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30 agosto, 2025

𝑶 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒅𝒐 𝑪ã𝒐, de Ondjaki e António Jorge Gonçalves

 



Autor: Ondjaki
Título: O Tempo do Cão
Ilustrador: António Jorge Gonçalves
N.º de páginas: ---
Editora: Caminho
Edição: Fevereiro 2025
Classificação: Conto / novela gráfica
N.º de Registo: (3679)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


 




22 agosto, 2025

𝑵𝒆𝒎 𝑻𝒐𝒅𝒂𝒔 𝒂𝒔 Á𝒓𝒗𝒐𝒓𝒆𝒔 𝑴𝒐𝒓𝒓𝒆𝒎 𝒅𝒆 𝑷é, de Luísa Sobral

 

~

Autora: Luísa Sobral
Título: Nem Todas as Árvores Morrem de Pé
N.º de páginas: 222
Editora: D. Quixote
Edição: Fevereiro 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Emp.)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


 




17 agosto, 2025

𝑨 𝑴𝒂𝒕é𝒓𝒊𝒂 𝑫𝒂𝒔 𝑬𝒔𝒕𝒓𝒆𝒍𝒂𝒔, de Isabel Rio Novo




Autora: Isabel Rio Novo
Título: A Matéria Das Estrelas
N.º de páginas: 191
Editora: D. Quixote
Edição: Maio 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3711)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Já o referi, mais do que uma vez, e reitero que considero a Isabel Rio Novo uma das melhores escritoras portuguesas na nossa produção literária contemporânea.
Ao iniciar, A Matéria das Estrelas, já sabia que a fasquia estava elevada. O romance já recebera um prémio e as críticas eram muito positivas. Sabia de antemão que ia gostar, quando se gosta muito de um(a) autor(a) nunca se fica desiludido. Mas sabendo tudo isto, ainda fui surpreendida e fiquei muita agradada ao perceber que este romance dava uma enorme “piscadela de olho” a uma obra de Paulo M. Morais (obra magnífica e que recomendo muito). Não vou revelar muito desta interacção, para não retirar o prazer da descoberta, refiro, apenas que o protagonista, Jacinto, é também uma personagem do livro A Boneca Despida.
Esta cumplicidade entre os dois escritores, engrandece-os, na minha opinião. E se no livro, a dedicatória de Isabel Rio Novo “Ao Paulo, com quem caminho pelos terrenos da realidade e da ficção”, já fazia sentido pelo apoio mútuo com que se brindam, agora, faz ainda muito mais sentido.

Em A Matéria das Estrelas, Isabel Rio novo conduz o leitor até meados do século XX (anos 60 e 70) com incursões ao tempo das navegações, sobretudo de Bartolomeu Dias. A narrativa balança harmoniosamente entre a história de Jacinto, de Bartolomeu Dias e a do narrador investigador e omnisciente. A autora revela uma grande mestria ao cruzar os diversos tempos da narração: o histórico, o psicológico, o da memória, e o da ficção.

A narrativa oferece diversas camadas de leitura. São vários os temas abordados, mas podemos referir que se foca, essencialmente, no incidente misterioso que alterou o destino do jovem oficial da marinha, Jacinto da Silva Fernandes. É através da investigação conduzida pelo médico, com quem ainda mantém laços familiares, que tomaremos conhecimento, de forma não cronológica, da história de Jacinto, de alguns aspectos familiares que influíram na vida do jovem e de acontecimentos de um Portugal bafiento, injusto e hipócrita.

Isabel Rio Novo numa escrita simples e cuidada cria personagens fortes e perturbadoras e oferece-nos uma viagem maravilhosa sobre memórias, paixões e segredos da qual nunca saímos indiferentes porque, na história dos outros, encontramos, por vezes, a nossa, como referiu o doutor Eduardo a certa altura da investigação.

Recomendo muito.


12 agosto, 2025

𝑺𝒆𝒋𝒂 𝒇𝒆𝒊𝒕𝒂 𝒂 𝒕𝒖𝒂 𝒗𝒐𝒏𝒕𝒂𝒅𝒆, de Paulo M. Morais



Autor: Paulo M. Morais
Título: Seja feita a tua vontade
N.º de páginas: 128
Editora: Casa das Letras
Edição: Junho 2017
Classificação: romance
N.º de Registo: (3721)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Seja feita a tua vontade, de Paulo M. Morais, é um romance comovente que aborda a morte como escolha consciente e a despedida como reencontro. Através da relação entre um avô e o seu neto, o autor constrói uma narrativa íntima, onde se cruzam memórias, silêncios e afectos.

O enredo centra-se na figura do avô, médico octogenário, que, cansado de lutar contra os “bichos imaginários” que lhe devoram o corpo, decide pôr fim à sua vida de forma metódica e consciente. Esta decisão, comunicada à família, desencadeia uma série de dilemas éticos e emocionais, especialmente para o neto, que assume o papel de cuidador e confidente.
“Passamos tardes inteiras a falar de intimidades. No recato do teu quarto, exponho-me e exponho-te. Damos as mãos. Faço-te festas no rosto. Para passarmos o tempo que falta (ou será recuperarmos o tempo perdido?), partilhamos histórias nestes dias em que a morte ronda.” (p. 43)

O livro confronta-nos com questões delicadas como a eutanásia, o envelhecimento, o direito à morte digna e a desumanização da morte hospitalar. A decisão do avô é apresentada como um acto de lucidez e de dignidade, desafiando convenções sociais e familiares.
Nesse período de tempo (dezanove dias), avô e neto revisitam memórias e afectos, num processo de despedida íntimo. Porém, a narrativa ganha uma reviravolta quando, inesperadamente, o avô informa que pretende continuar a viver, abalando a serenidade conquistada e reabrindo feridas emocionais.

Paulo M. Morais constrói personagens densas e realistas, explorando a complexidade das relações inter-geracionais. O avô, inicialmente rígido, revela-se vulnerável e humano, enquanto o neto, jornalista e pai de uma menina, emerge como uma figura de escuta e ternura.
Questiono-me se não haverá, neste romance, um carácter auto-biográfico?

A escrita é contida, mas carregada de emoção. A economia de palavras releva o impacto dos momentos de ternura e de dor, conferindo maior autenticidade à narrativa. E a escrita diarística, na segunda pessoa, reforça o tom confessional e aproxima o leitor das personagens.

A citação de Morreste-me, de José Luís Peixoto no livro não é apenas uma referência literária — é uma ponte emocional entre duas obras que exploram o luto com uma tremenda delicadeza.

