29 dezembro, 2021

𝑼𝒎𝒂 𝑽𝒆𝒍𝒉𝒂 𝒆 𝒐 𝒔𝒆𝒖 𝑮𝒂𝒕𝒐 𝒆 𝒂 𝑯𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝒅𝒐𝒊𝒔 𝒄ã𝒆𝒔, de Doris Lessing

 



Autores: Doris Lessing
Título: Uma Velha e o seu Gato e a História de dois cães
Tradutora: Ana Falcão Bastos
N.º de páginas: 94
Editora: Bertrand Editora
Edição: Abril 2016
Classificação: Contos
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Dois pequenos contos devastadores e que muito significam. Doris Lessing escreve o que lhe vai na alma, livremente, sem se preocupar com o politicamente correcto. O tema predominante nos dois contos é a liberdade. A liberdade dos que rejeitam uma sociedade preconceituosa, uma sociedade normalizadora.
Num estilo directo, cru, por vezes cruel, mas também comovente, brota, no primeiro conto, uma crítica manifesta ao abandono dos idosos pelos filhos, facilmente esquecidos ou despachados para um lar e, no segundo, uma crítica mais subtil às opções, preferências e formas de ser e de viver.
Na conquista pela liberdade quer de Hetty, quer do gato Tibby, quer ainda dos dois cães, Jock e Bill, há lutas tremendas de subsistência, mas há também manifestações de afecto e de gratidão dos animais para com os seus donos. Nas duas narrativas registam-se momentos de extrema dureza, crueldade até, mas também de ternura. Hetty e Tibby tornam-se ambos sem-abrigo e vadios, mas livres. Hetty recusou todas as démarches do estado para a fecharem num lar, preferiu viver na errância, na companhia do seu gato leal que a aquecia do frio e caçava pombos para se alimentarem.
Se na primeira narrativa a opção de viver em liberdade é clara, na segunda, ainda o é mais. Dois jovens irmãos, a mando dos pais, tentam treinar e domesticar dois cães, mas não conseguem. E a crítica que subjaz neste conto é que devemos aceitar as pessoas, no caso, os animais sem alterar as suas características, a sua forma de ser. A liberdade é mais importante do que qualquer redução à domesticidade.
“O meu pai queixava-se de que os cães não obedeciam a ninguém. Exigia treino sério e sem tréguas. O meu irmão e eu ficávamos a ver a nossa mãe a afagar Jock e a ralhar com Bill e estabelecemos um acordo tácito. Partíamos para o Grande Vlei, mas, uma vez lá chegados, andávamos de um charco para o outro, enquanto os cães faziam o que lhes apetecia e descobriam as alegrias da liberdade.” (p. 73)

Ora, nos dois contos o final não é nada simpático, é triste e devastador, Dir-se-á que é o preço da liberdade! Mas será que tem de ser sempre assim? Fica a pergunta em jeito de reflexão.



27 dezembro, 2021

𝑨𝒔 𝑴𝒂𝒊𝒔 𝑩𝒆𝒍𝒂𝒔 𝑯𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂𝒔 𝒅𝒆 𝑵𝒂𝒕𝒂𝒍, de vários autores

 


Autores: Vários
Título: As mais Belas Histórias de Natal
N.º de páginas: 180
Editora: Vega
Edição (2.ª): 2007
Classificação: Contos
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Uma magnífica recolha de doze contos de Natal escritos por autores conceituados como Aquilino Ribeiro, Charles Dickens, Tolstoi, François Mauriac e Selma Lagerlöf, entre outros.
Todos os contos apresentam ensinamentos e incentivam à bondade à generosidade, à entre-ajuda e à esperança, sem todavia esquecer a crítica à avareza, à inveja, à desunião, ao poder.
Gosto de (re)ler estas histórias, transportam-me para a minha infância, quando ia com os meus amigos apanhar o musgo e colher o azevinho para o presépio, quando esperava pelas prendinhas que o Menino Jesus (ainda acreditava) deixava nos sapatinhos colocados junto à lareira e que só abríamos no dia 25. Não havia Pai Natal, não havia consumismo desenfreado.
Sendo propícia esta época para olharmos para os outros com mais atenção e carinho, não devemos, contudo, descurar estes cuidados ao longo do ano, sobretudo para com as pessoas que nos são mais próximas, já que afinal, são estes os valores que nos são transmitidos pelas personagens que habitam estas e outras histórias natalícias. E se aplicarmos o aforismo “Natal é quando o homem quiser” que seja, então, ao longo do ano e não somente nestes dias que se transformam em euforia.

26 dezembro, 2021

𝑪𝒐𝒎𝒐 𝒂 Á𝒈𝒖𝒂 𝒒𝒖𝒆 𝑪𝒐𝒓𝒓𝒆, de Marguerite Yourcenar



Autora: Marguerite Yourcenar 
Título: Como a Água que Corre 
N.º de páginas: 188
Editora: Abril/ControlJornal
Edição:  Maio 2000
Classificação: Novelas
N.º de Registo: (1104)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Como a Água que Corre contém três novelas, escritas em períodos diferentes e um posfácio para cada uma delas. Nestes, a autora fornece informações importantes que elucidam o leitor sobre determinados aspectos que motivaram a sua escrita e as subsequentes alterações. Por exemplo, ficámos sabedores de que “Anna, Soror...”, a primeira novela” é uma obra de juventude e que inicialmente foi escrita para ser um romance, um longo romance. Todas as novelas foram várias vezes alteradas e reeditadas. “Outros pormenores houve, bem entendido, que foram omitidos, acrescentados ou mudados.” (p. 185)
A autora esclarece que o título atribuído a esta recolha representa a imagem de “um rio, ou por vezes da torrente, ora lamacenta ora límpida, que é a vida.” (p. 165) Eu acrescentaria que o título representa também a mestria da sua escrita, do seu estilo. As palavras fluem naturalmente ao ritmo do rio, do tempo, da vida e o leitor fica rendido à beleza da narrativa.

Gostei sobretudo da segunda novela, “Um Homem Obscuro”, que nos apresenta as aventuras de Natanael, um rapaz simples, de índole transparente, tal como a água que corre, que se dá bem com qualquer pessoa apesar da existência de diferenças: “Apesar da diferença de cor, entendera-se bem com o mestiço; apesar da religião, que ela aliás não praticava, fora Sarai uma mulher como outra qualquer, também havia ladras baptizadas, (…)” (p. 132) Natanael é daqueles que pensam, que questionam, e aproveitam as ocasiões boas que a vida lhes apresenta, mantendo sempre a sua independência.

A terceira novela, mais curta, “Uma Bela Manhã” dá continuidade à segunda, e narra uma parte da vida de Lázaro, filho de Natanael e da prostituta Sarai. O pequeno Lázaro, que nunca conheceu seu pai, “não tinha limites, e bem podia sorrir amigavelmente ao seu próprio reflexo…”(p. 155) partiu com uma companhia de teatro, livre, para realizar um sonho “nessa sensação de ser tantas pessoas ao mesmo tempo, a viverem tantas aventuras” (p. 155) Nisso, sem o saber, era igual ao pai.

Para concluir, e citando de novo a autora que no segundo posfácio refere, “Toda a obra literária é assim feita de um misto de visão, lembrança e acto, de noções e de informações recebidas, no decorrer de uma vida, através da palavra ou dos livros, e de resquícios da nossa própria existência.” (p. 180). Só posso acrescentar que esta recolha de Marguerite Yourcenar espelha maravilhosamente a sua forma de encarar a obra literária. Nela, tudo flui como a água que corre e a obra-prima emerge e transporta o leitor na sua corrente ora calma ora impetuosa.


25 dezembro, 2021

𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆 𝒅𝒆 𝑵𝒂𝒕𝒂𝒍, de Sophia de Mello Breyner Andresen


Autora: Sophia de Mello Breyner Andresen
Título: A Noite de Natal
Ilustrador: Jorge Nesbitt
N.º de páginas: 34
Editora: Porto Editora
Edição 5.ª: Novembro 2013
Classificação: Conto
N.º de Registo: (3332)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A Noite de Natal é um dos livros para (re)ler sempre com prazer. É um conto que nos transporta para o verdadeiro significado do Natal, isto é, para os valores da amizade, do amor e da partilha. Gestos simples que por vezes, tão rapidamente, esquecemos.
Gosto especialmente de Sophia e os seus contos legam-nos um mundo encantado e maravilhoso.


 

Natal, Fernando Pessoa


                                           



«Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só, e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!»


Fernando Pessoa

21 dezembro, 2021

𝑳𝒆 𝑷𝒂𝒚𝒔 𝒅𝒆𝒔 𝑨𝒖𝒕𝒓𝒆𝒔, Leïla Slimani



Autora: Leïla Slimani
Título: Le Pays des Autres
N.º de páginas: 407
Editora: Gallimard (Folio)
Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3299)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Le Pays des Autres é o primeiro livro de uma prevista trilogia, sustentada numa história familiar (a da própria autora) que tem como pano de fundo a independência de Marrocos, de 1944 a 1955.

O livro narra a história de Mathilde, uma jovem francesa, oriunda da Alsácia, que se apaixona, em 1944, pelo oficial Amine Belhaj, um marroquino que combatia no exército colonial francês na Segunda Guerra Mundial. No final da guerra, o jovem casal vai viver para Meknes, em Marrocos, uma colónia francesa.
Mathilde cedo percebe que este não é o seu mundo. Sente-se sufocada pela aridez da terra e do clima, pelas dificuldades em construir e manter uma harmonia familiar, em aceitar os usos e costumes religiosos e culturais, sobretudo em relação à mulher. Vista como inimiga pelos nativos porque é francesa e como uma selvagem pelos colonos franceses porque casou com um marroquino, é assim, rejeitada e criticada por todos. É, por isso, natural que se instale no seio familiar um confronto constante e doloroso, onde os sonhos são constantemente adiados. Este confronto, já por si, difícil de gerir, vai intensificar-se com a situação política, nas lutas de libertação que levarão o país à independência do protetorado, provocando conflitos entre marroquinos e franceses. Mathilde e Amine vão viver intensamente este conflito, vão tentar sobreviver à constante e ambígua luta interior entre amor e rejeição, submissão e emancipação, respeito pela identidade do outro e fidelidade às tradições culturais e religiosas.

O enredo deste livro entranha-se no leitor e permanece muito para além da última página. A escrita de Slimani, sem deixar de questionar e de narrar a verdade, revela uma grande humanidade e subtileza na caracterização das personagens, na descrição dos actos de violência, na submissão da mulher ao poder do homem. O título representa os dois lados desta ambiguidade porque representa o país que não é certamente o de Mathilde, mas também o país que não é dos marroquinos porque se encontra ocupado pelos franceses.



16 dezembro, 2021

𝑨 𝑫𝒆𝒍𝒊𝒄𝒂𝒅𝒆𝒛𝒂, David Foenkinos


Autor: David Foenkinos
Tradutora: Catarina Almeida
Título: A Delicadeza
N.º de páginas: 227
Editora: Presença
Edição: Agosto 2011
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3248)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio deste autor e fiquei seduzida. Compreendo agora por que foi selecionado para tantos prémios da rentrée literária em França.
É um livro desconcertante, divertido e delicado. Sim, é um livro que trata dos assuntos sentimentais, sejam eles dolorosos ou amorosos com uma tremenda delicadeza e naturalidade.
O enredo revela-nos uma história de amor, simples mas nada convencional. E é aqui que reside o encanto deste romance. Nathalie, a protagonista vive sete anos de um amor perfeito até que uma tragédia rompe essa felicidade. Entra em depressão profunda, perdida num luto que parece não ter fim, até que o destino lhe apresenta uma inusitada oportunidade,
É um beijo dado num momento de devaneio, sem sentido e completamente inesperado que vai espoletar uma improvável relação. Contra todas as expectativas é com Markus que Nathalie irá ultrapassar a dor e dar um novo rumo à sua vida. Markus é um homem pouco atractivo, tímido, com um fraco historial junto do sexo oposto, mas com um enorme sentido de humor e delicado no trato com os colegas e, naturalmente, com Nathalie.
Um beijo vai provocar um turbilhão de sentimentos desconexos nas duas personagens e tudo vai mudar.
Gostei muito da forma como Foenkinos nos conta a história, como nos descreve com exactidão, simplicidade e delicadeza o que cada personagem sente e pensa.
“Nathalie pensara que esse beijo fora ditado pelo acaso de uma pulsão. Talvez não. Talvez o acaso não existisse: Talvez tudo aquilo não tivesse sido senão o progresso inconsciente de uma intuição. O pressentimento de que estaria bem com aquele homem. (…)
- Posso beijá-la? – perguntou ele.
- Não sei… parece-me que estou a chocar uma constipação.
-Não tem importância. Estou disposto a ficar doente consigo. Posso beijá-la?
Nathalie gostara tanto que ele lhe tivesse perguntado. Era uma forma de delicadeza. Cada momento passado com Markus desviava-se da normalidade.” (p. 150)

A estrutura sai um pouco fora da caixa, na medida em que após cada capítulo surge um pequeno texto, uma entrada de dicionário, uma receita, um pensamento, enfim um complemento, sem nada alterar ou acrescentar ao enredo, mas que atribui certo encanto. Eis um exemplo:
“Pensamento de um filósofo polaco
Há pessoas formidáveis
que conhecemos no momento errado.
E há pessoas que são formidáveis
porque as conhecemos no momento certo.” (p. 94)

É um livro diferente para ler e para oferecer. É um livro que enaltece pequenos gestos, palavras sinceras, sentidas e que mostra a necessidade de aceitar quem verdadeiramente nos estima e nos respeita. É um livro de descoberta do outro e de superação da dor.


13 dezembro, 2021

𝑶𝒓𝒈𝒖𝒍𝒉𝒐 𝒆 𝑷𝒓𝒆𝒄𝒐𝒏𝒄𝒆𝒊𝒕𝒐, de Jane Austen

 

Autor: Jane Austen
Tradutora: Ângela Miranda Cardoso
Título: Orgulho e Preconceito
N.º de páginas: 396
Editora: Presença
Edição: Fevereiro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Neste clássico de literatura inglesa, a autora retrata a sociedade da época, início do século XIX, de forma brilhante. Pela caracterização das diversas personagens percebemos o quanto as relações humanas são interesseiras e promíscuas, muitas vezes, encobertas pelo estatuto social. Fica desde logo claríssima a ideia de que para que um casamento se realize (e penso que esta é um tema predominante na obra) não importa o amor, mas sim o valor do dote. Os valores morais como a hipocrisia, os ciúmes, a ambição e a ignorância tendem a prevalecer sobre a inteligência, a honestidade, a sinceridade e o amor verdadeiro.
Ao longo da narrativa, fica assim patente a importância dada ao dinheiro bem como o orgulho e o preconceito da maioria das personagens em relação à origem das famílias.
É na descrição de personagens psicológica e emocionalmente fortes que reside a beleza da escrita de Jane Austen. Num tom sarcástico a autora desafia os padrões da época e é em Elizabeth e em Mr Darcy, personagens modeladas, isto é, que evoluem ao longo da narrativa, que se centram esses desafios. Elizabeth revela uma personalidade forte e avançada para o seu tempo. Ela carrega em si a alteração necessária às convenções sociais e culturais da época. Não receia contrariar o papel destinado à mulher, não se subjuga às normas, não aceita o casamento por conveniência, critica abertamente as atitudes, e as decisões dos seus familiares e, mais importante, acaba por assumir os seus próprios erros e de os corrigir.
O mesmo se passou com Mr. Darcy que, de início, justifica a sua arrogância devido à riqueza e privilégio social que detém, mas que por amor, se modifica e decide casar uma uma mulher humilde, de estatuto inferior, contrariando o estabelecido na família e, por consequência, na época.
Assim, entre os dois protagonistas, a relação inicial pautada pela indiferença, arrogância e preconceito acaba por evoluir e transformar-se numa relação amorosa, verdadeira e de entendimento, tendo prevalecido a inteligência e a vontade própria de cada um.
Podemos afirmar que Jane Austen conseguiu demonstrar, protagonizando momentos divertidos e caricatos, que é possível alterar as mentalidades e corrigir comportamentos. Penso que o “Ridendo castigat mores”, de Gil Vicente se aplica aqui na perfeição.


12 dezembro, 2021

𝑺𝒐𝒃𝒓𝒆 𝒂 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒖𝒓𝒂, de Marcel Proust


Autor: Marcel Proust
Tradutor: Miguel Serras Pereira
Título: Sobre a Leitura
N.º de páginas: 52
Editora: Relógio d'Água
Edição: Novembro 2020
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3309)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Este pequeno ensaio sobre a leitura foi escrito pela primeira vez como prefácio ao livro “O Sésamo e os Lírios (Sésame et ses Lys), de John Ruskin, tendo no entanto, mais tarde, sido editado de forma independente e é hoje considerado um clássico sobre o prazer de ler.
Proust inicia o seu texto demonstrando que a leitura lega ao leitor imagens “dos lugares e dos dias” em que são feitas. Ele descreve episódios da sua infância sobre os seus hábitos de leitura que ficaram amplamente marcados na sua memória. Ele apreciava o silêncio e o isolamento para usufruir do prazer que a leitura lhe proporcionava.
O autor considera o acto de ler como uma terapia, “uma espécie de disciplina curativa…”
“ Enquanto a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas nos abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas nas quais não teríamos sabido penetrar, é salutar o seu papel na nossa vida. (…) como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros, como um mel completamente preparado pelos outros e que só temos de nos dar ao trabalho de recolher nas prateleiras das estantes e de saborear em seguida passivamente num perfeito repouso de corpo e de espírito.” (p. 30)

Proust prefere a amizade que obtém dos livros em detrimento da amizade humana:
“Sem dúvida, a amizade, a amizade que tem que ver com os indivíduos, é uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de se dirigir a um morto, a um ausente, lhe alguma coisa de desinteressado, de quase tocante. (…) Com os livros, não há amabilidade. Esses amigos, se passamos com eles o serão, é porque temos verdadeiramente vontade de o fazer. A eles, pelo menos, muitas vezes só contrariados os deixamos. ” (p.36)

Em suma, a leitura, como acto solitário e silencioso, permite ao leitor intuir, decifrar o pensamento do outro, educar o seu espírito, “sair de si-mesmo, viajar” e adquirir a capacidade de pensar e de criar.
“Ora, esse impulso que o espírito preguiçoso não pode encontrar em si mesmo, e que tem de lhe chegar de outrem, é claro que terá de recebê-lo no interior da solidão fora da qual, como vimos, não pode produzir-se essa atividade criadora que se trata precisamente de nele ressuscitar. Da pura solidão o espírito preguiçoso nada poderia tirar, uma vez que é incapaz de pôr ele mesmo em movimento a sua atividade criadora. (…) O que é necessário pois, é uma intervenção que, vinda embora de um outro, se produza no fundo de nós mesmos; é sobretudo o impulso de um outro espírito, mas recebido no interior da solidão. (…) A única disciplina que poderá exercer uma influência favorável sobre tais espíritos é, portanto, a leitura…mas, aqui, ainda, a leitura não age senão à maneira de uma incitação que em nada pode substituir-se à nossa atividade pessoal…” (p. 29)

É um pequeno livro maravilhoso.

07 dezembro, 2021

𝑴𝒆𝒔 𝑨𝒑𝒑𝒓𝒆𝒏𝒕𝒊𝒔𝒔𝒂𝒈𝒆𝒔, de Colette

 

Autor: Colette
Título: Mes Apprentissages
N.º de páginas: 213
Editora: Ferenczi
Edição: 1936
Classificação: Memórias
N.º de Registo: (67)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em 1909, aquando do seu divórcio, Colette referiu que "Só se morre do primeiro homem". Neste livro de memórias escrito em 1936, percebemos que passados vinte e cinco anos dessa tomada de decisão, a ferida ainda não cicatrizou. Num testemunho directo, porém seleccionado (apenas nos revela o que bem entende ou se lembra), ela regressa aos seus primeiros anos de jovem esposa, relata alguns factos da sua família, sobretudo da mãe que sempre a apoiou e a quem ela escondeu o seu fracassado casamento, evoca personalidades do mundo jornalístico e literário com o qual conviveu desde muito cedo, e centra-se, acima de tudo, na acusação contra o seu marido Willy.

Colette descreve a sua vida de casada com um homem mais velho e infiel, que a trancava no quarto para a obrigar a escrever a famosa obra Claudine (4 volumes) que ele editou como sendo de sua autoria. Era ele que tomava todas as decisões financeiras e domésticas, e ela sujeitava-se a tudo e obedecia.

Colette não consegue explicar a sua passividade e obediência ao marido. Justifica-a pela personalidade dominante deste, pelo medo de ficar sozinha e de confessar o seu fracasso. Foram treze anos de submissão, de humilhação, de incertezas e de desamor numa cidade que ela odiava, apesar dos encontros intelectuais que mantinha graças aos conhecimentos do marido, acabando por manter uma vida mundana, já que o casal frequentava os melhores salões parisienses. A hipocrisia e os falsos valores da alta sociedade reinavam na época.
O facto de ele a ter obrigado a escrever, lesando-a sobre os direitos de autor, acabou por lhe proporcionar, mais tarde, uma carreira literária e permitiu-lhe fomentar amizades fiéis que permaneceram ao longo da sua vida e a ajudaram a sair do logro.

Numa escrita inteligente e sincera, a autora acaba por ajustar contas com o marido, revelando a todos o seu verdadeiro carácter, mas também assume a sua própria fragilidade e, zangada, confessa que foi ele que acabou por deixá-la, antes que ela o fizesse. No final, e sem rancor, refere que “aprendeu a viver”.      



03 dezembro, 2021

𝑨 𝒗𝒊𝒂𝒈𝒆𝒎 𝒅𝒐 𝑬𝒍𝒆𝒇𝒂𝒏𝒕𝒆, de José Saramago

 

Autor: José Saramago
Título: A Viagem do Elefante
N.º de páginas: 258
Editora: Caminho
Edição: Outubro 2008
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2481)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É uma releitura e como todas as releituras que faço, fico sempre mais satisfeita. A minha disponibilidade para a narrativa, visto que já conheço a trama, é mais centrada nos pormenores quer da escrita quer do carácter das personagens quer ainda das descrições.

O livro narra a viagem de um elefante, Salomão, vindo da Índia, mas que estava há dois anos em Lisboa e que foi oferecido pelo rei D. João III ao arquiduque da Áustria Maximiliano II (seu primo). É, portanto, essa viagem de Lisboa a Viena que o elefante e o seu cornaca, Subhro, terão de fazer acompanhados por um séquito bem específico e que garantirá que tudo corra como planeado.
Segundo o próprio autor, este livro é uma metáfora da vida humana. O facto de Saramago ter estado doente aquando da sua escrita (que esteve em risco de ser concluído) pode ter tido alguma influência na descrição da “viagem” do elefante que afinal acaba por ter o mesmo fim que a do ser humano, isto é, a morte, porque todos morremos, de forma diferente, é um facto, mas no fundo a passagem pela vida é isso mesmo e “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (epígrafe do livro).
A escrita é poética, fácil, prazerosa, repleta de considerações bem-humoradas sobre os comportamentos humanos e a sociedade da época (século XVI). Apesar de ser um livro com uma temática mais leve, a ironia e o sentido crítico de Saramago mantêm-se. A longa viagem mais não é do que a sua visão atenta sobre o homem, os representantes da igreja, a burocracia da administração, do Estado, a corrupção, a ignorância mas também a simplicidade e a sabedoria do povo.
“… uma boa coisa que a ignorância tem é defender-nos dos falsos saberes” (p.121) e “ … não há dúvida de que as melhores lições nos vêm sempre das pessoas simples.” (p. 144)
A genialidade da escrita e o sarcasmo sempre presentes são razões muito válidas para continuar a ler Saramago. Um dos meus autores preferidos.



27 novembro, 2021

𝑨 𝑺𝒆𝒄𝒓𝒆𝒕𝒂 𝑽𝒊𝒅𝒂 𝒅𝒂𝒔 𝑰𝒎𝒂𝒈𝒆𝒏𝒔, de Al Berto

 

Autor: Al Berto
Título: A Secreta Vida das Imagens
N.º de páginas: 33
Editora: Assírio & Alvim
Edição: Outubro 2000 (in O Medo)
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (1396)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



A Secreta Vida das Imagens é uma colectânea de poemas inspirados num conjunto de obras de artistas clássicos e contemporâneos, nacionais e estrangeiros que o autor amava e que de certa forma o desassossegavam na medida em que contribuíram para o seu “modo de viver e de ver o mundo.”

Dividido em três partes, o livro apresenta os poemas por ordem cronológica dos autores das obras de arte e cada poema é acompanhado por uma imagem representativa de uma pintura, escultura, instalação, fotografia dos artistas plásticos em causa.

A primeira parte é constituída, apenas, por três poemas que aludem a três pintores (Giotto, Fra Angelico e Zurbarán) que viveram entre os séculos XIII e XVII (renascimento – barroco)

A segunda parte contém nove poemas e nove reproduções de obras, sendo oito pinturas e uma fotografia. São artistas (de Cézanne a Warhol) do século XIX e XX e que integram os movimentos do pós-impressionismo e modernismo (nos seus variadíssimos -ismos).

A terceira parte inclui catorze poemas e imagens de representações artísticas: oito pinturas, três esculturas, duas instalações e uma fotografia. Este conjunto integra exclusivamente trabalhos de autores portugueses nascidos a partir de 1914, iniciando com António Dacosta e terminando com Rui Chafes.

A interacção entre a escrita – a literatura - e as restantes artes enriquece e intensifica os significados entre a vida vivida do poeta escritor e a obra e a vida do artista em destaque no poema. A relação entre o EU e o Outro; Eu, poeta/Outro, artista, torna-se mais complexa e de difícil interpretação na medida em que nem sempre se descortina quem é quem. Mas é esta mescla de vivido (autor) e observado (artistas) em que todos verbalizam a sua experiência criadora que tornam estes textos singulares e pluralistas.

Também nesta colectânea, Al Berto assumiu a sua vivência, a sua personalidade e entrelaça-as com o Eu do poema, isto é, com a biografia do artista. E ao propor uma determinada cronologia e uma selecção dos artistas e das suas obras, Al Berto acaba por emitir uma opinião própria e oferecer ao leitor a sua preferência artística.

É sempre com um prazer renovado e com novas descobertas que releio os livros de Al Berto.

Falso retrato de Andy Warhol

não penso
transcrevo conversas telefónicas ou falo
com a noite de new York
ou não falo e gravo a voz dos outros filmo
obsessivamente a morte
ou não filmo e multiplico cadeiras eléctricas
excito-me
sou o centro do mundo dos outros e
não existo
ou é a vida que me atravessa o sexo
e finjo a morte ou cintilo
como o diamante


𝑨 𝑪𝒂𝒅𝒆𝒍𝒂, Pilar Quintana

 



Autor: Pilar Quintana
Título: A Cadela
N.º de páginas: 125
Editora: D, Quixote
Edição: Fevereiro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3279)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Pequeno livro com uma extraordinária mensagem! Brilhante! História aparentemente simples tal é a economia da escrita. Puro engano! A narrativa escorreita, firme, sem artífices vai manipulando o leitor, envolvendo-o numa trama avassaladora e simultaneamente encantadora.
Adorei a forma como a autora nos descreve Damaris, a mulher que adoptou uma cadela. É uma mulher de garra, que luta para vencer as dificuldades da vida, os traumas, os desgostos, a solidão, o (des)amor, que tolera o desinteresse do marido, mas não suporta a traição da cadela.
Não é uma história fácil, quando pensamos que já ultrapassámos uma situação, que já tudo acalmou, a narradora volta à carga com mais intensidade, mais dureza. Tudo é construído de momentos de acalmia e tempestuosos quer nas atitudes de Damaris quer na natureza. Tão depressa cai “uma chuvada tremenda, com raios e trovões” como “ (…) seria um daqueles raros de céu azul intenso e calor abrasador.” Com mestria a autora vai aliando o carácter humano com o que tem de bom e de perverso à beleza e violência da natureza. E tal como numa tempestade, a narrativa vai-se adensando e dando lugar a um total desconcerto.

Recomendo!



22 novembro, 2021

𝑼𝒎 𝑯𝒐𝒎𝒆𝒎 𝑷𝒂𝒓𝒂𝒅𝒐 𝒏𝒐 𝑰𝒏𝒗𝒆𝒓𝒏𝒐, de Baptista-Bastos



Autor: Baptista-Bastos
Título: Um Homem Parado no Inverno
N.º de páginas: 167
Editora: Círculo de Leitores
Edição: Agosto 1995
Classificação: Romance
N.º de Registo: (558)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Numa escrita fragmentária, Baptista-Bastos guia-nos numa introspeção profunda sobre o Portugal de então e numa viagem ao passado em busca de redenção. Manuel, o protagonista, viúvo, decidiu ir até à aldeia, onde deseja permanecer vários meses, à procura de “respostas vitais”, de reviver momentos esquecidos, momentos de amor, momentos dolorosos. Sozinho, refugia-se na bebida e nas recordações, traído pelas memórias serve-se da imaginação para criar equívocos, sonhos, ilusões.
“As sombras e as opacidades da memória adensam-se quando procura estabelecer relações entre os episódios de que fora protagonista e os desafectos que os marcaram. Porém, tinha a consciência subtil da total vacuidade desse exercício estafante: a memória, como defesa, desmemoria-se.” (pp.29 e 30)

O narrador vai entrelaçando episódios do presente com relatos do passado, episódios pessoais com relatos e descrições de um Portugal decadente, pequenino, ignorante e medíocre. Há uma similitude entre este país em ruina e ele próprio, um homem só, perdido, desintegrado no tempo e que se desconhece.
“ (…) vivia na contradição de desejar esquecer e no desejo de conservar e de preservar tudo: mágoas, desgostos, deslealdades: a fuligem da vida, persistia em não apagar a consciência infeliz; essas ofensas, reavivadas no tempo em imagens, sons e palavras, constituíam o seu pesadelo e a sua desordem.” (p. 102)

Recomendo muito este livro quer pela beleza da escrita quer pela forma como retrata a passagem do tempo, a solidão de um homem, o confronto consigo próprio e, simultaneamente, a decrepitude de um país e a intolerância pela condição humana.


16 novembro, 2021

𝑼𝒎 𝑭𝒊𝒐 𝒅𝒆 𝑺𝒂𝒏𝒈𝒖𝒆, de Ann Yeti


Autor: Ann Yeti
Título: Um Fio de Sangue
N.º de páginas: 112
Editora: Emporium
 Edição: Dezembro 2018
Classificação: Novela
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐

Este é o tipo de livro ao qual se aplica o provérbio “Quem vê caras, não vê corações”. Pois é, eu não o compraria só pela capa e pelo título. Porém, e é com agrado que revelo que contém uma história de sedução, de entrega e de amor, que poderia acabar em final feliz, não fosse a estupidez humana que tende a complicar o que é belo e simples. Mas já lá vamos.
Perguntar-me-ão, então, como tive acesso ao livro se era uma compra improvável? Pois, recebi-o num pacote muito simpático e com a seguinte mensagem: “Doar livros pode ser doloroso… quando nos cortamos no papel ao fazer o embrulho! Por isso, não se admire se encontrar um fio de sangue por aí…”
Claro que fiquei, de imediato seduzida (já percebi que a Ann sabe usar as palavras para seduzir…) e decidi lê-lo o quanto antes. E em boa hora o fiz!

O livro é pequeno e lê-se muito bem. Como já referi no início, temos um enredo empolgante que agarra o leitor que se mantém atento aos detalhes e curioso em desvendar o desfecho da relação entre a Joana e o Tomás.
A escrita é cuidada e intensa, clara e directa com laivos de subtileza, quando necessário, que muito apreciei e a composição gráfica é interessante. Um fio de sangue presente em todas as páginas, metáfora da vida, da dor, do sofrimento, indicia algo e arrefece-nos o ímpeto e retrai-nos perante a felicidade intensa vivida pelas personagens.

Há, contudo, um senão na minha opinião, que está relacionado com a estrutura, isto é, o facto de os capítulos terem títulos antecipa alguma informação sobretudo nos capítulos da Joana e do Tomás. Eu, pessoalmente, gosto de maior complexidade, acho que o leitor deve descobrir quem é quem, o que faz e o que pensa sem que essa informação esteja segmentada. Mas, esta é uma mera opinião, vale o que vale. Outros leitores apreciarão, certamente, esta apresentação.

Recomendo a leitura, gostei da Joana, jovem inteligente, moderna, sedutora, desafiadora e corajosa.
Quanto à Ann Yeti tem um futuro promissor na escrita. Basta escrever e seduzir o leitor para novos caminhos, novas sensações…   


13 novembro, 2021

𝑨 𝑴ã𝒆, de Pearl S. Buck


Autor: Pearl S. Buck
Tradutor: Isabel Risques
Título: A Mãe
N.º de páginas: 255
Editora: D. Quixote
2.ª Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3285)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A Mãe, de Pearl S. Buck transporta-nos para a China rural e pobre, onde os habitantes da aldeia vivem da terra arrendada a um proprietário a quem entregam a maior parte dos bens que produzem.
Como facilmente se depreende do título, a Mãe, personagem-tipo, é a protagonista da narrativa. Casada, com três filhos, dois rapazes e uma rapariga. Cuida exemplarmente da sua família e da sogra que também vive lá em casa. Toma conta da casa e acompanha o marido na lavoura das terras e na colheita dos produtos. Dá-se bem com a vizinhança e é respeitada por todos. É feliz, ama a sua família apesar da vida miserável e de trabalho que leva.
Até que um dia tudo muda, e esta mãe vai passar por grandes dificuldades. Para não ser desconsiderada pelos outros, e manter a sua honra, forja artimanhas para dar entender que o marido não a abandonou, mas que partiu à procura de trabalho. A partir de então, a Mãe tudo faz para manter a família unida e dedica-se ao trabalho árduo do campo para sobreviverem. Com os filhos pequenos, um ainda de peito, e uma sogra incapacitada, é sobre ela que tudo recai, é ela que tudo gere sem um queixume, sem uma renúncia. Com dignidade e muita coragem vai ultrapassando algumas das dificuldades, mas a sua vida vai-se complicando e vai passar por várias provações.
Neste romance, percebemos o papel secundário da mulher na China sendo por isso o filho homem o mais desejado.
“Há muitas raparigas naquela aldeia, porque ali nunca as matam, como fazem em algumas cidades quando nascem raparigas.” (p. 169)
É a ela que cabe a educação dos filhos, a manutenção da casa, da roupa, o cuidar dos sogros (no casamento é a mulher que sai de casa para ir viver com a família do marido) e, ainda, acompanhar o marido no trabalho da terra.

Gostei da escrita simples e direta, subtil, por vezes, e esclarecedora quanto às tradições do povo chinês.
Apesar de a personagem ter uma vida miserável, de sacrifício, de trabalho, fustigada pela dor, pela injustiça, pela maldição, é uma história comovente porque nela predomina o amor de uma mãe e no final, há um grito de esperança.




10 novembro, 2021

𝑵𝒆𝒎 𝒎𝒊𝒏𝒉𝒂 𝒄𝒂𝒔𝒂 é 𝒋á 𝒎𝒊𝒏𝒉𝒂 𝒄𝒂𝒔𝒂, de Eva Guimarães



Autor: Eva Guimarães
Título: Nem minha casa é já minha casa
N.º de páginas: 142
Editora: Narrativa
Edição: Abril 2018
Classificação: Testemunhos
N.º de Registo: (3201)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Mais um testemunho de violência doméstica. Mais um testemunho de humilhação. Mas também e sobretudo um testemunho de superação.
Nada nos surpreende, neste relato. Infelizmente, é cada vez mais recorrente, os sonhos tornarem-se pesadelos e o amor transformar-se em ódio e em violência.
Ficamos chocados, sim, chocados com a violência física e sobretudo psicológica cometida pela “pessoa amada”, ficamos indignados perante a inoperância da justiça (portuguesa e espanhola) e de todos aqueles que deveriam proteger a vítima. Sentimos a dor, a solidão, a humilhação.
“Ao denunciar o seu agressor sem primeiro se pôr a salvo, tinha feito prova de uma ingenuidade suicida.
Tinha-se lançado aos lobos.
Era descobrir o caminho terrorífico que há-de percorrer a vítima que não conta com recursos, a vítima pobre.
O longo encadeamento do sofrimento, indiferença, humilhação, desídia.” (p. 58)

Ela (não é nunca referido o nome da personagem) que veio de Espanha para o Alentejo para viver a sua história de amor, vai ter de fugir para o seu país natal e tentar “recuperar a sua dignidade” e mais tarde a sua liberdade.
“Mas não era o Alentejo que Ela abandonava, os seus mares de oliveiras e de chaparros, os seus verões escaldando as searas louras, os invernos cheirando à lenha queimada nas lareiras. Isso, Ela levá-lo-ia sempre no seu coração.
O que Ela devia deixar para trás, aquilo de que fugia, era daquele casamento nefasto, daquele marido depravado e agressor.” (pp. 14 e 15)

Temos textos avulsos, sem ordem cronológica, muito bem escritos que revelam “um gesto de coragem, determinação e resiliência perante uma sucessão de factos tremendamente violentos.” (p. 141) e que pretendem servir de inspiração a outras mulheres que vivam uma situação semelhante.


07 novembro, 2021

𝑨𝒔𝒕é𝒓𝒊𝒙 𝒆𝒕 𝒍𝒆 𝑮𝒓𝒊𝒇𝒇𝒐𝒏, de Jean-Yves Ferri et Didier Conrad

 



Autor: Jean-Yves Ferri
Ilustrador: Didier Conrad
Título: Astérix et le Griffon
N.º de páginas: 48
Editora: Les Éditions Albert René
Edição: Outubro 2021
Classificação: Banda Desenhada
N.º de Registo: (----)


OPINIÃO ⭐⭐⭐



Astérix et le Griffon (em francês) é o 39.º álbum desta dupla imparável. Esta aventura vai levar Astérix, Obélix, Idéfix e o druida Panoramix ao mundo dos Samartas, tribo comandada por mulheres enquanto os homens ficam em casa a cuidar dos filhos. Esta é uma das várias novidades inseridas neste álbum. Outras há a destacar como a poção mágica que desta vez congela, o herói que acaba por ser Idéfix e não os habituais Obélix e Astérix, os jogos de palavras que nos remetem para a actualidade virtual e pandémica. Algumas destas referências são muito subtis.
Esta talvez tenha sido a alteração mais divertida. Dei por mim à procura das palavras escondidas: “Kalachnikova” “Trodéxès de collagène!”, “scythes attaqués”, “Critiques sur les FORUMS”,”T’as raison FAKENIUS”, “On respecte les distances”, entre muitas outras.
Diverti-me, mas não me entusiasmei. Falta o toque satírico e paródico tão característico da dupla genial (na minha opinião) da nona arte. Faltam as lutas dos irredutíveis gauleses com os romanos. Faltam os javalis. Falta a alegria do povo gaulês.

É evidente que a nova dupla tenta integrar a actualidade nas novas aventuras, mas fará sentido se a essência das personagens se perder?



06 novembro, 2021

𝑼𝒎𝒂 𝑺𝒐𝒍𝒊𝒅ã𝒐 𝑫𝒆𝒎𝒂𝒔𝒊𝒂𝒅𝒐 𝑹𝒖𝒊𝒅𝒐𝒔𝒂, de Bohumil Hrabal

 


Autor: Bohumil Hrabal
Tradutora (do checo): Ludmila Dismanová
Título: Uma Solidão Demasiado Ruidosa
N.º de páginas: 143
Editora: Antígona
Edição: Setembro 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3260)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Há 35 anos que Hanta vive numa solidão partilhada com a ruidosa prensa hidráulica. Na Praga de Kafka, assolada pela guerra, acompanhamos a vida absurda deste homem que passa os dias, os anos a prensar papel e livros numa cave suja, a recolher e a ler relíquias que lhe passam pelas mãos, a beber canecas e canecas de cerveja e a dormir numa casa velha repleta de livros. Hanta, apesar do ambiente miserável onde trabalha, é um homem feliz e culto, um pensador e um contador de memórias.

Narrado na primeira pessoa, Hanta relata-nos a sua “love story”. É um homem de contrastes, é um homem que se suja de sangue dos ratos prensados, mas também das letras dos livros.
“… há trinta e cinco anos que me sujo de letras, a tal ponto, que com o passar do tempo, me pareço com uma das pelo menos três toneladas de enciclopédias que terei prensado; sou um cântaro cheio de água viva e de água morta, basta inclinar-me um pouquinho e jorram de mim ideias lindas; sou culto independentemente da minha vontade e, assim nem sei bem que ideias são minhas, saídas da minha cabeça, e quais delas li.” (p.7)

É assim que Hanta se apresenta logo no início. E ao longo deste monólogo, temos uma imensidão de referências a livros, a bons livros. Temos metáforas, imagens lindíssimas. Temos histórias vividas, sonhadas, irreais.
“ …afinal não leio, apenas debico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, como se bebericasse lentamente um cálice de licor, até a ideia se dissolver em mim como álcool, tão devagar que não só penetre no meu cérebro e no meu coração, mas pulse também nas minhas veias até às raízes dos capilares.” (p.7).
Ninguém resiste a um texto destes. É lindo. É intenso. É poético.

Durante trinta e cinco anos, Hanta é o guardião dos livros, do conhecimento, das suas memórias, das suas histórias. Numa profunda solidão, ao ritmo de dois botões, o vermelho e o verde, Hanta cumpre a sua função com devoção, não com total zelo já que muitas vezes pára para ler uma raridade que lhe cai do “céu”, do buraco do tecto.
“…o disco da prensa avançava e recuava conforme eu premia o botão verde ou o botão vermelho e, nos intervalos, eu bebia cerveja e lia a Teoria do Céu, de Immanuel Kant,…” (p. 78) Porém, no final, Hanta é surpreendido pelo progresso (“iniciava-se uma nova era, com novos homens e mulheres e novos métodos de trabalho.” p. 99) +e vai ser substituído por dois jovens, que só bebem leite, mais qualificados, mas indiferentes aos livros e ao seu conteúdo e a sua prensa por uma maior, mais moderna e mais eficaz. Hanta indigna-se e toma uma decisão que não vou desvendar.

É um livro magnífico. Um hino aos livros, à literatura

02 novembro, 2021

𝑨 𝒎𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓 𝒒𝒖𝒆 𝒄𝒐𝒓𝒓𝒆𝒖 𝒂𝒕𝒓á𝒔 𝒅𝒐 𝒗𝒆𝒏𝒕𝒐, de João Tordo

 

Autor: João Tordo
Título: A mulher que correu atrás do vento
N.º de páginas: 456
Editora: Companhia das Letras
Edição: Março 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3146)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Mulher que Correu Atrás do Vento é constituído por oito partes, algumas datadas no tempo e no espaço, numa estrutura complexa, mas que no final se encaixam como um puzzle. É um romance no feminino, sobre a vida de 4 mulheres (Beatriz, Lisbeth, Graça e Lia) e com inúmeras referências a livros, músicas, filmes, peças de teatro, pinturas, …. São histórias dentro de uma grande história. Um romance dentro de um romance. Será isto possível?
Como já é habitual no autor, a sua narrativa transborda de emoções. As suas personagens correm “atrás do vento” numa luta contra o abandono, a solidão, o medo, o remorso, a clausura interior. É um livro sobre as memórias, a redenção.
“Que aquilo que imaginamos é tão verdadeiro como a realidade, porque tem o poder de nos salvar, de redimir uma vida tantas vezes brutal, sempre efémera, desgostosamente solitária.” (p. 446)

Ao longo dos capítulos, as histórias das 4 mulheres vão-se entrelaçando e criando uma maior densidade. É este cruzamento que dificulta a leitura, por vezes, é necessário voltar atrás, reler algumas passagens, deixar o vento amainar. Mas é por isso que aprecio a escrita do autor, o ritmo, o jogo, a forma como subverte a arte de narrar, e até o final é surpreendente e esclarecedor, ou talvez não…

“As coisas começam num lugar distante no tempo e na geografia e, depois, parecem repetir-se infindavelmente, tal qual um relógio cujos ponteiros atravessam a mesma hora todos os dias. Assim é a vida humana: a repetição dos mesmos erros, dos mesmos atalhos, das mesmas esperanças.” (p. 439)



29 outubro, 2021

𝑶 𝑷𝒂𝒓𝒂í𝒔𝒐 𝒔ã𝒐 𝒐𝒔 𝒐𝒖𝒕𝒓𝒐𝒔, de Valter Hugo Mãe

 

Autor: Valter Hugo Mãe
Título: O Paraíso são os outros
N.º de páginas: 44
Editora: Porto Editora
Edição: Novembro 2014
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (2979)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Livro encantador sobre o amor e sobre as relações humanas. É pelo olhar de uma menina que vamos captando o entendimento das relações entre casais, amigos e animais. A sua inocência e naturalidade na abordagem da história transmitem-nos uma mensagem simples, mas profunda de significado.
“Os casais são criados por causa do amor. Eu estou sempre à espera de entender o que é. Sei que é algo como gostar tanto que dá vontade de grudar. Ficar agarrado , não fazer nada longe. Os casais são isso: gente muito perto.”(p. 15)

Com textos curtos e delicados e ilustrações atractivas o autor transmite às crianças uma mensagem de amor e de respeito e provoca nos adultos uma reflexão sobre a forma como cada um expressa o amor, o relacionamento com o outro.
“O amor precisa de ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução.” (p.35)

É um livro de ensinamentos. Maravilhoso! Foi difícil escolher as citações, já que todo o livro é delicioso.
“ A minha mãe explica que o amor também é namorar com cuidado.” (p.9)
“O amor é urgente. As pessoas ficam tão aflitinhas com o amor como quando querem fazer chichi.” (p.37)

23 outubro, 2021

𝑵𝒂𝒅𝒂 𝑴𝒆𝒏𝒐𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝒖𝒎 𝑴𝒊𝒍𝒂𝒈𝒓𝒆, Markus Zusak

 

Autor: Markus Zusak
Tradutor: Miguel Romeira
Título: Nada Menos que um Milagre
N.º de páginas: 491
Editora: Editorial Presença
Edição: Abril 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Terminei a leitura do livro há dois dias, mas não consegui logo escrever sobre ele. Fica-se deslumbrado perante o virtuosismo da escrita e da estrutura. Cruzando tempos (ora passado, ora presente) e histórias, o autor vai desvendado (“Por agora, só têm de saber isto.”) os encontros, os laços, as perdas, os dias felizes e conturbados da família Dunbar.

É estonteante e perturbador acompanhar as alegrias e as dores desta família. Logo no início, são-nos fornecidos indícios sobre uma morte, há a revolta e a dor vividas pelos cinco irmãos, mas há também as alegrias e o amor.
“Claro que, naquele dia, o seu adversário seriam cinco irmãos.
Nós os irmãos Dunbar.
Eu , o Rory, o Henry, o Clayton e o Thomas.
Depois daquele dia, nunca mais fomos os mesmos.” (p. 20)

Numa narrativa tão sublimemente construída só mesmo no final nos inteiramos verdadeiramente do que aconteceu. E essa é a magia do autor, a sua escrita enleva-nos e mantém-nos suspensos numa alternância de dor e de alegria, de perda e de vida, de abandono e de reencontro. Os avanços e recuos da narrativa colocam o leitor numa atitude de reflexão e obrigam-no a viver emoções fortes e a “adoptar” os irmãos Dunbar.

É uma história de redenção na qual o amor e a união familiar se sobrepõem às mágoas e aos ressentimentos.
Recomendo muito! O livro narra-nos de forma intensa a história de uma família maravilhosa.

11 outubro, 2021

𝑼𝒎 𝑫𝒊𝒂, de Morris Gleitzman

 

Autor: Morris Gleitzman
Título: Um Dia
N.º de páginas: 159
Editora: fábula
Edição: Novembro 2017
Classificação: Juvenil
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Um Dia é o primeiro livro da tetralogia sobre o Holocausto/ Segunda Guerra Mundial. Os quatro livros são recomendados pelo PNL2027 (dos 12 aos 18 anos) e foi por esta razão que decidi lê-lo.

Apesar de ser um livro juvenil, gostei de o ler. O autor aborda a temática de uma forma original, num estilo descontraído e aparentemente ligeiro.
Narrado na primeira pessoa, Félix Salinger, o protagonista, é uma criança judia, encantadora, inteligente e com uma imaginação muito fértil.
“Um dia, fugi de um esconderijo subterrâneo contando uma história. Era um bocadinho exagerada. Era um bocadinho fantasiosa. Era a minha imaginação a deixar-se levar.” (p. 97)

Como gosta muito de ler e de escrever, sempre que se depara com uma cena de violência protagonizada pelos nazis, e que devido à sua idade e inocência, não consegue compreender, imagina uma história que justifique o que presenciou.

Félix ao juntar-se a um homem (Barney) e a outras crianças resistentes, vai assistindo a dramas terríveis e no meio de tantas incertezas e privações vai criando laços de amizade e de solidariedade, mas também muitas desilusões. Já nem as suas histórias conseguem iludir a verdade dolorosa e sombria que está a viver. E não concebe que atos tão terríveis possam ser praticados por seres humanos.
“Porque é que os nazis farão sofrer assim só por causa de alguns livros.” (p. 71)

É uma história pequena, bem escrita, emocionante e perturbadora. O facto de ser narrada sob o olhar inocente de uma criança, conquista e apaixona o leitor, de qualquer faixa etária.
“ Vou dizer-te a verdade. Arranjei-te as botas porque toda a gente merece ter alguma coisa boa na vida, pelo menos uma vez.
Não sei o que dizer. É uma das coisas mais amáveis que já ouvi, mesmo em histórias.
Obrigado – segredo-lhe, mas ….
Fico confuso. De certeza que o Barney sabe que tenho montes de coisas boas na minha vida. Na verdade, até mais do que qualquer um naquela cave.” (p.119)

Fiquei com vontade de descobrir o que vai acontecer ao Félix…



07 outubro, 2021

𝑴𝒂𝒅𝒆𝒎𝒐𝒊𝒔𝒆𝒍𝒍𝒆 𝑪𝒉𝒂𝒏𝒆𝒍 𝒆 𝒐 𝑷𝒆𝒓𝒇𝒖𝒎𝒆 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒐𝒓, de Michelle Marly

 


Autor: Michelle Marly
Título: Mademoiselle Chanel e o Perfume do Amor
N.º de páginas: 333
Editora: Planeta
Edição: Junho2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (----)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

J’adore la Belle Époque! J’adore Paris! J’adore Chanel n.º 5!

