24 novembro, 2022

𝑨𝒏𝒂, de Maria Teresa Horta

 




Autora: Maria Teresa Horta
Título: Ana
N.º de páginas: 57
Editora: Futura
Edição: 1974
Classificação: Prosa
N.º de Registo: (3322)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Ana sublinha a urgência de escrever da sua autora e o desejo centrado na mulher. Escrito em prosa é um texto fragmentado, anacrónico porque avança ao ritmo de memórias, repetitivo para acentuar a posição da mulher na sociedade. É um texto pautado na submissão da mulher perante a voz inquiridora e inquisidora do homem, que vive em “clausura”, na mulher que aceita o seu destino: “mulher de pertença e objecto, floreira ou aceite dos outros, decoro.” (p.20)
O discurso feminista pela luta da liberdade a que a autora já nos habituou, realça neste livro, o desejo centrado no corpo da mulher, o silêncio que separa o homem e a mulher, a distância que se vai cavando ao longo do “manso perfurar do tempo” . Assim, a autora faz da sua escrita uma arma contra a diferença, a opressão, em defesa da mulher e dos seus pontos de vista, a favor da liberdade corporal e sexual, da identidade própria, sem a interdição moral imposta à mulher.


22 novembro, 2022

𝑻𝒓𝒂𝒃𝒂𝒍𝒉𝒐𝒔 𝒅𝒐 𝑶𝒍𝒉𝒂𝒓, de Al Berto

 


Autor: Al Berto
Título: Trabalhos do Olhar
N.º de páginas: 78
Editora: Contexto
Edição: Novembro 1982
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (2787)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Revisitar a escrita de Al Berto é uma constante e uma necessidade quer por questões profissionais quer pessoais.

Trabalhos do Olhar estabelece uma relação entre a arte e a vida em que o “olhar” é o regulador da sociedade, da cultura, do poder, da ficção; um “olhar” límpido, atento, explicitamente homossexual que pretende subverter as normas instituídas; um “olhar” que transmite o desejo como matéria-prima da escrita, da sua escrita.
Al Berto usa uma linguagem homoerótica, apropria-se de topos da narrativa de sedução, de engate, de voyeurismo como, por exemplo, em “Truque do gato” (p. 29); o “olhar felino” que almeja o outro, o rapaz:
“(…)
espio o anoitecer, por trás das inexistentes cortinas
apercebo o rapaz com a silhueta do gato morto
junto ao peito, o meu olhar tornou-se felino
sorrio à minha ficção quotidiana
pego num lápis e recomeço a escrever”

É a escrita que alimenta Al Berto, que o mantém vivo, que o liga ao mundo por onde viaja “sem rumo”, que lhe acalenta o desejo, que lhe aviva as memórias que subtrai do “papel fotográfico” e que lhe permite todos os “Trabalhos do Olhar”, bem como revelar “escrevo-te a sentir tudo isto” e “não tenho medo de morrer aqui” . Estas revelações provocam no poeta a necessidade absoluta de escrever entre os silêncios onde se estabelece o caos do passar dos dias e onde se encontram as palavras, as imagens, as fotografias que acabam por restabelecer a ordem.

Al Berto escreve sobre sentimentos, sobre corpo(s), sobre memória, sobre solidão e morte, sobre o mar, a noite, a natureza e o cheiro das cidades costeiras, sobre feridas, sobre a escrita
“(…)
a escrita é um marulhar incessante
imito a paisagem como se te imitasse, ou escrevesse
teu corpo dilui-se nos ossos da página, contamina as cartilagens das sílabas
resta-me o fingimento sibilante das palavras
caminho pelo interior das dunas, apago o rasto de tinta acetinada, sou terra num texto onde não encontro água
só noite e um rumor imperceptível no coração
mais nada” (p. 19)

Recomendo! Muito!

21 novembro, 2022

𝑶 𝑨𝒏𝒐 𝒅𝒂 𝑫𝒂𝒏ç𝒂𝒓𝒊𝒏𝒂, de Carla M. Soares

 


Autora: Carla M. Soares
Título: O Ano da Dançarina
N.º de páginas: 389
Editora: Marcador
Edição: Abril 2017
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: (3361)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐ 


O Ano da Dançarina é a minha estreia com Carla M. Soares. Já tinha lido várias opiniões positivas sobre os seus livros e decidi-me por este, tendo em conta os temas abordados que, apesar da diferença temporal, considero muito actuais.

A acção decorre no ano de 1918, primeiro em França, durante a Primeira Guerra Mundial e depois em Lisboa. Aí acompanharemos as movimentações da família Lopes Moreira, as políticas de Sidónio Pais e a devastação provocada pela gripe espanhola.