Os dois livros partem da dor da perda para construir uma narrativa íntima e reflexiva. A diferença, é que em Morreste-me, José Luís Peixoto escreve com uma linguagem poética e fragmentada, como se cada frase fosse um eco da ausência do pai. A dor é crua, mas contida, e o texto transforma-se num espaço de memória onde o filho tenta manter vivo o que já não está. Já em Seja feita a tua vontade, Paulo M. Morais aborda a morte antecipada — não como perda súbita, mas como escolha consciente. O avô decide serenamente morrer e o neto acompanha esse processo, criando uma despedida que é também uma reconstrução de afectos.

Seja feita a tua vontade é um livro que nos toca profundamente. Mais do que uma história sobre o fim, é um convite à escuta, à ternura e à coragem de estar presente quando o tempo finda.


10 agosto, 2025

𝑨 Ú𝒍𝒕𝒊𝒎𝒂 𝑨𝒖𝒓𝒐𝒓𝒂, de Simão Resendes Cabral



Autor: Simão Resendes Cabral
Título: A Última Aurora
N.º de páginas: 51
Editora: Editorial Novembro
Edição: Dezembro 2024
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3678)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Simão Resendes Cabral publica o seu primeiro livro de poesia. São doze os poemas que constituem A Última Aurora. Tratando-se de uma primeira obra, o autor revela já uma notável sensibilidade poética.
Estamos perante uma escrita muito visual, luminosa e sensorial com a qual o sujeito poético se propõe transpor “os portais do devaneio decisivo”; escrita de contemplação que pelo viés de metáforas e de antíteses constrói um universo de demanda e de contemplação onde o “eu”, o “nós”, envolto em silêncios, descobre novos caminhos, novas auroras, novas sensações e se permite sonhar.

“ Sonho
Transporto comigo a fórmula
Para um estado de perpétua contemplação
Com audácia, harmonizo-me continuamente
E tudo reluz como mil sonhos unidos num só brilho
Tudo repleto de vida e significado
Enche de luz a minha alma
Até ao alvorecer do meu ideal”

Que o sonho se materialize em palavras. Que este livro seja o primeiro de muitos.


04 agosto, 2025

𝑨 𝑷𝒆𝒅𝒊𝒂𝒕𝒓𝒂, de Andréa Del Fuego

 


Título: A Pediatra
N.º de páginas: 203
Editora: Companhia das Letras
Edição (3.ª): Abril 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3716)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐





A Pediatra é um romance que se destaca pela abordagem provocadora e intensa que desafia o convencional sobre a maternidade e o papel da mulher na medicina e no casamento.

Ao construir uma protagonista segura e desconcertante que rejeita os papéis tradicionais atribuídos às mulheres, sobretudo o da maternidade, a autora tece uma crítica às estruturas sociais que ditam os padrões aceitáveis de uma sociedade ainda patriarcal.

Cecília, sem problemas financeiros e habituada a um conforto aburguesado, acaba com um casamento sem afecto, vive uma sexualidade plena e evita compromissos emocionais; como pediatra neonatalogista mantém um consultório com sucesso, faz parcerias com uma colega obstetra no hospital, apesar de afirmar que “detesta crianças”.

Cecília revela-se competente e pragmática, mas afasta qualquer vínculo afectivo sendo julgada, pelos seus pares, como uma pessoa fria e cínica. “O afeto é uma doença contagiosa. Prefiro manter distância.”
O romance centra-se em duas visões da prática médica: a de Cecília, racional e distante, e a de um novo pediatra adepto de práticas alternativas e acolhedoras.
A chegada deste causa-lhe alguma instabilidade profissional, na medida em que perde pacientes, mas não altera em nada a sua postura e as suas convicções.

Na minha opinião, Cecília usa a rejeição à maternidade como uma armadura. Ela constrói uma vida onde a racionalidade e o auto-domínio são os seus pontos fortes. A frieza com que trata os pacientes, mães e crianças, e a distância emocional que mantém com os seus próximos, parecem esconder algo mais vulnerável. Isto fica claro quando ela se envolve com Bruninho, o filho do amante. A sua relação com a criança escapa ao seu controle e surge uma empatia inesperada, mas não resolvida. Ela não sabe reagir com os sentimentos que a invadem e que escapam à sua lógica fria e insensível. Pelo que a sua aversão é uma defesa, mas não uma essência.

Cecília, provavelmente, não odeia as crianças — talvez ela odeie os papéis que lhe são impostos como mulher. A maternidade é encarada por Cecília como uma vontade pessoal, sem imposição. Nem toda a mulher quer ser mãe.

A narrativa feita na primeira pessoa, com um ritmo acelerado e cínico, pretende, da mesma forma, afastar o leitor emocionalmente, o que reforça a ideia de que há algo reprimido. Ao longo do romance, vamos detectando camadas complexas que causam algum desconforto:
Cecília é uma mulher, médica, bem-sucedida, mas sem qualquer traço de empatia ou de afecto; ela desmonta o arquétipo da mulher cuidadora, recusando o papel de mãe, de esposa, de profissional; ela promove uma sexualidade livre, crua e sem culpa, o que contraria a moral tradicional e a sua atitude final é completamente desconcertante.

Será que é Cecília que está errada ou é a sociedade com as suas imposições?
Convido-vos a descobrir esta personagem tão segura quanto frágil, tão detestável quanto sedutora.



29 julho, 2025

𝑱𝒆𝒔𝒖𝒔 𝑪𝒓𝒊𝒔𝒕𝒐 𝑩𝒆𝒃𝒊𝒂 𝑪𝒆𝒓𝒗𝒆𝒋𝒂,de Afonso Cruz



N.º de páginas: 248
Editora: Alfaguara
Edição (3.ª): Janeiro 2013
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2765)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Afonso Cruz, em O vício dos livros (p. 81), refere que "Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor." Ora, este Jesus Cristo bebia cerveja soube esperar resignadamente (12 anos) até que nos encontrássemos. Foi o primeiro livro que comprei do autor, em 2013, no FMM, com direito a conversa e autógrafo. Depois, li muitos, mas mesmo muitos do autor e este foi ficando para trás…

Jesus Cristo bebia cerveja apresenta-nos uma narrativa insólita e divertida povoada de personagens originais e marcantes num Alentejo rural. Toda a ação se configura em torno de Rosa que cuida da sua avó doente, que gosta de ler westerns e policiais, apesar dos poucos estudos, e que tem o bizarro costume de chupar pedras.

