30 novembro, 2023

𝑼𝒎𝒂 𝑬𝒙𝒊𝒔𝒕ê𝒏𝒄𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒂𝒑𝒆𝒍, de Al Berto

 


Autor: Al Berto
Título: Uma Existência de Papel
N.º de páginas: 53
Editora: Coleção Pedra de Canto - 4
Edição: Janeiro 1985
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (--)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Todos os anos, neste mês, volto obrigatoriamente a Al Berto, o meu poeta.
Desta vez a escolha recaiu no livro Décimo Primeiro (1984/85) - Uma Existência de Papel.

É sempre com enorme prazer que o (re)leio. Mesmo tratando-se de uma releitura, descubro novas confissões, sinto novas e intensas emoções. Nunca permaneço indiferente e, por vezes, é-me mesmo doloroso reter, dos seus versos, a intensa solidão, a melancolia profunda e permanente e o silêncio desolador (“é no silêncio/que melhor ludibrio a morte”) que se revelam através da perda, da ausência e do medo.
Para Al Berto escrever é viver. É a folha de papel que lhe dá ânimo para existir.
“ então a vida abater-se-á sobre a folha de papel/ onde verso a verso/ me ilumino e me desgasto” (Meu único amigo - 6).

Há, neste livro, resquícios de uma existência fulminante, de excessos, de paixões, de transgressão, mas também de vazios lancinantes, de memórias de viagens, de vivências, de lugares, de partidas, da criança que foi.
“eis-me acordado/ com o pouco que me sobejou da juventude nas mãos/ estas fotografias onde cruzei os dias/ sem me deter/ e por detrás de cada máscara desperta/ a morte de quem partiu e se mantém vivo.”

Gostaria ainda de destacar, porque é também um dos meus poetas, a referência num poema, o penúltimo deste livro, a um dos seus “fantasmas literários”. Rimbaud é um dos seus modelos estruturadores, por excelência. Este poema é um auto-retrato de Al Berto com alusões metonímicas a Rimbaud (Alexandria, Harrar) e com a indicação dos trinta e sete anos de idade – a idade do poeta francês quando morreu – revela um propósito de identificação com o seu destino. A biografia de Rimbaud confunde-se com a de Al Berto.

“embebedavas-te
(…)
escuta
a partir de hoje abandono-te para sempre
ao silêncio de quem escreve versos
em Portugal
tens trinta e sete anos como Rimbaud
Talvez seja tempo de começares a morrer!

Assim, pode-se aferir, após a leitura deste décimo primeiro livro, que a vida de Al Berto parece conter-se a uma existência de papel na medida em que se regista a necessidade urgente de condensar sensações, vivências, memórias e imagens através da escrita. Pelo que o espaço privilegiado em que o “eu” se estabelece é o “papel”
“mais nada se move em cima do papel/ nenhum olho de tinta iridescente pressagia/ o destino deste corpo” (Eremitério – 5)



27 novembro, 2023

Passeio Literário a Óbidos



No âmbito da Formação Oficina de Leitura e Escrita (OLE), ministrada por Paula Cusati, no Centro de Artes em Sines, foi apresentada, na última sessão, a possibilidade de uma visita cultural a Óbidos!
Não hesitei nem um segundo. Pelo que no dia 25 de novembro,  partimos cedo em busca de informação e conhecimento Para Imaginar o Mundo! (PIM!). O nosso mundo!
Pelas 10h30, chegámos animados a Óbidos e dirigimo-nos para a Galeria Nova Ogiva (fundada em 1970, pelo escultor José Aurélio) aonde nos esperava a curadora da exposição PIM!

Mas agora que estou a relatar o dia, questiono-me se será correcto da minha parte, usar o “nós” e explanar no plural a experiência vivida ou se devo apenas cingir-me ao “eu”, isto é, ao meu sentir! Será que sentimos tudo da mesma maneira? Não, certamente!

Assim, cheguei animada e ansiosa por cumprir e aproveitar ao máximo o programa literário tão cuidadosamente elaborado pela nossa querida “professora”.

Nas ruas, apinhadas de turistas, que me conduziam à galeria fui captando imagens para memórias futuras de ruelas, escadas, vasos, portas, janelas, igrejas, … até que entrei numa mercearia/livraria! 
Que maravilha! Que mistura surpreendente e improvável! Confesso que me perdi a olhar … queria abarcar tudo e nada retive… Simplesmente, maravilhoso! 
Voltarei com tempo e calma, pensei de imediato, para descobrir os títulos das lombadas alinhadas nas prateleiras.

