30 abril, 2023

𝑳𝒆 𝑱𝒆𝒖𝒏𝒆 𝑯𝒐𝒎𝒎𝒆, de Annie Ernaux



Autora: Annie Ernaux
Título: Le Jeune Homme
N.º de páginas: 37
Editora: Gallimard
Edição: Abril 2022
Classificação: Autobiografia
N.º de Registo: (3432)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Em Le Jeune Homme, Annie Ernaux evoca a relação de uma mulher de cinquenta anos (a sua) com um homem trinta anos mais novo. Em trinta e tal páginas, ela menciona apenas de forma muito breve e incisiva o que é fundamental, sem nada aprofundar.
A sua narrativa, que mais se assemelha a um exercício de escrita, parece ser uma investigação rigorosa da vida conforme ela a vivencia.

A paixão que a consome revela o seu próprio desejo e os seus modos burgueses. Ela mede o fosso entre as idades, e perante a impropriedade social dessa união assumida publicamente, ela é criticada, olhada de viés pelos mais velhos e rejeitada pelos mais jovens. “Il m’arrachait à ma génération, mais je n’étais pas dans la sienne” (Ele arrancou-me à minha geração, mas eu não acedi à sua) (p. 17). Perante a sociedade, ela assumiu a sua relação como um desafio, como sempre o fez na vida, para tentar alterar as convenções. Se a um homem era permitido exibir-se na companhia de uma mulher mais jovem, por que razão não o era na situação inversa?

Esses fragmentos de humanidade, do vivido a dois são valiosos, insubstituíveis, na medida em que ela percebe, durante a relação, o peso da sua memória, da sua vida passada, a finitude das coisas perante este homem mais jovem.
“Avec lui, je parcourais tous les âges de la vie, ma vie”, (Com ele, passei por todas as idades da vida, minha vida) (p.21)

Sem excessos, directa, sensível e corajosa, Ernaux não foge à verdade e revela logo no início que fazer amor era o meio para chegar à escrita.
"Souvent j’ai fait l’amour pour m’obliger à écrire. Je voulais trouver dans la fatigue, dans la déréliction qui suit, des raisons de ne plus rien attendre de la vie. J’espérais que la fin de l’attente la plus violente qui soit, celle de jouir, me fasse éprouver la certitude qu’il n’y avait pas de jouissance supérieure à l’écriture d’un livre." (Muitas vezes fiz amor para me forçar a escrever. Quis encontrar no cansaço, no abandono que se segue, motivos para não esperar mais nada da vida. Esperava que o fim da expectativa mais violenta, a de gozar, me fizesse ter a certeza de que não havia gozo maior do que escrever um livro) (p. 11)

Annie Ernaux conta a sua verdade sem pretensões nem artifícios. Expõe a sua vida, naturalmente, sem preconceitos e, assim, cria empatia com o leitor.


29 abril, 2023

𝑺𝒊𝒅𝒅𝒉𝒂𝒓𝒕𝒉𝒂, de Hermann Hesse





Autor: Hermann Hesse
Título: Siddhartha (um poema indiano)
Tradutor: Pedro Miguel Dias
N.º de páginas: 127
Editora: Colecção Mil Folhas - Público
Edição: Maio 2002
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1344)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



A trama do livro decorre no século VI d.C. e narra a história de um jovem, filho de um brâmane que decide sair de casa à procura do EU, numa busca interior incessante, à procura da felicidade e da verdade. Siddhartha que levava uma vida privilegiada, era jovem, belo, sábio, mas não era feliz: “o espírito não estava satisfeito, a alma não estava aquietada, o coração não estava pacificado.” (p. 9). Ávido de conhecimento, Siddhartha coloca-se inúmeras questões e sente necessidade de partir, de tudo abandonar, de procurar um outro caminho que lhe permita entrar no seu Eu, na sua interioridade.