Ao longo da narrativa surgem indícios que inquietam o leitor e que anunciam uma possível tragédia: "- O amor não se compra. - Mas paga-se caro."; “Eu não jogo aos dados. Deus é que joga.” (alusão directa ao livro de Ian Stewart ou, então, a Albert Einstein «Deus não joga aos dados»)

Jesus Cristo bebia cerveja é um livro criativo, caricato e controverso que, subtilmente, nos afasta de certezas triviais, de preconceitos e nos oferece, pelo viés da ironia pincelada de humor negro e de uma escrita poética (“ a tarde boceja pelas ruas”), outras perspectivas de vida e nos encaminha para uma reflexão sobre a maneira como encaramos o amor, a família, a religião e como percebemos a morte.

Claro que recomendo a leitura deste e de todos os livros do Afonso Cruz. E para reforçar a minha recomendação, fica a dica do autor:
"Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro." (p. 76)




26 julho, 2025

𝐏𝐚𝐥𝐨𝐦𝐚𝐫, de Italo Calvino




Autor: Italo Calvino
Título: Palomar
Tradutor: João Reis
N.º de páginas: 130
Editora: Planeta D'Agostini
Edição: 2001
Classificação: Contos 
N.º de Registo: (1223)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Palomar está dividido em três partes "As Férias de Palomar", "Palomar na Cidade" e "Os Silêncios de Palomar". Cada parte está subdividida em três capítulos que por sua vez apresentam 3 contos cada, reunindo, assim, 27 pequenos contos independentes que apenas têm em comum a personagem - o senhor Palomar.

Em todos os textos, o autor explora a relação entre o indivíduo e a natureza através da observação minuciosa e das reflexões do senhor Palomar.
Calvino aborda temas existenciais a partir de situações do dia-a-dia, com recurso à ironia transforma banalidades em momentos de profunda contemplação. Palomar, pela sua capacidade original de olhar para as coisas (uma onda, uma folha, um planeta, um seio, um insecto…), descobre significados pouco comuns, divaga sobre aspectos que o preocupam e tece reflexões sobre a vida, sobre as relações humanas e que acabam por conquistar o leitor.

“ O senhor Palomar decidiu que a sua principal actividade será sempre observar as coisas do lado de fora. (…) põe-se a observá-las quase sem dar por isso e o seu olhar começa a percorrer todos os detalhes e não consegue mais afastar-se delas. O senhor Palomar (…) redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece.” (p. 117)

Palomar exige do leitor uma efectiva atenção, não nos iludamos pelos textos curtos. Para captarmos a verdadeira essência da sua escrita, é importante entrar em estado de contemplação, como se fôssemos a personagem principal e usássemos um telescópio (para olhar as estrelas, por exemplo) ou uma lupa. É, igualmente, importante apreender o sentido do texto, retirar de cada observação o verdadeiro (auto) conhecimento, saber equilibrar racionalidade e sensibilidade. Isto só será possível se realizarmos uma leitura lenta e cuidada, se desfrutarmos das descrições detalhadas, se soubermos descortinar a ironia, as metáforas, os paradoxos, se estabelecermos comparações com o nosso mundo, se reflectirmos sobre as coisas observadas.
“Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? (…) Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar” (p. 118)
É um pequeno livro muito interessante. Que nos faz reflectir a sorrir.



18 julho, 2025

𝑨 𝑳𝒊𝒔𝒕𝒂 𝒅𝒆 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒖𝒓𝒂, de Sara Nisha Adams

 

Autora: Sara Nisha Adams
Título: A Lista de Leitura
Tradutora: Maria Ferro
N.º de páginas: 397
Editora: Topseller
Edição: Novembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3691)



OPINIÃO ⭐⭐⭐


Comprei este livro pelo título. Fiquei com imensa curiosidade em descobrir como os oito clássicos da lista iriam ser abordados a partir da indicação sugestiva “só para o caso de precisares…”.

A Lista de Leitura é um romance de leitura fácil e agradável que promove a descoberta do prazer de ler e de partilhar opiniões sobre os livros lidos.
“Havia algo mágico nisso, na partilha de um mundo que amámos.” (p. 301)
Só por esta razão já vale a pena lê-lo. Mas o enredo oferece-nos, ainda, a perspectiva, de que é possível, a partir dos livros, encontrar um novo sentido para a vida.

A história ocorre em Wimbledon, numa pequena biblioteca pública. Lugar de silêncio, de refúgio e de partilha de livros, de amizade, de preocupações, de (auto)ajuda.
É neste espaço privilegiado que a jovem Aleisha, adversa a livros e com uma vida complicada em casa, trabalha aborrecida durante as férias de verão. Aqui, conhece Mukesh que um dia vai devolver um livro que encontrou em casa e que tinha sido requisitado e não devolvido pela sua esposa - A mulher do viajante no tempo, de Audrey Niffenegger.

Esta simples tarefa vai revelar-se numa vitória para o velho homem e irá perturbar a sua pacata forma de viver. Mukesh é um idoso viúvo que não sabe lidar com a perda da esposa Naina, nem tão pouco com as vidas atarefadas e independentes das suas três filhas que o tratam como um incapacitado.

Aleisha e Mukesh, duas pessoas de gerações diferentes, com problemáticas diversas, têm em comum o facto de não gostarem de ler. Contudo, encontram-se na biblioteca e a lista de leitura encontrada, por acaso, pela jovem dentro de um livro – Mataram a Cotovia - vai transformar-se no elo de ligação entre os dois e vai, sobretudo, a ajudá-los a descobrir o prazer da leitura e a ultrapassar os problemas que cada um carrega.

Os oito livros que integram a lista de leitura facultam abordagens múltiplas. Cada leitor fará a sua interpretação de cada obra de acordo com as suas vivências presentes e passadas (“Hum – disse Aleisha (…) Suponho que os livros digam coisas diferentes a pessoas diferentes.” (p. 171)). Mukesh faz as suas leituras tendo sempre presente a memória da sua mulher. Cada um dos oito livros, desempenha, assim, uma função. Justiça, preconceitos, resiliência, violência, dependência, doença, família, amor, amizade, perda e morte são alguns dos temas abordados e que, em jeito de terapia, vão facultar ensinamentos e cumplicidades e fortalecer uma “amizade improvável.”

Tratando-se de um livro sobre livros (e que livros!), recomendo, seguramente, a sua leitura.



08 julho, 2025

𝑶 𝑬𝒙é𝒓𝒄𝒊𝒕𝒐 𝑰𝒍𝒖𝒎𝒊𝒏𝒂𝒅𝒐, de David Toscana

 

Autor: David Toscana
Título: O Exército Iluminado
Tradutora: Helena Pitta
N.º de páginas: 180
Editora: Parsifal
Edição: Outubro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3718)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em O Exército Iluminado, David Toscana, pelo viés de uma visão quixotesca, tece uma metáfora do patriotismo, do nacionalismo ferido.
É uma narrativa ousada e provocadora plena de ironia e emoção que transforma os fracassos em heroísmo e o absurdo em beleza.