Continuei a percorrer a rua, desviando-me dos muitos “invasores” que por ali vagueavam em busca de souvenirs. De repente, avistei a galeria, quase vazia, porque não vende os souvenirs tão desejados! Mas oferece cultura! Palavras, desenhos, ilustrações, casas de pé, invertidas e tombadas, sonhos, caminhos para a imaginação! Era o PIM! Sim, PIM! Para imaginar o Mundo!

Para Imaginar o Mundo… como é possível?! Sim, é possível, neste espaço atraente, colorido, apelativo que convida o visitante, aquele que gosta de sentir de todas as maneiras, tudo é possível desde que corra o Risco de Ler Devagar!

Visito o lugar de pé alto e de vários pisos com a convicção de me deixar seduzir pelas ilustrações coloridas de Raúl Guridi e pelas palavras de Joana Bértholo que nos apresentam “as bestas que os livreiros têm de enfrentar diariamente”.
A visita, aparentemente divertida, revela-se numa descoberta desconcertante, já que convida a reflectir sobre a importância das livrarias independentes e da luta que travam para se defenderem das “bestas” que as atacam, para desviar o leitor dos perigos da “selva” e para alertar para as consequências cada vez que uma livraria fecha.
Após a visita, mas ainda no espaço, a curadora, Mafalda Milhões, numa conversa informal, amena e constructiva explicou a criação desta mostra que integra 75 livrarias imaginárias, desenhadas por ilustradores para homenagear José Pinho, o homem que transformou Óbidos num polo literário. Os ilustradores foram convidados a completar e a ilustrar a frase “Na minha livraria…”

A conversa foi interrompida pois aproximava-se a hora agendada para o almoço no the literary man óbidos hotel
De novo, pelo percurso, retenho imagens… mal eu sabia o que me esperava!!! (como gosto de ser surpreendida, não pesquisei nada do programa. Confiei na nossa “professora”).

O antigo convento, agora transformado em hotel, é um espaço moderno, mágico, repleto de história que nos convida a imaginar um mundo literário!
Fiquei deslumbrada! Que sala magnífica, acolhedora com sofás confortáveis à volta da lareira que convidam à leitura, com paredes revestidas de estantes de livros, com mesas decoradas com excertos de textos, poemas, capas de livros, fotos de escritores. A sala de refeições é uma autêntica biblioteca/livraria.
Book&Cook – o nome deste espaço – é o nome adequado, pois é disso que se trata. Livros e Iguarias! 
O cardápio servido esteve à altura das emoções sentidas, ou melhor, elevou a fasquia desta experiência literária. Ora vejam: bolinhas de alheira, lombinho de porco com mostarda à antiga, cheesecake de frutos vermelhos. Tudo regado com um surpreendente vinho tinto “Quinta de S. Francisco - Óbidos”, que apesar dos 13,5%, não produziu efeitos colaterais. A excelência.

Antes de abandonar o local, os passos e o olhar furtivos e curiosos levaram-me ao segundo piso para confirmar o que já suspeitava. Livros e mais livros nas paredes dos corredores, livros em estantes, secretárias, máquinas de escrever. Todo um universo propício à escrita e à leitura.
Sonhei em voltar. Pensei em Borges e como ele “imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca (livraria)”.

O passeio literário não terminou aqui. Faltava-me descobrir O Bichinho de Conto, em Casais Brancos, às portas de Óbidos. O Bichinho de Conto é o tal espaço de Risco – uma livraria. Um “sítio aonde nos esperam”.
E que bem nos esperou e recebeu Mafalda Milhões (bem como a sua colaboradora), sim a mesma que nos falou de bestas e de bons livros e de livrarias e de ilustrações na Galeria Nova Ogiva.
Adorei descobrir que este espaço antes de ser uma livraria dinâmica e aberta a experiências que desenvolvem os sentidos, foi uma escola primária. É um sítio fabuloso. Será que este é o que a Ana Zorrinho nos incita a descobrir no seu livro?
Sim, Óbidos nas múltiplas e diversas formas de viver o livro, pode bem ser o meu !

Um grande bem-haja, à nossa “professora” Paula Cusati que nos abriu novos horizontes e mostrou sempre muita preocupação no bem-estar do seu “pequeno rebanho” de itinerantes literários.
Um bem-haja a todos os itinerantes literários que viveram e enriqueceram este passeio. 



(refrescar a página se o vídeo não aparecer devidamente)



Passeio Literário - Óbidos - Kizoa Movie Maker





22 novembro, 2023

𝑷𝒆𝒔𝒔𝒐𝒂 & 𝑺𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒈𝒐, de Miguel Real

 

Autor: Miguel Real
Título: Pessoa & Saramago
N.º de páginas: 270
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3461)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Miguel Real nas páginas iniciais do livro refere que “Fernando Pessoa (1888-1935) e José Saramago (1922-2010) foram, pela qualidade e singularidade da sua escrita, dois dos maiores escritores portugueses do século XX, se não mesmo os dois maiores escritores do século XX.” (p. 11) e mais adiante escreve que “ambos com oficinas literárias diferentes (Pessoa: a heteronímia; Saramago: o autor narrador) interrogam e problematizam os fundamentos religiosos e filosóficos da nossa civilização.”