É esse caminhar de busca, de aprendizagem, de “autonegação através da dor, através do sofrimento voluntário e da derrota da dor, da fome, da sede, do cansaço” (p. 17) que vamos acompanhando ao longo da narrativa. O jovem viverá, numa primeira fase, uma vida de privações, completamente ascética, da qual se cansa e parte em busca de mais conhecimento. Nesse novo caminho vai apaixonar-se e aprender o jogo das sensações, os segredos do amor, o mundo dos negócios, levando uma vida de volúpia, de opulência e de cobiça. Percebendo que é incapaz de amar, e que ali também não atingirá a perfeição, parte novamente e só junto de um barqueiro encontrará a serenidade tão desejada porque deixa finalmente de lutar contra o destino. Com ele aprenderá a ouvir a linguagem do rio, isto é, a metáfora da corrente da vida.

É um livro de aprendizagem, que transmite valores como a simplicidade, a humildade, a autoconfiança, a paciência, o saber ouvir.

O subtítulo “Um poema indiano”, de que gosto sobremaneira, exprime bem a beleza poética do texto, o equilíbrio, a perfeição quer na escrita quer na mensagem transmitida que nos leva a pensar nas nossas próprias escolhas, decisões e experiências e nos ensina que “podemos partilhar conhecimentos, mas não a sabedoria.” (p.120)

A obra está repleta de simbologia e de conceitos da filosofia hinduísta-budista, tais como o Karma, o Nirvana e a Roda de Sansara. Siddhartha simboliza o filósofo, o amante do conhecimento, o viajante eterno sem medos e limitações em busca da perfeição.
Recomendo muito.



28 abril, 2023

Desassossego!

 

                                                                      obra de Paula Rego



... no desalinho triste das minhas emoções confusas...

    Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações — áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações confusas.


    Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci, de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.
    A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.



Livro do Desassossego, por Bernardo Soares | Fernando Pessoa.



 

27 abril, 2023

Silêncios!

 

Foto minha


espaço interior

quando o poema
são restos do naufrágio
do espaço interior
numa furtiva luz
desesperada,

resvalando até
à superfície,
lisa, firme, compacta,
das coisas que todos
os dias agarramos,

quando
o poema as envolve
numa aura verbal
e se incorpora nelas,
ou são elas a impor-lhe

a sua metafísica
e o espaço exterior
que povoam de
temporalidades eriçadas,
luzes cruas, sons ínfimos, poeiras.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"


25 abril, 2023

𝑨𝒏𝒅𝒂𝒓 𝒂 𝑷é, de Henry David Thoreau

 


Autor: Henry David Thoreau
Título: Andar a Pé
Tradutora: Raquel Ochoa
N.º de páginas: 74
Editora: Alma dos Livros
Edição: Abril 2021
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3429)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Raquel Ochoa no prefácio ao livro Andar a Pé, de Thoreau refere que foi o autor que “neste seu radical panfleto, quem me [lhe] conseguiu explicar a lógica entre a caminhada e o ser livre.” E com esta afirmação ela expõe, sumaria e indubitavelmente, a índole deste livro.
O livro apresenta uma filosofia de vida que se centra na arte de caminhar como forma intensa de despertar os sentidos, de explorar emoções, de retemperar a alma, de acalmar o espírito, de saciar os desejos. É um autêntico manifesto à liberdade absoluta, à vida no seu acto mais selvagem e simultaneamente simples, isto é, caminhar, vaguear, prestar atenção, procurar a natureza selvagem, natural, espontânea, intocada.
“ Para mim, esperança e futuro não estão nos relvados ou nos campos cultivados, nem nas vilas ou cidades, mas nos pântanos impermeáveis e instáveis.” (p. 47)

Para Thoreau, caminhar é também a oportunidade de meditar, de libertar a mente, de adquirir conhecimento através da observação e da experiência.
“ Acredito que há um magnetismo subtil na natureza, o qual, se rendidos inconscientemente, nos levará ao caminho certo. Não nos é indiferente o rumo escolhido. Há um caminho certo; porém a nossa desatenção e estupidez têm propensão para o errado. Gostaríamos de dar aquele passeio, nunca antes feito por nós neste mundo físico, o que simboliza perfeitamente o caminho que adoraríamos percorrer no mundo interior e espiritual.” (p.32)

As caminhadas, mais ou menos longas, de Thoreau são momentos de puro prazer, ele vive a natureza na sua plenitude; observa a mudança das estações, o amanhecer, o anoitecer, os frutos, as flores, os animais, as cores; capta os sons, … Ele está convicto “de que há mais coisas no Céu e na Terra do que a nossa filosofia sonha.” (p. 64) e julga que “a coisa mais elevada a que podemos aspirar não é ao conhecimento, mas à compreensão pela inteligência.” (p. 64), daí preferir procurar o selvagem, o intocado, o desconhecido para melhor se julgar a si próprio, entender a natureza do homem e da sociedade.