Ignacio Matus, protagonista e motor da narrativa, é um professor ressentido e obcecado por perdas importantes: do território do Texas para os Estados Unidos e pela medalha de bronze de maratonista que alega ter-lhe sido roubada por um atleta norte-americano, Clarence DeMar, nas Olimpíadas de Paris, em 1924.
Matus é expulso da escola onde lecciona, por insistir, junto dos seus alunos, naquilo que ele considera a “vergonha nacional”. Inconformado, decide formar um exército – o Exército Iluminado - de crianças com deficiência para recuperar o território perdido no século XIX.

Toscana cria uma utopia, e como tal, recorre a uma trama inusitada, absurda, misturando delírio com idealismo, trágico com cómico e humor negro e brinda-nos com uma narrativa magnífica recheada de personagens carismáticas. Tomemos, por exemplo, “o gordo Comodoro”, que apesar da sua condição física e das suas evidentes limitações, é retratado com afeto e humor.

Assim, Toscana transforma personagens marginalizadas, com limitações graves, em heróis, em símbolos de resistência. É a celebração dos fragilizados que se tornam iluminados.

O Exército Iluminado é, por isso, um livro fabuloso pela sua imprevisibilidade e ao mesmo tempo pela total falta de senso do protagonista que acredita ganhar uma guerra com estas cinco crianças. A missão de recuperar o Texas é absurda, mas é através desta metáfora que o autor estabelece uma relação directa com os delírios de D. Quixote.
Toscana constrói uma trama carregada de ironia para nos falar de uma realidade que marcou um país, da história mexicana. Cria uma narrativa original e sensível. De forma comovente, mas não lamecha, mescla a dimensão histórica com a efabulação para explorar a complexidade do ser humano. Ao estruturar a narrativa de forma fragmentada, como se revisitasse memórias soltas, permite que passado, presente e futuro coabitem naturalmente com as vivências das suas personagens, estabelecendo uma relação entre a vida e a história; o presente e o passado, ou melhor, a fragilidade da vida retratada nestes anti-heróis e a força da memória de um homem patriota.

Toscana conduz o leitor para um universo de realismo mágico, bem nos trilhos de um Gabriel Garcia Márquez ou de um Juan Rulfo. O leitor, facilmente, seduzido deixa-se comover pela escrita poética e crua com que narra os acontecimentos insólitos vividos pelas crianças e deixa-se, sobretudo, invadir ora pela tristeza ora pela esperança e determinação. Tudo isto é um convite à reflexão. David Toscana eleva a sua narrativa a um patamar tão quixotesco que nos impele a questionar o sentido da vida e a natureza da violência num mundo tão caótico.

Foi uma bela descoberta. Mais um autor a acrescentar à já longa lista de autores sul-americanos.


28 junho, 2025

𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒐 𝑳í𝒏𝒈𝒖𝒂, de Mário Lúcio Sousa

 

Autor: Mário Lúcio Sousa
Título: Biografia do Língua
N.º de páginas: 340
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2015
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3626)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Com este livro, Mário Lúcio Sousa criou uma deliciosa utopia “em que a história fosse sobretudo a magnífica missão de contar histórias.” (p.12)
Este objectivo do autor foi totalmente alcançado, já que o fio condutor da narrativa é um condenado à morte que, para atrasar o fatídico momento da sua execução, pede, como ultimo desejo, para contar a história de Esteban Montejo, um escravo chamado Língua, que revela a habilidade incomum de falar aos sete meses de idade e a capacidade de traduzir as falas dos colonizadores aos povos africanos.
“Aos sete meses de idade, o preto abriu a boca e, quando toda a gente pensou que ele ia cuspir o leite, disse: Tenho uma língua. (…) Mando que me escrevam, pois, a biografia desse Língua. Palavra de rei, leia-se lei, portanto cumpra-se. Assim, em cumprimento da ordem real, a partir daquele momento, o menino, preto ao nascer, passou a chamar-se oficialmente Língua, mas nas circunstâncias de então, Língua era mais profissão do que apelido.” (pp. 22 e 23)

O condenado narrador, sabiamente, entrelaça a história de vida do Língua com histórias de outras pessoas, com momentos históricos de Cabo Verde e de África e com o surgimento de uma nova cidade, Falésia, vai construindo um mosaico de experiências que revelam e formam a complexidade da identidade e da memória de todo um povo.

Para tal, recorre a estratégias que nos transportam para as 1001 Noites de Xerazade. Sem pausas na sua narrativa, provoca a curiosidade do povo que se vai aproximando e instalando no local. Num jogo de palavra passa-palavra, a comunidade vai crescendo, a cidade vai-se construindo. Falésia constitui-se e os falesianos instituem o silêncio como condição de habitabilidade para, assim, poderem acompanhar a narração.
“Cento e noventa anos a contar histórias. Será mesmo esse o tempo que passou? Como haveremos de saber se aqui medimos tudo pelo tempo da história? Dormimos e acordamos sem mais pretensão do que ouvir narrar. Acontece que agora Falésia já introduziu um novo conceito de território e de propriedade no mundo e no tempo.” (p. 251)

E, assim, maravilhado pelas palavras e pela construção da narrativa, numa atmosfera de realismo mágico, tão característico do autor, o leitor deixa-se conduzir deleitosamente ao longo das páginas. Mais do que um romance sobre um escravo com atributos invulgares e prodigiosos, estamos perante algo delicioso sobre a arte de narrar estórias e, sobretudo, sobre o poder que estas acarretam para criar um mundo melhor.

Apesar do seu cariz utópico, este romance impele o leitor a reflectir sobre aspectos importantes como o colonialismo, a abolição da escravatura, a independência, o capitalismo, o comunismo, a liberdade, a educação, o amor e a morte.

Se ainda não leram este autor, fica a recomendação.



19 junho, 2025

𝑽𝒆𝒋𝒂𝒎 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒅𝒂𝒏ç𝒂𝒎𝒐𝒔, Leïla Slimani

 

Autora: Leïla Slimani
Título: Vejam como dançamos
Tradutora: Tânia Ganho
N.º de páginas: 338
Editora: Alfaguara
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3414)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Vejam como dançamos é o segundo livro da trilogia de Leïla Slimani, iniciada com O País dos Outros. Nele, continua a história da família Belhaj, nomeadamente no crescimento e na adaptação dos filhos Aïcha e Selim, às transformações sociais e políticas de Marrocos nos anos 1960 e 70.
A narrativa foca-se em Aïcha que representa uma geração em transição entre a tradição e o desejo de emancipação. Ela estuda medicina em França, na cidade de Estrasburgo. Este facto afasta-a temporariamente das suas raízes marroquinas e aproxima-a de uma nova maneira de encarar a vida e de questionar o papel da mulher na sociedade. Os conhecimentos e amizades que aí trava, levam-na para trilhos de descobertas, de questionamento, de reflexão.
O desejo de independência, por um lado, e a lealdade à herança familiar, por outro, mantém-na num limbo identitário, num conflito interior que a vai tornar mais humana e sensível. Como um passo de dança, Aïcha desliza entre Marrocos e França, entre a tradição e a liberdade.

