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26 abril, 2024

𝑪𝒂𝒅𝒆𝒓𝒏𝒐 𝒅𝒆 𝑴𝒆𝒎ó𝒓𝒊𝒂𝒔 𝑪𝒐𝒍𝒐𝒏𝒊𝒂𝒊𝒔, de Isabela Figueiredo

 


Autora: Isabela Figueiredo
Título: Caderno de memórias Coloniais
N.º de páginas: 219
Editora: Caminho
Edição (10.ª): Outubro 2021
Classificação: Memórias
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Caderno de Memórias Coloniais é um livro autobiográfico e centra-se em duas personagens, a narradora e o pai da narradora.
Sem rodeios, numa linguagem clara, crua e directa, a narradora relata em capítulos breves as memórias da sua infância vivida em Moçambique, até aos 13 anos, e as suas primeiras vivências, como retornada, em Portugal.
As memórias revelam-se em pequenos instantâneos da realidade colonial. A narradora ao centrar no pai, electricista, as críticas em relação à forma como agia sobre o povo africano pretende atingir todo o sistema porque afinal os brancos agiam todos de igual forma. O mesmo se passa em relação à mãe, também ela “uma vítima do sistema, tal como a maioria das mulheres, brancas ou negras.” 
(p. 21 – Prefácio de Chiziane)

É um livro marcante que trata o tema do colonialismo na primeira pessoa, as relações de género entre dois povos. A autora narra a sua própria vida de “filha de um colono racista”, narra a ocupação abusiva de um povo; o desrespeito pelo outro de cor diferente; o abuso e violação das nativas “os brancos iam às pretas”.
“O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos (…) esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, o branco mandava no preto.“ (p. 49)

Narra, também, o seu amor, a sua admiração pelo pai até ao momento em que aprendeu a ler e se apossou dessa “ferramenta “ como forma de alcançar a sua liberdade.
“Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê e escuta (…) Foi quando comecei a tornar-me toupeira. (…) na toupeira que lhes havia de roer todas as raízes, devagar, uma de cada vez, até restar pó.
O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre.” (pp. 101 e 102)

Narra a sua vida de criança que gostava de conversar e de brincar com os mainatos “Os mainatos tratavam-me bem, carregavam-me às cavalitas. Brincavam. Riam. Faziam rir. A minha mãe tinha medo que os mainatos me fizessem mal ou me roubassem. A minha mãe desconfiava de mim, adivinhando a minha alma de preta.” (p. 113).
Narra o tempo de antes e após a independência em que “morrer sempre foi fácil”, de avanços e recuos, de incertezas, de esperança invisível, de guerra, de abandono. “O tempo dos brancos tinha acabado.”

Finalmente, narra a sua vida na Metrópole para onde foi enviada, em novembro de 1975, “num dia frio de inverno” com a incumbência de relatar o que os pretos faziam aos brancos.
“tu vais contar”; “diz-lhes … que é mentira”; “diz à tua avó”; “Era a portadora da mensagem, levava comigo a verdade. A deles. A minha, também, mas eles não imaginariam que eu pudesse ter uma verdade só minha, sem a sombra das suas mãos. (p. 152)

Em suma, este caderno revela, em primeira instância, de forma crua a brutalidade e a perversidade de uma sociedade preconceituosa e racista, ao apresentar a extrema violência presente nas relações entre colonizadores e colonizados, entre brancos e negros. Em segunda instância, a relação entre filha (narradora) e pai. Uma relação ambígua, de aproximação e repulsa, de carinho e raiva, de aconchego e medo.

Há todo um legado colonial marcado pela “verdade testemunhal” da narradora, contudo a falibilidade da memória desde logo inscrita na segunda epígrafe “A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível. […]”, de Primo Levi, releva a importância da ficção. Fica, desta forma, salvaguardada a possível subjectividade às diversas construcções da realidade.

Recomendo seguramente a leitura deste caderno. Escrito de forma provocatória focaliza o olhar da narradora sobretudo na sua relação com os outros. Além do mais, esta edição contém dois prefácios valiosíssimos de Paulina Chiziane e José Gil.