Como nota final ou como ideia que sintetiza todo o livro poder-se-á referir que para Thoreau o homem só poderá entender-se melhor, compreender o meio em que vive se estiver em contacto com a natureza, já que é “na natureza que está a preservação do mundo” (p. 42). Para ele o ser humano que vive em liberdade, na natureza é superior, é mais bondoso “quão próximo do bem está o que é selvagem.” (p. 45)

Texto curto, inovador e atual, numa época em que as alterações climáticas são uma verdadeira preocupação.


Dia da Liberdade

 






23 abril, 2023

𝑽𝒐𝒍𝒇𝒓â𝒎𝒊𝒐, de Aquilino Ribeiro

 


Autor: Aquilino Ribeiro
Título: Volfrâmio
N.º de páginas: 310
Editora: Bertrand Editores
Edição: Setembro 2015
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: (3446)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Volfrâmio tem como tema a exploração das minas durante a II Guerra Mundial e o colaboracionismo dos portugueses no fornecimento de volfrâmio às fábricas de armamento quer dos alemães quer dos ingleses. Este aspecto retrata a posição ambígua dos governantes portugueses, na época, perante a Guerra. Mas é sobretudo uma caricatura do Portugal rural da Beira, das terras paupérrimas do interior e dos comportamentos bacocos, extravagantes e vis da população devido ao enriquecimento fácil e inesperado provocado pela extração de volfrâmio. Este período de abundância revelar-se-á efémero, porém tempo suficiente para as gentes da terra entrarem em loucura, esbanjarem dinheiro em despesas vãs, entrarem em jogos de enganos, roubarem e até cometerem crimes. Tudo em nome do dinheiro que obtêm na venda do mineral.

Aquilino Ribeiro evidencia um conhecimento apurado e vasto dos lugares e das pessoas e revela ser um observador atento já que na sua narrativa descreve minuciosamente formas de estar e de sentir: a corrida desenfreada ao volfrâmio; a luta infernal pela sua exploração; a vida miserável das gentes que tentam subsistir num território pobre e com um clima agreste; as mudanças económicas e sociais que advieram das novas circunstâncias. Fica claro o crescendo das consequências negativas à medida que a utopia “do ouro negro” se vai diluindo. A alteração de valores, de atitudes, de falta de ética põe a nu a exploração dos trabalhadores, as condições de trabalho, a corrupção aliada ao contrabando, e o fosso cada vez maior entre ricos e explorados. Aquilino nos seus romances oferece-nos uma diversidade lexical muito própria da sua Beira. A sua escrita é erudita e elegante, com toques de ironia, rica em regionalismos, muito apoiada nas raízes culturais e linguísticas do povo. Algum vocabulário é considerado difícil porque em desuso, mas facilmente compreensível em contexto.

Gostei de (re)descobrir a prosa de Aquilino. Há muito que o não lia. Prometo dar continuidade. É necessário promover os bons escritores, os clássicos da nossa literatura. E se “ Aquilino possuía como nenhum outro, a sabedoria da língua e dos segredos gramaticais e estilísticos: metáforas, sinédoques, parábolas, fábulas, analogias, um arsenal de conhecimentos que aplicava nos livros com alegre desenvoltura.” como refere Baptista-Bastos no seu prefácio, então Aquilino não pode continuar esquecido nas estantes.




22 abril, 2023

Inquietação

 


Inquietação

Será ternura? Será afeição?
o que em mim vive...
será tudo? Em ebulição...

Será amor? Será paixão?
o que me torna insone...
será tudo? Em exaltação...