Selim, ao contrário da irmã, revela uma trajetória marcada por certos desvios – não gosta de estudar, alia-se ao movimento hippie, sai de casa, pratica o amor livre, experimenta drogas. A sua relação com os pais é distante e provocatória.

Quanto a Mathilde e a Amine, estão mais aburguesados, cederam à modernidade apesar das raízes e do peso da cultura marroquina que atravessa uma época conturbada. Este peso cultural sente-se, sobretudo, em Mathilde, que ainda vive entre duas culturas, e mais condescendente deixa-se engordar e acomoda-se à traição de Amine com outras mulheres.

Leila Slimani para além da história familiar, dá-nos a conhecer muito da História de Marrocos. Foca-se na transformação das pessoas que têm de se adaptar às mudanças sociais, culturais e políticas do país. “Naquele país que vivera da terra e da guerra durante séculos, já só se falava da cidade e do progresso.” (p. 37)
Percebemos que, apesar das mudanças em curso, a mulher ainda desempenha um papel subalterno, as desigualdades ainda subsistem. Os ecos de um Maio de 68 começam a instalar-se, a emancipação da mulher dá os primeiros passos, vagarosa e timidamente.
Leïla é sublime. Através de uma escrita cativante e fluída, de cariz autobiográfica, conduz-nos pelas teias da (sua) família, mergulha-nos na intimidade das personagens, incita-nos à descoberta de um país e oferece-nos uma narrativa comovente.

Recomendo muito e como incentivo à leitura desta trilogia (o terceiro livro já foi publicado em Portugal), transcrevo um excerto do final da carta que Mehdi escreveu a Aïcha. Uma carta que me deslumbrou pela beleza das palavras, pela sensibilidade que nelas perpassam.
“Um dia, mais tarde, num dos nossos passeios, disseste-me, rindo-te, que eu era um ateu da vida. Ah, não. A vida possui-me. Aïcha, acredito piamente nela, a vida ilumina-me, rasga-me a cada instante, amo-a sob todas as formas, felicidade, prazer, dor, silêncio. E, graças a ti, nunca estive tão próximo dela. Reconheci-te. Esperava-te desde o dealbar da infância e tu chegaste. Vejo o céu, a luz nas palmeiras, o voo das cegonhas e fico deslumbrado. Acredita quando te digo que essa beleza é feita de nós. É feita para nós.” (p. 196).



12 junho, 2025

𝑫𝒐𝒓 𝒇𝒂𝒏𝒕𝒂𝒔𝒎𝒂, de Rafael Gallo

 


Autor: Rafael Gallo
Título: Dor Fantasma
N.º de páginas: 275
Editora: Porto Editora
Edição: Março 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3685)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O enredo centra-se em Rómulo Castelo, um pianista conceituado, que ambiciona o reconhecimento mundial como “um dos maiores intérpretes de Liszt” ao estrear “a peça intocável” pelo seu grau de dificuldade - Rondeau Fantastique - na tournée pela Europa que já tem agendada.

O protagonista é professor universitário de piano. Herdou do pai, um famoso maestro, o gosto e a valorização da música que deve ser praticada com rigor e disciplina para alcançar a perfeição, a excelência. “O zelo exige rigor.” 

Rafael Gallo é exímio na condução da sua narrativa. Nas primeiras três páginas coloca o pianista em palco, a tocar Funerais, de Franz Liszt e as expectativas criadas “entre o palco e a plateia” estendem-se ao leitor. São três páginas em que o protagonista “foi a música” e o escritor “foi a escrita”. Ficamos, desde logo, deslumbrados e também preocupados com a antecipação da informação de que será o último recital.

O rigor absorvido ao longo da sua aprendizagem como músico e a obsessão pela perfeição faz de Rómulo Castelo uma pessoa antipática, exigente e intolerante com os alunos e colegas; insensível e cruel com a esposa, Marisa, e o filho, o pequeno Franz (Franzinho) que desde o nascimento “mostrou um desvio”.
Rómulo vive exclusivamente para a música. Em casa, foge da rotina doméstica e tranca-se “na sala de estudos: caixa-forte entranhada na alvenaria do lar, arquitetura da impenetrabilidade. O lugar dele.” (p.20) e isola-se de tudo e de todos. Num mundo só dele partilhado apenas com o seu Steinway e um retrato de Liszt. Um solitário que não entende a vida.
Até que um dia o destino lhe prega uma partida. Avassaladora. Rómulo não vai saber lidar com a nova realidade, com essa dor fantasma (que não vou revelar) e a sua vida regrada transforma-se num caos.

Rafael Gallo dirige a escrita, tal uma batuta, com andamentos intensos e inquietantes. A narrativa, dividida em quatro partes – Coda, Exposição, Desenvolvimento e Cadenza - confunde-se com uma partitura em que as palavras são música e silêncios. O final, então, é fabuloso. O leitor permanece siderado perante a beleza das palavras. E tal como Rómulo Castelo que, sempre que executava na perfeição a sua obra intocável, apontava um orgulhoso “Estala, estala, estala a medida consistente da perfeição.”, também, na minha opinião, se pode aplicar a Rafael Gallo em relação ao seu livro. Equivalem-se, assim, quanto à execução, protagonista e escritor.

Contudo, não posso deixar de referir que por muito que o protagonista se dedique à sua profissão, à música e considerando, ainda, que o autor tenha amenizado a personagem com os seus dramas, não consigo sentir empatia por ela. É inadmissível que uma pessoa que lida com a beleza e a sensibilidade da música não consiga tornar-se mais afável. Pelo contrário, a sua obsessão doentia vai levá-lo a agir sem escrúpulos, a magoar os seus familiares e amigos e vai conduzi-lo à loucura. Assim, o leitor vive um enorme paradoxo. Ora sente admiração pelo professor e músico, ora sente repulsa pelo homem. E é esta ambiguidade que vai manter o suspense e o interesse até ao final.