Gostei da escrita cuidada e fluida e da forma como os dados históricos se integram na acção. A pesquisa intensa e cuidada realizada pela autora enobreceu a narrativa pois os factos históricos e a ficção cruzam-se na perfeição. As personagens bem construídas e interessantes psicologicamente encaixam com mestria no tempo histórico e nos vários espaços. Na minha opinião, este aspecto é fulcral no livro, causando um forte impacto na história, já que permite uma melhor caracterização das personagens tornando-se um elemento essencial no desenvolvimento dos conflitos sociais, psicológicos e até culturais.

Trata-se de uma história cativante que nos agarra compulsivamente. Gostei do enquadramento social e político e adorei acompanhar e “sentir” intensamente as paixões, as dores, as lutas, as perdas da família Lopes Moreira e dos seus próximos.

O Ano da Dançarina para além da ambiguidade do seu título que muito tem para revelar, oferece ao leitor uma vasta informação sobre a época, mas também a possibilidade de sonhar. Foi uma leitura muito aprazível.


16 novembro, 2022

15 novembro, 2022

Ainda há quem saiba cuidar


Ilustração, Tayebeh Tavasoli


Há pessoas que são abrigo, sem saber...
Há pessoas que são abrigo, mesmo sem querer!
Há pessoas que se tornam abrigo!
Só porque sabem escutar.
Só porque sabem abraçar!
Só porque sabem amar!
Há pessoas que se tornam porto de abrigo.
Âncora.
Há pessoas que são o abrigo do sol, o abrigo da noite... o abrigo de tudo o que perturba por ser em demasia.
Há pessoas que mesmo sem querer, são portos de abrigo. Só porque sabem cuidar. Despindo a razão e usando apenas, o coração!


Marisa Sousa, Guarde de Mim


14 novembro, 2022

Rafael Gallo vence Prémio José Saramago 2022





O escritor brasileiro Rafael Gallo é o vencedor do Prémio José Saramago pelo seu romance Dor fantasma, que será publicado em Portugal pela Porto Editora.

Bruno Vieira Amaral, escritor distinguido com o Prémio Literário José Saramago 2015, e membro do júri desta edição, enalteceu a qualidade da escrita do autor.

"É mão cirúrgica, aplicando incisões seguras e sábias, é mão de pintor, na pincelada criativa e intencional, é mão de maestro segurando a batuta e guiando a orquestra num crescendo de som e fúria que culmina no magistral desenlace do romance", afirmou.

A edição deste ano teve como jurados os escritores e anteriores premiados José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, João Tordo e Bruno Vieira Amaral, além de Pilar del Rio, presidenta da Fundação José Saramago, Guilhermina Gomes, em representação da Fundação Círculo de Leitores e Presidente do Júri, e a escritora brasileira Nélida Piñon, membro honorário.

O Prémio Literário José Saramago foi instituído para celebrar a atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 1998 ao autor de "Memorial do Convento", visando jovens autores, cuja primeira edição tivesse sido publicada num país da lusofonia.

Notícia completa em  Expresso 


13 novembro, 2022

𝑴ã𝒆, 𝑫𝒐𝒄𝒆 𝑴𝒂𝒓, de João Pinto Coelho


Autor: João Pinto Coelho
Título: Mãe, Doce Mar
N.º de páginas: 198
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: ()



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


João Pinto Coelho é cada vez mais um dos meus autores de eleição. Já me (nos) habitou a romances fortes, emotivos, marcantes e com finais surpreendentes, pelo que peguei neste livro com uma enorme expectativa porque era o seu novo livro que aguardava com ansiedade e porque já havia ecos muito positivos e que anunciavam novidades, mudança de tema. Mais curiosa e expectante fiquei quando o ouvi no Café com Letras.

Em Mãe, Doce Mar, o autor transporta-nos para o seu mundo, para o seu íntimo. E percebemos, de imediato, logo na primeira frase, que não ficaremos indiferentes à nova narrativa de JPC.
“Tinha doze anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.
E, no meu caso, é verdade.”

E, assim, com um aperto no coração partimos à descoberta de Noah, de Frank e de Patience. A cada uma destas personagens, o autor dedicou capítulos próprios, que nos revelam, na primeira pessoa, flashes importantes das suas vidas e que, apenas, no final encaixam de forma surpreendente e fascinante.
O autor é exímio na construção do seu enredo, quando pensamos que nos vai revelar algo, ei-lo que trava e que cria uma pausa que nos deixa suspensos e nos força a ler e a ler numa busca incessante e que se vai tornar avassaladora. Eis um exemplo: “Não quero ir mais longe, revelar se o seu [da mãe] abraço teve o aperto perfeito ou até se aquelas lágrimas foram um caudal de culpa ou outra coisa qualquer.” (p. 9)

Sendo um romance autobiográfico nem sempre é fácil discernir onde entra a ficção. Também não faço questão de o saber. Não é importante. O que interessa mesmo é absorver a história que nos é narrada, desfrutar do poder e da força da escrita, sentir o prazer de uma boa leitura.