Será dúvida? Será ilusão?
o que me ilude...
e me destrói a razão...

Será receio? Será desilusão?
o que me inquieta...
e me corrói o coração...

O que quer que seja...
é inquietação...

Tudo é inquietação! 

GR



15 abril, 2023

Inquietação?

 

O abraço, Gustav Klimt

Será ainda possível
meu amor
trocar a vida por ti…

trazer-te devagar
ao coração?

entregar-me ao teu
secreto abraço
e só então…

abrirmos as asas
devagar
a voar a eternidade

… até ser não."

In Paixão, Maria Teresa Horta


14 abril, 2023

Porto Covo

                                                                                Foto minha


Roendo uma laranja na falésia
Olhando o mundo azul à minha frente
Ouvindo um rouxinol na redondeza
No calmo improviso do poente

Em baixo fogos trémulos nas tendas
Ao largo as águas brilham como pratas
E a brisa vai contando velhas lendas
De portos e baías de piratas

Havia um pessegueiro na ilha
Plantado por um Vizir de Odemira
Que dizem que por amor se matou novo
Aqui, no lugar de Porto Côvo

A lua já desceu sobre esta paz
E reina sobre todo este luzeiro
À volta toda a vida se compraz
Enquanto um sargo assa no braseiro

Ao longe a cidadela de um navio
Acende-se no mar como um desejo
Por trás de mim o bafo do destino
Devolve-me à lembrança do Alentejo

Havia um pessegueiro na ilha
Plantado por um Vizir de Odemira
Que dizem que por amor se matou novo
Aqui, no lugar de Porto Côvo

Roendo uma laranja na falésia
Olhando à minha frente o azul escuro
Podia ser um peixe na maré
Nadando sem passado nem futuro

Havia um pessegueiro na ilha
Plantado por um Vizir de Odemira
Que dizem que por amor se matou novo
Aqui, no lugar de Porto Côvo

 Rui Veloso / Carlos Tê


13 abril, 2023

Dia do Beijo


O beijo 

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

Jorge de Sena, In Antologia Poética




        Henri Cartier Bresson                              Man Ray                                    Robert Doisneau


10 abril, 2023

𝑶 𝑭𝒆𝒊𝒕𝒊ç𝒐 𝒅𝒂 Í𝒏𝒅𝒊𝒂, de Miguel Real

 

Autor: Miguel Real
Título: O Feitiço da Índia
N.º de páginas: 381
Editora: D. quixote
Edição (2.ª): Junho 2013
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: (Empréstimo - FM)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O Feitiço da Índia, de Miguel Real, é um romance sobre a colonização portuguesa de Goa e que põe em cena três gerações da família Martins.
José Martins, primeiro português a desembarcar em solo indiano, foi na frota de Vasco da Gama (1498) como degredado; Augusto Martins, o único português a permanecer em Goa após a libertação deste estado, foi enviado por Salazar (anos 50) para ir trabalhar nas minas e Luís Martins, o narrador da história, descendente do primeiro, seu undécimo avó, e filho do segundo, parte em busca do pai (1975) para “o forçar a dar-lhe um terceiro beijo.”
Nenhum deles regressou ao país natal. Os três se apaixonaram por mulheres indianas… os três foram enfeitiçados pela beleza e sensualidade das mulheres. Estas, as mulheres, são a metáfora da Índia, terra fascinante e exótica, terra de contrastes (cheiros, cores, sabores, sentimentos,… ) com hábitos e costumes tão díspar dos nossos; terra “cultora das virtudes da alma quanto dos prazeres do corpo” onde a sensualidade, pela sua natureza excessiva e erótica, é ”livre e despreconceituada” do mal e do tão arreigado pecado cristão. E é nessa união física, sensual, carnal que reside o feitiço da Índia.