17 junho, 2023

𝑼𝒎 𝑪ã𝒐 𝒏𝒐 𝑴𝒆𝒊𝒐 𝒅𝒐 𝑪𝒂𝒎𝒊𝒏𝒉𝒐, de Isabela Figueiredo

 

Autora: Isabela Figueiredo
Título: Um Cão no Meio do Caminho
N.º de páginas: 292
Editora: Caminho
Edição (2.ª): Fevereiro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3428)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




Isabela Figueiredo revela-se exímia em narrar histórias de vida que, aparentemente, e numa primeira abordagem, nada de relevante teriam para nos oferecer. Contudo, através de uma escrita sensível e de uma estrutura interessante, ela eleva a narrativa e enobrece as personagens, construindo uma história emotiva e cativante.

Neste livro conta-nos a história de José Viriato e de Beatriz, vizinhos que inevitavelmente acabarão por confrontar uma existência de encontros, de conflitos, de entre-ajuda. Ele é uma personagem fabulosa que na sua opção de vida perpassa uma voraz sensação de liberdade. Ela é uma amontoadora de bens e de recordações. Ele, atenta às miudezas; contempla o banal; vê beleza em tudo. Ela, espia o vizinho; foge de um passado; carrega uma culpa; vive rodeada de caixas e isolada de tudo. Ele, tem uma paixão por animais, sobretudo por cães. Ela, odeia e teme animais, sobretudo cães. Ele e ela, carregados de histórias tristes e complicadas; desamparados, levam uma vida de solidão.

A autora, numa espécie de epígrafe que intitulou “nota sobre fruta feia”, dá-nos, desde logo, o mote do seu livro:
“Não há vidas melhores do que outras. As maçãs da mesma árvore crescem com diversas formas e tamanhos. Algumas crescem aleijadas. Os sabores da maçã mais bonita e o da maçã aleijada são iguais.”
É evidente que Isabela Figueiredo prefere “as maças aleijadas”, são elas que a alimentam na sua escrita e a conduzem na tessitura da sua narrativa. São elas que extasiam o leitor que vai descobrindo aos poucos as arestas a limar, os poros de onde emanam pequenas partículas impalpáveis de medo, de dor, de culpa, de redenção e por vezes de amor.

Gosto da maneira como a autora trata os seus temas. Simples e sóbria; emotiva e poética; inebriante e arrebatadora. O leitor sente a urgência de uma leitura ávida, na ânsia de descortinar quem são estes seres a quem o capitalismo, a sociedade consumista, votou ao abandono, a quem a política atribuiu falsas esperanças, a quem as pedras se atravessaram no caminho, mas também e, sobretudo, a desvendar “as bengalas que ajudam as pessoas a caminhar sem se magoarem.” No final, percebemos e aceitamos “que ninguém entra na nossa vida por acaso.” E esse ninguém tanto pode ser uma animal como uma pessoa.

Recomendo a leitura para descobrirem quem foi o "intruso" da vida de José Viriato.


01 novembro, 2017

A Gorda de Isabela Figueiredo



Este romance de carácter autobiográfico (parece-me) aborda uma temática muito interessante e muito actual. Maria Luísa, a protagonista, tendo nascido em Lourenço Marques vem para Portugal, por decisão dos pais que decidem interna-la num colégio, na Lourinhã. É boa aluna, inteligente e trabalhadora, mas é gorda. Numa sociedade como a nossa, Maria Luísa vai ser rejeitada, gozada, humilhada quer pelas colegas quer pelos amigos de David, o rapaz/homem da sua vida que também a abandona, mas que permanecerá para sempre na sua memória. Partindo da descrição das divisões da casa que habita com os pais, depois de estes terem voltado ao país, a protagonista relata-nos a sua vida, em constantes avanços e recuos no tempo e percebemos que o estigma de ser gorda a vai perseguir, mesmo após a gastrectomia, e Maria Luísa acaba por ter uma vida de contradições, de busca da felicidade e de isolamento. A sua vida como professora acaba por estabilizar, mas ela fica só e presa às recordações.