Para concluir, Dor Fantasma é uma crítica acérrima à busca obsessiva da perfeição, à ambição, à forma como encaramos a vida a partir do “Eu”, das preferências individuais e muito pessoais.


06 junho, 2025

𝑰𝒏𝒇𝒐𝒓𝒕ú𝒏𝒊𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑮𝒐𝒗𝒆𝒓𝒏𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒓ó𝒑𝒊𝒄𝒐𝒔, de Germano Almeida

 


Autor: Germano Almeida
Título: Infortúnios de um Governador nos Trópicos
N.º de páginas: 223
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3502)




OPINIÃO ⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio de Germano Almeida, apesar de ter alguns em lista de espera há já algum tempo.
Como surgiu a oportunidade de o ler para um clube de leitura, iniciei com algumas expectativas uma vez que o autor foi Prémio Camões, em 2018 e porque o enredo, o resgate de um caso de adultério passado no início do século XIX, na então colónia de Cabo Verde, me pareceu convincente

Partindo de um episódio verídico, como esclareceu, na introdução, o próprio autor, a narrativa desenvolve alguns aspectos históricos, políticos e sociais das ilhas de Cabo Verde e de Portugal e foca-se, sobretudo, na infidelidade da mulher e sobrinha do governador de Cabo Verde, o coronel João da Mata Chapuzet, com o jovem cirurgião, Domingos da Costa Lima.

A escrita muito descritiva lega-nos um retrato fiel da época, mas peca por excesso de repetição. A leitura que, no início, flui agradavelmente, torna-se depois monótona.
A mesma história de adultério e as consequências desse acto para os dois amantes, são-nos narradas por diversas personagens.
Confesso que a expectativa inicial ficou muito aquém do desejado. Saí desiludida desta leitura. Mas como não desisto à primeira, darei, certamente, uma outra oportunidade ao autor.




30 maio, 2025

𝑨 𝑳𝒆𝒃𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑽𝒂𝒕𝒂𝒏𝒆𝒏, de Arto Paasilinna

 



Autor: Arto Paasilinna
Título: A Lebre de Vatanen
Tradutor: Carlos Correia Monteiro de Oliveira
N.º de páginas: 143
Editora: Relógio d'Água
Edição: Setembro 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3696)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de A Lebre de Vatanen foi-me proposta pelo clube de leitura – Era uma Voz, de Afonso Cruz. Não conhecia o autor, mas criei grandes espectativas porque, nas várias livrarias (sempre esgotado) a que me dirigi para o adquirir, só me falaram muito bem do autor e dos seus livros.

Parti, assim, à descoberta de Paasilinna com imensa curiosidade. Confesso que fui, de imediato, conquistada. Primeiro, pela escrita e, depois, pela história de Vatanen, o jornalista protagonista que vive em Helsínquia.

Não vou esmiuçar os motivos que o levam a mudar radicalmente de vida. Aconselho que desfrutem da leitura do livro e o descubram por iniciativa própria. Apenas, posso indicar que a partir de certo dia, ele e uma lebre iniciam uma “viagem” por terras finlandesas e com uma incursão na União Soviética, país fronteiriço. São múltiplas as peripécias que ambos vivem, na floresta, nos lugarejos, nas montanhas. São múltiplas as tarefas temporárias que Vatanen vai ter de desempenhar para poder sobreviver. É riquíssima a transformação, sobretudo interior, da personagem. Nem tudo é fácil.

A narrativa contém umas pinceladas de realidade. Por exemplo, Kekkonen foi presidente da Finlândia, durante 26 anos consecutivos, de 1956 a 1982; as localidades citadas; o nome do protagonista “Vatanen” é o nome de um famosíssimo piloto de rali. Poder-se-á intuir que a atribuição deste nome ao  foi intencional, se tivermos em conta algumas aventuras (risco e audácia) descritas e, de certa forma, como uma homenagem ao piloto. (especulação minha)

Na escrita simples e fluída transparecem a beleza da natureza e o rigor do clima nórdicos, mas também a integridade e a audácia de Vatanen. A sintonia entre escrita, natureza e protagonista resulta numa narrativa brilhante e encantadora. Ao longo das páginas e das aventuras somos convidados a questionar-nos sobre as nossas opções de vida; nomeadamente, o respeito pelo outro, pela liberdade individual, mas também, o sentido de responsabilidade para com a natureza, os animais; a solidariedade e a empatia.

Paasilinna, recorrendo, a histórias curtas, umas divertidas, outras mais absurdas, faz uma sátira à vida moderna, à monotonia da rotina das cidades, ao cumprimento de horários, às responsabilidades de um emprego e de uma família, em suma, a tudo aquilo que o acorrenta e sufoca. Em contrapartida, e com sentido de humor, apresenta-nos o renascimento de um homem que, na companhia de uma lebre, descobre um país de contrastes cultural e ambiental, descobre a mesquinhez humana, o desapego do homem para com a natureza, mas também a amizade, a empatia, a solidariedade. As aventuras de Vatanen transformam-se numa viagem de auto-conhecimento, de conquista de liberdade, de amadurecimento.

É um livro que nos faz reflectir sobre o sentido da vida. O que importa realmente. No epílogo, o autor refere-se a Vatanen da seguinte forma: “ a história pessoal de Vatanen e a sua maneira de agir revelam-no como um revolucionário, um ser autenticamente subversivo, e é aí que reside o segredo da sua grandeza.” (p. 142.
Recomendo.



25 maio, 2025

𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒅𝒂 𝑹𝒂𝒑𝒐𝒔𝒂, de Aquilino Ribeiro



Autor: Aquilino Ribeiro
Título: Romance da Raposa
Ilustrador: Benjamim Rabier
N.º de páginas: 188
Editora: Bertrand Editora
Edição: Agosto 1996
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3643)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


O clássico juvenil Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro narra as aventuras de Salta-Pocinhas, uma “raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - senhora de muita treta”.

Trata-se de uma leitura deliciosa não apenas para as crianças, mas também para os adultos. A linguagem rica e viva do mestre Aquilino Ribeiro aliada a um ritmo e a uma sonoridade musicais (recurso a rimas, métrica e aliterações) e a um sentido de humor apurado fascina o leitor e agarra, seguramente, as crianças (com mais de 10 anos, segundo o autor) com as travessuras da raposinha.

Li este livro há muito, muito tempo. Já não tinha memória de muitas das suas traquinices. Lê-lo, agora, com outro entendimento, é muito mais prazeroso. Deixei-me conduzir pelas palavras desenvoltas e sábias de Aquilino que usa com mestria a matreirice da heroína para criticar a sociedade da sua época. Ora vejamos, a raposa “delambida, atrevida, mas precavida, vai gerir a sua longa vida com o propósito de matar a fome e alimentar a alma, nem que para isso, tenha de enganar homens e bichos, corromper, assassinar e gabar-se orgulhosamente. Metáforas perfeitas que se ajustam, também, aos dias de hoje.

Apenas, acrescentar que esta edição da Bertrand inicia, em jeito de Introdução, com a carta que o autor escreveu ao seu filho Aníbal (Natal de 1924) a explicar por que decidiu escrever este livro. Ficamos, ainda, a saber que retratou a raposa sem falsificações, tal como vem na Fábula do Mestre Esopo.



21 maio, 2025

𝑨 𝑷𝒂𝒊𝒙ã𝒐 𝒔𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒐 𝑪𝒐𝒏𝒔𝒕𝒂𝒏ç𝒂 𝑯., de Maria Teresa Horta

 

Autora: Maria Teresa Horta
Título: A Paixão segundo Constança H.
N.º de páginas: 299
Editora: Bertrand Editora
Edição: Novembro 2010
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Empréstimo)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Paixão Segundo Constança H., de Maria Teresa Horta (MTH), é um romance poderoso e perturbador que mergulha no universo feminino, tal como em toda a sua obra, explorando temas como amor, ódio, loucura, traição, identidade e morte. A narrativa acompanha a paixão de Constança H., e explora a sua transformação emocional após descobrir a traição de Henrique H., o seu marido, levando-a a um estado intenso de emoções e reflexões que lhe permite desenvolver um obsessivo desejo de vingança. A transformação interior de Constança H. é levada ao limite, marcada pela dor da traição e pela obsessão erótica do desejo e do corpo. “ (E o desejo? Que dizer do desejo; sempre a formular o corpo…)” (p.79)

A obra está estruturada por textos breves entre páginas brancas e integra poemas, múltiplas epígrafes colocadas entre parêntesis, títulos e citações de outras obras que espelham paixões, registo de sonhos e de alucinações, cartas ao marido, excertos de diários, referências a obras de escritoras que se alinham com o seu pensamento, como Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana Alcoforado, Virginia Woolf, Maria Velho da Costa, Marguerite Duras, Florbela Espanca, …
Todos estes fragmentos funcionam como ecos de verdade e evidenciam a fragmentação do “eu”, a busca de identidade perdida na dor que a deixará “consumir pela paixão até ao sangue” (p. 295), a perda e o ódio que a conduzirão à loucura, ao abismo.
“E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo (…)”. (p. 23)

Ao longo das páginas, assistimos ao grito dilacerante de uma mulher traída e vulnerável. Assistimos ao medo da sua “desorganização interior”, ao medo dos tratamentos e dos choques eléctricos, ao medo dos seus fantasmas. Assistimos à paixão doentia de Constança H.. Assistimos ao crescendo da sua loucura e ficamos arrasados.

A escrita poética e erótica de MTH é marcada pela sua sensibilidade e pela profundidade com que aborda as relações humanas e os desafios da mulher na luta contra as convenções sociais, nomeadamente na forma de encarar a sexualidade. Ela subverte a ideia de pecado associada ao acto sexual e exalta livremente o corpo e a descoberta do prazer feminino.

Pelo título e pela epígrafe inicial posso intuir que este romance estabelece um diálogo com A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. Como ainda não o li, fica a promessa de o fazer brevemente para descobrir as consonâncias e dissonâncias presentes nas duas obras. Vai ser, certamente, uma leitura prazerosa porque também gosto da escrita de Clarice Lispector.


18 maio, 2025

𝑪𝒐𝒎𝒃𝒐𝒊𝒐𝒔 𝑹𝒊𝒈𝒐𝒓𝒐𝒔𝒂𝒎𝒆𝒏𝒕𝒆 𝑽𝒊𝒈𝒊𝒂𝒅𝒐𝒔, de Bohumil Hrabal

 

Autor: Bohumil Hrabal
Título: Comboios Rigorosamnete Vigiados
Tradutora: Anna Almeida
N.º de páginas: 128
Editora: Antígona
Edição: Fevereiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3376)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Com Comboios Rigorosamente Vigiados, Bohumil Hrabal transporta-nos para uma pequena estação ferroviária Checa. Decorria o ano 1945, mais concretamente, os últimos dias da ocupação alemã da Segunda Guerra Mundial.
A narrativa acompanha o desenrolar diário das tarefas do chefe da estação, do sinaleiro, da telegrafista e do aprendiz que, entre chegadas e partidas de comboios, uns mais rigorosamente vigiados que outros, vão vivendo episódios de rotina, de resistência, entre outros bem divertidos e inesperados que vos convido a descobrir.

Apesar de pequeno, o livro é intenso pela forma como o autor aborda a vida destas personagens e nos narra o enquadramento histórico da ocupação, mas sobretudo da resistência e da coragem de alguns habitantes, nomeadamente, do jovem aprendiz, Milos Hrma, tal como o seu avô o fizera antes.
“O meu avô foi andando estrada fora com os olhos fixos no primeiro tanque, que encabeçava a guarda avançada daquelas tropas motorizadas (…)” (p. 11)
Poder-se-à intuir que o autor checo pretendeu erigir um louvor à resistência patriótica ao fazer explodir um comboio dos ocupantes nazis que transporta armamento, é bem possível, mas penso também, que ao dar relevo, com muito humor, à iniciação sexual do jovem aprendiz , destaca a idade com que muitos jovens participavam na guerra.

Sendo um livro que aborda questões relacionadas com a ocupação alemã, acaba por se tornar numa leitura saborosa porque os assuntos são tratados com subtileza e inteligência.
A escrita simples, mas profunda, flui agradavelmente. Sorrimos perante as hilariantes, porque inesperadas, histórias vividas na pacata estação.

15 maio, 2025

𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 𝒂 𝑩𝒐𝒔𝒊𝒆, de Oscar Wilde

 


Autor: Oscar Wilde
Título: Carta a Bosie
Tradutora: Maria Célia Coutinho
N.º de páginas: 108
Editora: Nova Vega
Edição (3.ª): 2022
Classificação: Cartas
N.º de Registo: (3564)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Albert Camus referiu-se a esta carta como “um dos mais belos livros que nasceram do sofrimento de um homem. Concordo inteiramente e vou tentar expor a minha apreciação.

Carta a Bosie é um texto de grande carga emocional e filosófica. Escrita durante o seu encarceramento em Reading, condenado por sodomia, é um enorme desabafo de introspecção e dor, mas também de lucidez e auto-conhecimento. Oscar Wilde expõe, de forma brutalmente honesta, as suas reflexões sobre o amor, a traição, o ódio, o sofrimento, a arte e a espiritualidade, além de nos facultar uma análise profunda sobre a sua relação com Lorde Alfred Douglas, isto é, Bosie.
Famoso e reconhecido pelo seu talento, Wilde apaixonou-se perdidamente por Douglas, um jovem vaidoso e mimado de hábitos caros, sofisticados e fúteis.