João Pinto Coelho neste romance enveredou por um novo caminho, saiu da sua zona de conforto conquistada merecidamente com três romances fabulosos, e não desiludiu. Pelo contrário, veio confirmar que é detentor de uma escrita bela, trabalhada como se de uma escultura se tratasse. Uma escrita sincera, extremamente humana que revela dramas, sofrimento, solidão,… neste caso, distancia-se do sofrimento colectivo para se centrar no “eu”. E que bem o fez. Como soube usar a metáfora do mar, ora calmo e contemplativo, ora tempestuoso para evidenciar os estados de alma das personagens.

Para concluir, resta-me sossegar JPC e dizer-lhe que pode continuar a confiar nos seus leitores, que, atentos, saberão ler nas entrelinhas, mesmo naquilo que não foi dito e que as luzes ficaram acesas. Brilhantes. Flamantes.

08 novembro, 2022

𝑴𝒂𝒓𝒈𝒂𝒓𝒊𝒕𝒂 𝒆 𝒐 𝑴𝒆𝒔𝒕𝒓𝒆, de Mikhail Bulgákov

 


Autor: Mikhail Bulgákov
Título: Margarita e o Mestre
Tradutor: António Pescada
N.º de páginas: 448
Editora: Colecção Mil Folhas
Edição: Agosto 2002
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1363)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Ao pesquisar um pouco sobre a vida e obra do autor para uma melhor compreensão do livro, ficou claro que Mikhail Bulgakov não era apoiante do regime, tornando-se mesmo um autor polémico e muito crítico. Sendo vítima de censura, Margarita e o Mestre levou dez anos a ser escrito porque o autor sabia que não seria aceite no regime estalinista.
Só vinte e sete anos depois da sua morte, o livro foi publicado e tornou-se num fenómeno literário. Há no livro uma referência clara a este aspecto o que confere à narrativa um caracter autobiográfico. O Mestre da narrativa é escritor e Margarita é a sua amada e principal mentora. “Ela tem uma opinião demasiado elevada sobre o romance que eu escrevi. (…) deixe-me vê-lo. Woland estendeu a mão. (…) Infelizmente, isso não me é possível – respondeu o Mestre – porque o queimei no fogão.
- Desculpe, mas não acredito – disse Woland – isso não pode ser. Os manuscritos não ardem. (pp. 322 -323)

Temos assim, um livro desconcertante, divertido, empolgante e satírico. As duas partes que o compõem transportam-nos para universos de puro divertimento, mas também de profunda reflexão. O sobrenatural entrelaça-se magistralmente à crítica social e política do regime ditatorial de Estaline.
O Bem e o Mal, simbolicamente referidos na epígrafe, extraída da famosa obra Fausto, de Goethe, dão o mote à narrativa e preparam o leitor para a grande metáfora da vida e da natureza humana com um toque de cariz religioso.
“Quem és tu, então?”
“Parte daquela força que eternamente deseja o mal e eternamente cria o bem.”

Para além da dualidade Bem e Mal, há outras que se interligam como o amor e o ódio, a honestidade e a mentira e que condimentam todo o enredo e o tornam numa obra genial.
Partindo de uma trama realista e representativa de um país em plena ditadura, Bulgakov cria um enredo louco e absurdo, com personagens fabulosas e diabólicas que coloca numa Moscovo vazia de vontades e opiniões próprias, oprimida e devastada.

Não pensem que a história é taciturna, bem pelo contrário, e aí reside o encanto do livro, é que para retratar uma época sombria, o autor revela uma imaginação espantosa e com recurso à alegoria cria cenas divertidas, inventa diálogos com um forte sentido de humor, por vezes negro, estabelece pactos “que só o diabo sabe”, representa uma sociedade em crise de valores onde o mal predominava. 

Margarita e o Mestre é indiscutivelmente uma obra-prima da literatura universal. Na minha opinião, faz jus à literatura russa do século XIX que tanto aprecio e que leio sempre com enorme prazer.


06 novembro, 2022

Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6/11/1919 – Lisboa, 2/7/2004)





Mar


Mar, metade da minha alma é feita de maresia 
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia, 
Que há no vasto clamor da maré cheia, 
Que nunca nenhum bem me satisfez. 
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia 
Mais fortes se levantam outra vez, 
Que após cada queda caminho para a vida, 
Por uma nova ilusão entontecida. 

E se vou dizendo aos astros o meu mal 
É porque também tu revoltado e teatral 
Fazes soar a tua dor pelas alturas. 
E se antes de tudo odeio e fujo 
O que é impuro, profano e sujo, 
É só porque as tuas ondas são puras.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética