28 fevereiro, 2023

𝑺𝒆 𝒄𝒐𝒎 𝑷é𝒕𝒂𝒍𝒂𝒔 𝒐𝒖 𝑶𝒔𝒔𝒐𝒔, de João Reis

 


Autor: João Reis
Título: Se com Pétalas ou Ossos
N.º de páginas: 199
Editora: Minotauro
Edição: Fevereiro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Se com Pétalas ou Ossos, é um livro com uma narrativa muito peculiar e muito do meu agrado. Confesso que foi a sinopse, particularmente, a frase «Nesta quase variação indolente do escrivão Bartleby” que me levou a lê-lo, já que tenho uma verdadeira paixão pelo livro de Melville.

Assim, foi com grande curiosidade e expectativa que me lancei nesta leitura.

João Reis, transporta-nos para Seul e coloca o seu protagonista, Rodrigo Oliveira, numa residência para escritores com o objectivo de escrever o seu próximo livro. Mas Rodrigo, personagem indolente e com falta de inspiração, prefere deambular com a sua namorada pelas ruas da cidade.
A sua inércia está muitíssimo bem espelhada na narrativa que se desenvolve, aparentemente, monótona e repetitiva, em torno de um escritor que não consegue escrever. Digo “aparentemente” porque me parece intencional. O autor, ao focar-se numa escrita linear sem grande densidade nem evolução na acção nem, tampouco, nas atitudes de Rodrigo, pretende demonstrar que o seu protagonista é um homem vulgar, imperfeito, chato que leva uma vida sem encanto, meramente rotineira, enfadonha e torpe. Nem sob a pressão das mensagens que recebe do seu editor, ele altera o seu comportamento e vai adiando, adiando… “Faltam três dias para a entrega, há aqui alguma pressão.” (p. 34)

Tal como o Bartleby, de Melville, também Rodrigo Oliveira “preferia não o fazer” e tudo lhe serve de desculpa para escapar ao acto da escrita. E é na caracterização da personagem que João Reis é exímio. De forma simples, o autor constrói uma personagem simpática, apesar de tudo, que se deixa arrastar pelo fluxo dos acontecimentos, que nos descreve detalhada e obsessivamente cada situação que vive sozinho ou acompanhado e que tão bem se desvia do essencial que é escrever.

Gostei do livro. Considero que se trata de uma crítica interessante ao mundo da escrita, a escritores e editores, mas também, a todos os desencantados, desmotivados, negligentes que se deixam arrastar pela monotonia da vida. Já que é mais fácil acomodar-se do que lutar. Rodrigo até acreditava que era possível, mas… preferia adiar.
“ Pois então era assim que se trabalhava ali, já nem disfarçavam, eu devia sentir-me satisfeito por mentir ao meu editor, afinal, era um profissional com brio, ainda poderia entregar-lhe o manuscrito no prazo combinado. Era possível, bastava acreditar.” (p. 22)




27 fevereiro, 2023

Hoje estou triste ...






Hoje estou triste, estou triste.

Hoje estou triste, estou triste.
Estarei alegre amanhã...
O que se sente consiste
Sempre em qualquer coisa vã.

Ou chuva, ou sol, ou preguiça...
Tudo influi, tudo transforma...
A alma não tem justiça,
A sensação não tem forma.

Uma verdade por dia...
Um mundo por sensação...
Estou triste. A tarde está fria.
Amanhã, sol e razão.

Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa.



24 fevereiro, 2023

𝑶 𝑨𝒍𝒊𝒂𝒅𝒐 𝑰𝒎𝒑𝒓𝒐𝒗á𝒗𝒆𝒍, de Daniel Pinto

 


Autor: Daniel Pnto
Título: O Aliado Improvável
N.º de páginas: 368
Editora: Clube de Autor
Edição: Março 2022
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Sendo Daniel Pinto investigador e cooperante no processo de abertura de ficheiros secretos da instituição britânica The National Archives, tem, por isso, acesso a fontes e informação privilegiadas. Este facto permite-lhe recolher material que poderá inserir nos seus livros.

Em O Aliado Improvável, o autor fundiu factos verídicos e ficção para desenvolver o mistério da campanha de espionagem (Englandspiel) altamente mortífera da Segunda Guerra Mundial, criando uma narrativa alucinante, cheia de suspense, acção e um crescendo de tensão que culmina num final surpreendente, ou talvez não para os leitores mais atentos e especialistas em histórias de espionagem.

Simon Clifford, o espião norte-americano e Jason Walker, o aliado improvável, vão unir-se e percorrer várias cidades europeias, entre as quais Estoril, com o intuito de aniquilar Rudolf Bauer. Por que razão? Não o irei desvendar pois anularia todo o prazer da leitura e o efeito de surpresa próprios de um enredo onde predomina a espionagem, o amor, a traição e o suspense. Toda a intriga se foca na máxima “ Receio que não seja possível encontrar um homem que não queira ser encontrado…”

Os capítulos curtos e a estrutura da narrativa tornam a leitura fluida e emocionante. É com agrado que acompanhamos protagonistas e vilões, peões importantes de uma rede de informadores, neste conflito tão sobejamente conhecido que é a Segunda Guerra Mundial, num desfiar de açções em busca da verdade, de desmantelamento dos planos de Hitler e do sucesso do desembarque dos Aliados.

Ficarei atenta aos próximos livros de Daniel Pinto. Se gostam de um bom livro de espionagem, leiam-no.

21 fevereiro, 2023

𝑪𝒂𝒊𝒙𝒂 𝒅𝒂 𝑮𝒓𝒂𝒕𝒊𝒅ã𝒐, de Margarida Fonseca Santos

 

Autora: Margarida Fonseca Santos
Título: Caixa da Gratidão
N.º de páginas: 129
Editora: fábula
Edição: Outubro 2018
Classificação: Juvenil
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este é o sétimo dos nove títulos que integram a colecção A escolha é minha e que apresenta como principais temas a gratidão, o voluntariado, a entre-ajuda e as relações intergeracionais.

No momento em que a luta dos profissionais da educação está na ordem do dia, ler este livro, foi uma lufada de ar fresco, na medida em que põe em relevo o trabalho do professor, neste caso da professora Fátima, e da escola pública.
A narrativa centra-se numa turma do 8.º ano, e é pelas vozes e perspectivas de dois alunos, Margarida e Marco, que vamos acompanhando as propostas da professora bem como as atitudes e decisões dos próprios e restantes alunos. Neste título, a autora, sob a batuta da professora, pretende criar valores de camaradagem, de reconhecimento/agradecimento, de gratidão e de entre-ajuda na sala de aula, na escola e na comunidade.

O mote é dado na epígrafe com a frase Nelson Mandela “Não pode haver maior dom do que o de dar o próprio tempo e energia para ajudar os outros, sem esperar nada em troca”.
Numa linguagem simples e delicada, apropriada ao seu público infanto-juvenil, a autora mostra como o acto de agradecer as coisas simples e boas e de ajudar quem mais precisa é importante e torna as pessoas melhores.

É um livro que recomendo aos mais jovens, mas também aos adultos. E por que não lê-lo e discuti-lo em família.


19 fevereiro, 2023

A Livraria, filme de Isabel Coixet





Intérpretes: Emily Mortimer, Bill Nighy, Patricia Clarkson.
Uma coprodução da ESP/GB/ALE, de 2017, com 113 min.



Opinião:

Dirigido pela realizadora catalã Isabel Coixet, a partir de uma adaptação do romance de Penelope Fitzgerald,  A Livraria (The Bookshop)  é um excelente filme  para os amantes de literatura e admiradores de trilhos sensíveis e bucólicos.

Florence Green (Emily Mortimer), uma jovem viúva, em 1959, decide abrir uma livraria na pacata vila de Hardborough, no litoral de Inglaterra. Com essa iniciativa inovadora vai criar anti-corpos com os habitantes que integram a elite retrógrada do lugar.  


Sendo um filme de silêncios, a acção é lenta, deixando, por vezes algumas lacunas aparentemente incompreensíveis. Por exemplo, talvez se exigisse mais vivacidade na actuação de Emily Mortimer quando interage com a poderosa Violet Gamart (Patricia Clarkson) e com o advogado Mr. Thomton (Jorge Suquet) que tudo fazem para impedir a abertura da livraria. 
Contudo, na minha opinião, essa forma de agir é facilmente ultrapassada pelo destaque dado às  expressões faciais e aos olhares da actriz que tão bem expressam manifestações de  dúvida, indignação, ternura, simpatia, coragem e desespero. 
Há duas personagens que se destacam pela positiva e que apoiam Florence Green,  Mr. Brundish (Bill Nighy), o velho e elegante recluso e leitor ávido de boa literatura com quem vive um amor platónico e Christine (Honor Kneafsey) a menina  ajudante da livraria, que se vai revelar numa figura importante e encantadora ao longo da trama.

Outro aspecto muito importante do filme e que apreciei bastante é a referência a alguns livros clássicos como Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e  Lolita, de Vladimir Nabokov. Destaco também alguns sinais e presságios  presentes no filme, quer em citações de autores e poetas bem como na exposição das capas de alguns livros famosos. 


Trailer: 

18 fevereiro, 2023

𝑶 𝑨𝒏𝒐 𝒅𝒐 𝑷𝒆𝒏𝒔𝒂𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐 𝑴á𝒈𝒊𝒄𝒐, de Joan Didion

 


Autora: Joan Didion
Título: O Ano do Pensamento Mágico
Tradutor: Hugo Gonçalves
N.º de páginas: 176
Editora: Cultura
Edição: Dezembro 2017
Classificação: Não-ficção
N.º de Registo: (3362)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Neste livro de memórias e sobretudo de factos vividos no presente, Joan Didion narra o período que se seguiu à morte do seu marido, John Dunne, e a longa doença da sua filha Quintana, nos cuidados intensivos.
É um relato, na primeira pessoa, intenso e sincero sobre a morte, a dor da perda, o vazio que se instala, a necessidade de conviver com o que fica para além do amor vivido a dois, da superação.