Assim, à partida, e para mim, este livro apresenta todos os ingredientes para uma boa história, se ainda lhe acrescentarmos o glamour da vida parisiense, a vida boémia de alguns artistas e a elegância de Coco, teremos certamente uma excelente composição.
Baseado em factos reais, o romance apresenta-nos uma mulher franzina e elegante, extremamente lutadora, singrou na vida à custa da sua inteligência e do seu trabalho. Foi uma mulher moderna, inovadora, generosa (mecenas de vários artistas) e livre. Uma referência no mundo da alta-costura e que marcou toda uma época.

O livro narra uma parte importante da vida de Gabrielle Chanel, na buliçosa e cosmopolita cidade onde tudo acontece. Ao longo das trezentas páginas tomamos conhecimento da sua infância infeliz e traumatizante, da sua ascensão social, dos seus sucessos profissionais, dos seus reveses amorosos, mas também partilhamos das intrigas da elite francesa intelectual e artística e sobretudo mergulhamos no mistério que envolve a criação do perfume mais famoso do mundo - o icónico Chanel n.º 5 que imortaliza o seu grande amor.

Não é um livro arrebatador, mas é interessante para quem aprecia a efervescência intelectual, artística e boémia da cidade luz. Lê-se muito bem.




02 outubro, 2021

𝑹𝒐𝒅𝒆𝒂𝒅𝒐 𝑫𝒆 𝑰𝒍𝒉𝒂, de João Miguel Fernandes Jorge

 


Autor: João Miguel Fernandes Jorge
Título: Rodeado De Ilha
N.º de páginas: 305
Editora: Relógio d'Água
Edição: Abril 2021
Classificação: Contos/Testemunhos
N.º de Registo: (3302)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Rodeado De Ilha reúne 31 textos ficcionais, ensaísticos e de viagem tendo como cenário várias ilhas dos Açores. Para além de relatos pessoais, o autor convoca para alguns dos seus textos Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal aparece em vários textos – Rui Chafes, António Dacosta, Júlio Pomar...
“Neste momento, riscado que foi esse sinal de um verão que subjaz na distância, mas que será ainda capaz de erguer erupções, brilhos que guardam «saudades da terra», da ilha, das ilhas, do mar das ilhas. Nesse caderno… Foi esse caderno que trouxe para estes meus dias do verão de 2001; e em cujas páginas irei agora escrever este ao redor das ilhas, e em que me quererei saber rodeado de ilha. Rodeado de mar.” (pp.69 e 70)
Nos seus textos desenvolve temas que lhe são queridos (assim o entendi) como a paisagem açoriana, de várias ilhas, os habitantes com os seus modos, os santos e as igrejas, as expedições, o vento forte, “de rajadas” e o mar, sempre o mar ora calmo, ora agitado. Mas também nos presenteia com várias páginas de arte, de beleza artística (obras literárias, poesia, exposições – escultura, pintura)
“Na ilha, nas ilhas, perpassa ainda a sombra de Deus sob a asa de uma ave. A sua cor, breve, como a atmosfera do azul e do verde, exalta-se em António Dacosta. A sua cor, pesada de negro e arrebatada de vermelho, movimenta-se em jogo e celebração nestas pinturas de Júlio Pomar.” (p.96)

Numa escrita cuidada, JMFJ oferece ao leitor olhares, ecos, vislumbres, emoções, inquietudes (“continuo a procurar uma ilha somente como sítio privilegiado para a racionalidade da inquietude”) de si, dos outros, das ilhas, do mar, do tempo, da arte, da natureza bela e agreste; imagens, metáforas, …
“ «Uma ilha é o umbigo do mar.» Terei lido, não sei em que poeta grego. Suponho que em Seferis.” (p.109)

20 setembro, 2021

𝑫𝒆𝒔𝒗𝒊𝒐, de Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho

 

Autor: Ana Pessoa
Ilustrador: Bernardo P. Carvalho
Título: desvio
N.º de páginas: 197
Editora: Planeta Tangerina
Edição: Junho 2020
Classificação: Novela gráfica
N.º de Registo: (3267)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Desvio, a banda desenhada escrita por Ana Pessoa e ilustrada por Bernardo P. Carvalho narra-nos a história de Miguel, um jovem de 18 anos. Sozinho em casa porque os pais foram de férias, não lhe apetece estar com ninguém. Num verão quente, arrasta-se por casa, fuma, vê filmes, faz jogos de palavras, espalha “gostos” nas redes sociais dos amigos, videojogos, estuda código de estrada e “faz uma pausa” com a namorada. Quando sai, vai ao cinema e deambula pela cidade tirando fotos e filmando como um turista. Nunca está feliz, não entende o presente, questiona-se sobre o futuro. Farta-se de tudo e de todos, “quer fazer uma pausa de tudo.”
O texto reduzido, próprio de uma novela gráfica, é magnificamente completado com a narrativa visual muito colorida, expressiva e descritiva. Ficam muito claras as acções e os pensamentos de Miguel. Há momentos de silêncio fantásticos. As páginas com os desenhos e o texto estão harmoniosamente construídas. E isso torna esta banda desenhada excepcional.
Assim, o livro transmite muito bem as dúvidas, os medos e as expectativas dos adolescentes, bem como a angústia das mães que telefonam constantemente e que não sabem muito bem lidar com o filho/a filha que vive num mundo entediante, sem projetos, numa luta constante contra a rotina e em busca de uma identidade. Da sua identidade.
Recomendo este livro porque sem qualquer juízo de valor, foca-se na realidade, no mundo dos nossos jovens e quem lida com eles, sabe que é assim. E a forma como é narrada (texto e ilustração) leva-nos a refletir e a perceber o dilema existencial da vida de um jovem.
“Nunca sinto o que os outros querem que eu sinta.”
“E às vezes é difícil perceber onde estamos. Andamos perdidos nas mesmas ruas, nos mesmos labirintos, nos mesmos dramas.”



18 setembro, 2021

𝑨 𝑻𝒆𝒓𝒄𝒆𝒊𝒓𝒂 𝑹𝒐𝒔𝒂, de Manuel Alegre

 


Autor: Manuel Alegre
Título: A Terceira Rosa
N.º de páginas: 133
Editora: Círculo de Leitores
Edição: Julho 1999
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1047)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Neste pequeno livro em prosa, Manuel Alegre relata-nos simultaneamente uma história de amor e o final do Estado Novo.
Numa escrita poética, o autor tece um paralelismo entre o amor de Xavier e Cláudia que oscila entre encontros e desencontros, entre felicidade e solidão, e entre a decadência do regime e a Liberdade.
“Viveu a euforia de Lisboa Libertada, as chaimites que se passeavam, o sorriso das pessoas, a corrente que passava entre todos, o sentimento de pertença a um país, um movimento, um sonho. (…) Estava alegre e estava triste, partícipe e ausente. (…) Havia uma ausência, faltava o resto da sua mais secreta e íntima liberdade.” (p. 115)

Num tom confessional, e numa mescla de prosa e poesia, o autor recorre a pequenos textos, fragmentos intimistas para nos mostrar o caminho do amor, da paixão, da liberdade, mas também da solidão, da perda, da morte.
“ (Que nome te dar? Tu és única. Tu és todas. Ou talvez nenhuma. Eu sou tu. Tu és eu. A outra metade de mim. A parte de ti que em mim ficou. A parte de mim que foi contigo. Ninguém me foi tão próximo. Ninguém me escapou tanto.
Como foi que constantemente nos encontrámos e nos perdemos?
Esta é a história. Uma história sem história. Uma história só isto.)” (p.51)

É portanto uma leitura cativante, na medida em que o pensamento (de Xavier) convoca os momentos, as memórias mais marcantes e importantes de uma vida.