A sua escrita funciona como uma catarse, um modo de lidar com a humilhação, o sofrimento e a perda (“perdera o nome, a posição, a felicidade, a liberdade, a riqueza” e a mulher e os filhos). A angústia é palpável e intui-se como a desgraça de estar preso molda a sua visão sobre a vida, o amor e até sobre si próprio. A honestidade das palavras torna a crítica dirigida a Bosie, muito feroz. Wilde descreve-o como ingrato, egoísta, preguiçoso e como a principal causa da sua ruína “tanto do ponto de vista intelectual como ético”.

Carta a Bosie reflecte uma análise brutal sobre o amor, o poder e a manipulação. Wilde percebe que a sua devoção não foi correspondida de forma sincera e que Bosie se aproveitou tanto do amor que lhe foi dedicado como dos privilégios (estatuto e dinheiro) que essa relação lhe proporcionou. Essa revelação, aliada ao sofrimento físico e emocional do período na prisão, torna a carta ainda mais angustiante e implacável.

Wilde, exausto e devastado, não se poupa na crítica, lamenta não apenas a sua derrocada, mas também a cegueira que o impediu de perceber, em tempo útil, a verdadeira natureza daquele relacionamento. Mas, ao mesmo tempo, demonstra um certo desejo de que Bosie possa transformar-se. Wilde oscila entre o desencanto e a esperança, entre o rancor e o arrependimento, entre a racionalidade de quem vê a verdade e a fragilidade de quem ainda acredita no poder do amor.
"As pessoas cujo desejo é o da sua própria realização nunca sabem para onde estão a caminhar (…) conhecer-se a si próprio. Esta é a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a última realização da sabedoria. O mistério último somos nós próprios.” (p. 81)

Em suma, esta carta tão fascinante, tão intensa e pessoal é um testemunho poderoso de dor, arrependimento e reflexão, e um dos textos mais marcantes da literatura auto-biográfica. Wilde parece alcançar algum alívio ao expor a sua dor e a sua frustração, como se ao verbalizar tudo finalmente conseguisse distanciar-se emocionalmente da relação. No fundo, Wilde não escreve apenas sobre Bosie, mas sobre si próprio, sobre a sua ingenuidade e a necessidade de encontrar sentido no sofrimento.


12 maio, 2025

𝑨 𝑸𝒖𝒆𝒅𝒂 𝒅𝒖𝒎 𝑨𝒏𝒋𝒐, de Camilo Castelo Branco

 


Autor: Camilo Castelo Branco
Título: A Queda dum Anjo
N.º de páginas: 175
Editora: Aletheia / Expresso
Edição: Julho 2016
Classificação: Novela
N.º de Registo: (3057)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Actualíssimo. A sátira dos costumes políticos e sociais em A Queda dum Anjo (1865) assenta como uma luva nos dias de hoje.

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, 44 anos, morgado transmontano conservador e de verve erudita é o protagonista. Amante dos clássicos ocupa o seu tempo mergulhado nos livros antiquíssimos, fechado na sua biblioteca. Eleito deputado pelo círculo de Miranda muda-se para Lisboa e deixa a sua mulher e prima, a morgada D. Teodora Barbuda de Figueiroa, na terra a cuidar dos bens.
O deputado conservador e defensor do passado, acérrimo crítico ao progresso e às inovações e modas causou grande impacto no Parlamento aquando da sua primeira intervenção. Aplaudido por uns e gozado por outros quer pela linguagem quer pela aparência, Calisto não se intimida, quando um deputado opositor “lhe observou o arcaísmo do traje” e outro gozou com “as botas aguçadas no bico”. Cala-os com sabedoria e ironia.
“Estas passagens, significativas do salgado espírito do provinciano, sobredoiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.” (p. 38)

Com o decorrer da sua estada em Lisboa, Calisto, o anjo, vai perder a pureza da vida provinciana e vai tornar-se homem, ao deixar-se moldar pelos costumes que imperam na capital. Vai envolver-se numa relação com uma viúva, ainda prima afastada, oriunda do Brasil e sucumbe aos vícios da modernidade, deixando-se corromper pelo luxo e pelo prazer.

A temática desta obra centra-se em dois aspectos, na minha opinião.
O primeiro, centra-se na vacuidade do discurso parlamentar e nos excessos linguísticos que evidenciam a presunção de certos deputados, como o Dr. Libório de Meireles. Este tipo de “retórica florida” que indispõem e irritam o protagonista, permite a Camilo Castelo Branco ridicularizar os deputados sem moral e sem talento. Vejamos como ele se serve de Calisto, que diz as coisas à moda velha, com correcção e saber, no parlamento:
“(…) Tomo a liberdade de perguntar a V. Ex.ª se as locuções repolhudas do ilustre colega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê de se me dizer onde se estudam tais farfalhices.” (p. 50).
O segundo, foca-se na fragilidade e imperfeição humanas em relação às ideologias individuais e colectivas, mas também à natureza dos casamentos sem amor e às paixões amorosas.
Calisto, o morgado que casara sem amor com uma prima, senhora escrupulosa nos seus deveres domésticos para com o marido e a casa, sempre combateu os seus impulsos de jovem refugiando-se, excessivamente, nas suas leituras. Porém, em Lisboa, acaba por ceder aos impulsos do coração. Conhece, finalmente, o amor e experimenta o ciúme e o desprezo.
“ (…) sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal.” (p. 73)
(Não é uma descrição maravilhosa? Eu adorei!)

O “anjo” desprezado, perde todas as suas convicções. Até que surge na sua vida a viúva Ifigénia, também ela mal-amada e desamparada.
É neste processo de transformação que a auto-ironia do autor se evidencia, facto que enriquece sobremaneira a narrativa.

Camilo Castelo Branco interpela amiúde o leitor e leva-o a uma identificação com o protagonista, tornando-o cúmplice. Com esta estratégia, pretende mostrar que a queda do anjo é, afinal, a libertação de Calisto, o caminho da felicidade e não da imoralidade.
“Na qualidade de anjo, Calisto sem dúvida seria mais feliz; mas na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vai concertando menos mal com a vida.” (p. 175).
Esta citação final revela evidentes marcas pessoais.

Concluo, reafirmando o meu deleite em ler CCB. Considero-o exímio na novela passional e na sátira social do Romantismo português.