Este romance representa um valioso legado histórico-cultural na medida em que transparece a qualidade da investigação histórica e a reflexão filosófica sobre a Portugalidade, tão cara ao autor. Neste romance prevalece a construção da identidade portuguesa aquando dos descobrimentos, sobretudo na relação com os povos e a sua presença na Índia (conquista, massacres, domínio, entendimento, abandono e decadência).
O autor é exímio na construção da sua narrativa. Ora nos revela uma Índia miserável, nauseabunda, onde se morre de doenças, de fome, de miséria, ora nos retrata a sua riqueza cultural e espiritual, a beleza e a sensualidade da mulher. Ora nos presenteia, ainda, com a pequenez de Portugal, estado mesquinho sem visão e sem futuro que não soube gerir o grande império conquistado.

O choque de duas civilizações, estética e culturalmente tão distantes, uma Goa mais sensível e sentimentalista e um Portugal mais racional, conservador e calculista, é-nos retratado de forma realista, diria mesmo sensorial, já que a narração tão detalhada nos permite criar e viver intensamente os ambientes descritos.
As histórias apresentadas revelam a crueza de alguns episódios nem sempre consciencializados por todos; descrevem o herói português em busca de fortuna que se deixa facilmente seduzir e deslumbrar; relatam a benevolência e, por que não, a bondade do homem português que encontrou um lugar e criou uma família, mesmo quebrando, por vezes, as regras culturais e religiosas; descrevem momentos de enfeitiçante erotismo, de experiências sexuais tão necessárias “para se viver bem espiritualmente”; narram hábitos e costumes geracionais de um povo submisso, maltratado, mas superior cultural e espiritualmente.
É no cruzamento dos factos reais e dos factos efabulados que reside a beleza deste romance. Percebe-se o conhecimento histórico do autor, mas é, na minha opinião, a sua sensibilidade no relato que eleva esta narrativa.
“ (…) elas [as mulheres] de alguidares de plástico americanos ou potes de barro à cabeça, saris vistosos e largos, que as assemelhavam a borboletas coloridas de voo caprichoso, todos descalços , olhos cor de mel , as faces resignadas dos eternamente pobres, os filhos passivos presos entre os panos das pernas, seres condenados ao opróbrio e à miséria.” (p. 115)
Recomendo vivamente. 




01 abril, 2023

𝑳á, de Ana Zorrinho e Raquel Ventura

 


Autora: Ana Zorrinho
Ilustradora: Raquel Ventura
Título: Lá
N.º de páginas: 56
Editora: Caleidoscópio
Edição: Janeiro 2021
Classificação: Infantil/Juvenil
N.º de Registo: (3403)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



O que é o ? Perguntaram ELES, os alunos…

Assim, à primeira vista e, objectivamente, é o título de um livro de capa dura e branca ilustrada com um menino, um sol (ou será uma lua?), uma mão… Esperem, olhando atentamente, parece mais um fio que traça, enlaça, une as ilustrações, que se desenovela até à contracapa e que entra pelas folhas adentro…

O melhor é mesmo seguir o fio… descobrir a história nas palavras suave e expressivamente lidas pela sua autora, Ana Zorrinho, e nas ilustrações apresentadas também pela sua autora, Raquel Ventura.
Que privilégio! Termos as duas presentes para nos maravilharem com a sua, DELAS, construção do !

AQUELES, os alunos, que sentiram as palavras, que se embrenharam no novelo do fio, que construíram a sua história, entenderam, imaginaram o como sendo ponto seguro, abrigo, confiança, amor, sonho, desejo, céu, mãe, pai, avó, avô, amigo, amiga, eu, tu, ele, ela, eu interior, isto é, descoberta de si…

OUTROS, os alunos, que teimosamente se mantiveram alheados ao fio… das palavras lidas, das páginas folheadas, das cores, dos traços… permaneceram na dúvida do ! Advérbio? Nota musical? Outra coisa? O quê?...

Concluo como iniciei, afinal o que é o ? é mesmo o título pequeníssimo (duas palavras, apenas), de uma obra maravilhosa, sensível com uma mensagem poderosa, muito pessoal (cada um retirará a SUA) e que VOS convido a descobrir. Mas imponho, repito, imponho uma condição: quando pegarem nesta obra de arte (que o é), peguem nela com paixão, sintam as palavras, enleiam-nas nos traços, no fio e sonhem, deixem-se embalar... descubram o VOSSO !