janeiro, 2022

𝑶𝒃𝒋𝒆𝒄𝒕𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒔𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: Objecto Quase
N.º de páginas: 142
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Novembro 1998
Classificação: Contos
N.º de Registo: (2673)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Objecto Quase integra seis contos breves onde as personagens são, na sua maioria, “coisificadas”, ou melhor dizendo, os objectos são humanizados. Esta característica é evidente nos contos “Cadeira” e “Embargo”. Outros há em que a fantasia, o surreal, o absurdo tomam conta da história e deparamo-nos com uma “animalização” do homem. Em todos, é evidente o tom sarcástico e a crítica à sociedade capitalista, à necessidade do ser humano em possuir bens e à sua dependência.
Ao longo dos seis contos, o autor conduz-nos por caminhos diversos, e que recorrendo a situações surreais, retrata o pessimismo, a depressão, a dependência e a imperfeição do ser humano.
A escrita destes seis contos revela o poder de observação, a capacidade de esmiuçar factos, o sentido crítico e bem-humorado do autor. Os seus textos, apesar de curtos, são autênticos trabalhos literários: descrições detalhadas; metáforas espantosas; histórias criativas repletas de ironia e de intensidade.

Por exemplo, no primeiro conto, “Cadeira”, fica-se pela descrição detalhada e irónica da cadeira que foi atacada pelo bicho da madeira e que vai destruindo o interior da perna que fará cair o homem que nela se senta. Facilmente percebemos que o episódio relata a queda de Salazar. Trata-se se uma alegoria ao fim da ditadura e do sistema vigente. A cadeira representa o poder. Se esta se torna decrépita, insegura, então o poder está decadente e deve ser substituído. É notável a descrição do momento em que o homem se sentou na cadeira, se recostou e finalmente caiu. Por vezes, parece que o narrador se desvia do assunto, tecendo outras histórias, outros factos, mas se o faz é para tornar mais intensa e credível a descrição sem nunca perder o fio condutor da narrativa em curso.

Gostei de todos os contos, mas a minha preferência recai em “Coisas”, o quarto conto. Classificá-lo-ia como uma distopia. As pessoas são hierarquizadas por ordem alfabética (têm a letra desenhada na mão), de acordo com a sua posição social. Tudo é absurdo, as coisas começam a ter reacções humanas, começam a tomar consciência da sua situação: objectos (portas, jarros, marcos do correio, degraus,…) desaparecem misteriosamente, paredes e prédios desabam, relógios deixam de funcionar, sofás têm febre, pessoas ficam nuas, cidades inteiras desaparecem …
Saramago põe em destaque a paranoia individual, mas sobretudo a colectiva, ele anula toda a materialidade e põe a nu o homem para o confrontar com a sua existência, com a sociedade em que se insere e vive de acordo com o que lhe é ditado. O homem torna-se objecto perante a inoperância e tirania do poder. O conto termina com uma réstia de esperança, de mudança porque, afinal, há sempre alguém que luta pela diferença.

Nestes textos, como em toda a obra, Saramago é exímio na crítica social.


02 janeiro, 2022

𝑫𝒂 𝑴𝒆𝒊𝒂-𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆 à𝒔 𝑺𝒆𝒊𝒔, de Patrícia Reis

 


Autora: Patrícia Reis
Título: da meia-noite às seis
N.º de páginas: 183
Editora: D. Quixote
Edição: Janeiro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3278)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Este último livro de Patrícia Reis tem como pano de fundo a pandemia que vivemos. É, por isso, um livro na ordem do dia.
É o primeiro livro que leio sobre este tema, e escolhi-o porque sei que a autora não trataria o assunto de forma lamechas, mas sim de forma directa, envolvente e que nos fará reflectir. Não me enganei, a autora aborda a perda, o recomeço, os efeitos da pandemia, mas também versa sobre homofobia, racismo, conservadorismo, jornalismo, fake news, política e redes sociais.
“Qualquer pessoa nas redes sociais era jornalista, dizendo coisas, atiçando os espíritos, destilando fel, muito fel. A Rui Vieira faltava-lhe a capacidade para compreender como a ética deixara de ser fundamental.” (p. 117) “ Ele sabia estar a viver um tempo em que a verdade era essa: valia tudo:” (p. 116)
A protagonista, Susana Ribeiro de Andrade, perde o marido, em plena pandemia e vê-se completamente desamparada, confinada, obrigada a cumprir normas e, assim, a fazer o seu luto em casa, sozinha. Nesse período, ela é transportada para “um elevador de memórias” e dá-nos a conhecer a sua vida e sobretudo os seis anos de casamento com António Ribeiro de Andrade. São tempos angustiantes e de dor, mas também de referências culturais.
“ E estes pensamentos iam surgindo, assim como fios desatinados num novelo que já não se mantinha inteiro, a esfarelar-se no chão que era o que restava do coração dela. Restava-lhe isso, uma certa memória que lhe devolvia o marido através da música, da arte, dos livros.” 
(p. 74)

Forçada a retornar ao seu emprego como locutora numa estação de radio, acaba por aceitar o horário da meia-noite às seis, pensando que é a melhor maneira para não enfrentar a noite, em casa. De início, é apenas a voz das notícias, à hora certa, escritas pelo jornalista Rui Vieira, também, ele, vítima de um acidente no qual perdeu a voz. A cumplicidade que se estabelece na relação de trabalho acaba por ser a sua salvação. Ambos, um pela escrita, outra pela voz vão recriar o programa da noite e reinventar a solidão dos ouvintes e sobretudo a deles.
Com uma escrita muito característica de Patrícia Reis, as palavras fluem e o leitor ávido vai atrás do enredo e acompanha cada personagem nas suas angústias, nas suas fragilidades, nas suas resoluções e nas conversas tidas via email com Rui Vieira e via Whatsapp com os ouvintes do programa. Dois meios, que representam bem a forma como a pandemia nos apartou das relações presenciais e nos coagiu às tecnologias. Patrícia Reis toca na ferida, mostra o quão urgente é alterarmos a forma de viver no que toca às relações humanas, de repensarmos a vida.
É um livro sobre pessoas, sobre a solidão e a perda, mas sobretudo sobre a recuperação da identidade, sobre esperança e amizade, de redenção graças ao poder de uma voz que na noite, na solidão, vence barreiras e encontra apoio e ânimo ao pedir que lhe contem histórias felizes. Só isso!