As frases iniciais com que Joan Didion inicia a viagem mais dolorosa e ameaçadora da sua vida marcam a densidade da narrativa:
"A vida muda rapidamente.
A vida muda num instante.
Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina.
(…)
A vida muda num instante.
Um instante normal".

Sem autocomiseração, num estilo assertivo, emocionante e perturbador, Joan Didion descreve ao sabor da pluma e da sua consciência a morte do marido, a doença grave da filha, os dias que passou nos hospitais e as recordações de cerca de 40 anos de casamento. Mas é o relato da sua experiência pessoal perante a morte, perante a perda, perante o vazio e a necessidade de superação, de resolução, de luta contra o tempo que desarma o leitor.

“Durante várias semanas, era assim que eu despertava para o dia.
Despertei e senti o sentimento da escuridão, não do dia.
(…)
Precisava de estar sozinha para que ele regressasse.
Este foi o princípio do meu ano do pensamento mágico.” (pp. 28 e 29)

Numa escrita ora ensaística com recurso a estudos, a pesquisas, ora confessional, precisa e brutal, ora literária com citações de poemas e de obras, Didion esmaga-nos com a limpidez e sinceridade das suas palavras, com a sua fragilidade, força e lucidez que lhe conferem uma extraordinária capacidade de escrutinar o seu interior e de se expor sem pudor.

Joan Didion lega-nos um testemunho incontornável em que “ A dor da perda acaba por ser um lugar que nenhum de nós conhece até o alcançarmos. Antecipamos (sabemos) que alguém que nos é próximo pode morrer (…) Mas não esperamos que esse choque seja eliminador, que desloque o corpo e amente.” (p. 145)


08 fevereiro, 2023

𝑶 𝑪𝒐𝒍𝒊𝒃𝒓𝒊, de Sandro Veronesi

 


Autor: Sandro Veronesi
Título: O Colibri
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
N.º de páginas: 326
Editora: Quetzal
Edição: Março 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3377)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


O Colibri, de Sandro Veronesi é um livro maravilhoso, surpreendente e superlativamente cativante. Trata-se de uma saga familiar marcada pelo amor e amizade, pela perda e dor, pela fragilidade humana, pelo sonho, esperança e realização.

O título, “O colibri” remete para a alcunha atribuída ao protagonista na infância pela mãe, devido à sua pequena estatura, mas ao longo da leitura, percebemos que há outro sentido, mais metafórico, associado à capacidade da ave pairar no ar e que no protagonista se revela ao longo da sua vida numa luta constante pela superação da perda e da dor.
É Luísa, numa carta que escreve ao protagonista, que nos confirma o, já intuído, duplo sentido de “O colibri”:

“E compreendi de repente (…) que tu és realmente um colibri. Pois claro. Foi uma iluminação: tu és realmente um colibri. Mas não pelas razões pelas quais te foi dada essa alcunha: tu és um colibri porque, como o colibri, pões toda a tua energia em te manteres parado. (…) tal como o colibri é capaz de voar para trás. Por isso é tão agradável estar ao teu lado.” (p. 261)

Marco Carrera, “oculista e especialista em oftalmologista”, ao viver uma série de dramas vai aprender a pairar, a parar, a voltar atrás para se manter à tona da vida. Muitas vezes pensa em desistir, mas resiste e luta à sua maneira.

Estamos perante um romance fragmentado que flui ao sabor das recordações e das memórias, mas também de prolepses que predizem o futuro. Sem ordem cronológica vamos percorrendo a sua infância e juventude, conhecendo a família, a paternidade, os amigos, a grande paixão da sua vida, os desencontros, as perdas familiares irreparáveis, os sucessos, isto é, a vida.
Para dar sentido à fragmentação da narrativa, Veronesi entremeou os seus capítulos com cartas, muitas cartas, conversas telefónicas, emails, documentos, citações, o que lhe atribui um carácter polifónico e é ao leitor que cabe a reconstituição da trama que acompanha Marco Carrera, bem como descortinar a complexidade das relações humanas.

Termino como iniciei, reafirmando que se trata de um livro sublime que revela uma escrita sensível, elegante, emotiva e um ritmo delicado e fascinante, tal como o colibri, ou beija-flor, que voa natural, livre e airosamente. Recomendo.


07 fevereiro, 2023

Um poema de Sebastião da Gama

 



Companheira


Não te busquei, não te pedi: vieste.
E desde que eu nasci houve mil coisas
que a meus olhos se deram com igual
simplicidade: o Sol, a manhã de hoje,
essa flor que é tão grácil que a não quero,
o milagre das fontes pelo Estio...
Vieste (O Sol veio também, a flor,
a manhã de hoje, as águas...). Alegria,
mas calada alegria, mas serena,
entendimento puro, natural
encontro, natural como a chegada
do Sol, da flor, das águas, da manhã,
de ti, que eu não buscara nem pedira.
E o Amor? E o Amor? E o Amor?
- Vieste.


Sebastião da Gama, in "Campo Aberto", Ática, 1983