Ao longo do livro, perceberemos o que une estes dois vultos da nossa literatura. Enquanto Pessoa nos transmite a sua visão mítica e histórica de Portugal através dos heróis nacionais (Mensagem), Saramago guia-nos através das suas personagens, homens e mulheres da sociedade, para nos legar uma mensagem muito clara, da sua visão do mundo e em particular de Portugal.


Veremos ainda que em ambos, as personagens tornam-se “mestres”, tornam-se “realizações literárias do autor.” Pessoa multiplica-se nos seus diversos heterónimos, construindo “uma comunidade só minha” [a sua]; Saramago multiplica-se na criação das suas personagens, construindo a “sua comunidade literária, o “outro”, criado pelo próprio”. Assim, sintetiza Miguel Real: “ Por isso, ainda que múltiplo como múltiplas são as personagens, Saramago é uno, e Pessoa, ainda que uno, é sobretudo múltiplo, isto é, plural.” (p. 19)

Para quem aprecia as obras destes dois autores, este ensaio de Miguel Real é importante e recomendo a sua leitura. Gostei bastante de perceber os pontos comuns explanados através dos conceitos de “heteronímia” e de “autor-narrador”; de entender a estética de cada um que, apesar de diferente, se assemelham na complexidade da criação das personagens (Saramago) e dos heterónimos (Pessoa), na visão crítica da sociedade e na transgressão dos “códigos estéticos do seu tempo” que os elevam à “universalidade da literatura”.

Contudo, e não posso deixar de o referir, considero que, em certas partes, o texto se torna um pouco repetitivo e denso.



20 novembro, 2023

Sara Tavares (1978 - 2023)

 Foi (en)cantar para outros firmamentos... 


                                                 Coisas Bunitas



 

                                       Chamar a Música | Festival da Canção 1994





Inquietação !




" On ne voit bien qu'avec le cœur. L'essentiel est invisible pour les yeux "



Antoine de Saint-Exupéry
( 1900 - 1944 )






19 novembro, 2023

𝑨 𝒄𝒂𝒔𝒂 𝒗𝒂𝒛𝒊𝒂, de Claude Gutman

 


Autor: Claude Gutman
Título: A casa vazia
Tradutora: Joana Caspurro
N.º de páginas: 85
Editora: Ambar
Edição: Março 2001
Classificação: Novela 
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Descobri A casa vazia na biblioteca da minha escola. De vez em quando encontro pequenas pérolas arrumadas nas prateleiras, apertadas por outros de maiores dimensões e, nem sempre, tão fascinantes.

Gostei muito. É uma história pungente, sensível, narrada pelo pequeno David que desde cedo aprende “que a guerra é uma grande porcaria. A pior de todas as porcarias.” (p. 10)

Nas 85 páginas que compõem o enredo, há poucas explicações. O leitor, conhecedor deste período negro da nossa História, terá de intuir o que aconteceu no não-dito, nas inúmeras elipses, nas analepses, nas emoções do narrador, na raiva e na dor expressas. Sentimo-nos impotentes perante tanta revolta, perante a urgência da escrita, da revelação dos factos. Resta-nos respirar… absorver as palavras… calar e sofrer perante o mal.

Tal como o autor regista a necessidade de escrever, de contar o que aconteceu. É também urgente que se leia. Já não com o propósito “para que não se repita”, pois infelizmente a História está a repetir-se. Com a mesma violência, com a mesma incompreensão. Não aprendemos nada com os erros do passado!
“ Temos que estar armados para a vida, e não apenas com pistolas e metralhadoras. A palavra é uma arma igualmente terrível contra os exploradores…” (p. 75)

Recomendo muito a leitura deste primeiro livro. Há uma continuação que vou tentar descobrir.



18 novembro, 2023

𝑶 𝑺𝒊𝒍ê𝒏𝒄𝒊𝒐 𝒅𝒂 Á𝒈𝒖𝒂, de José Saramago e Yolanda Mosquera

 



Autor: José Saramago
Título: O Silêncio da Água
Ilustradora: Yolanda Mosquera
N.º de páginas: 
Editora: Porto Editora
Edição: Maio 2022
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (3476)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A história narrada em O Silêncio da Água é um episódio extraído do livro As Pequena Memórias, de Saramago. Acontece à beira do rio Almonda, rio que banha a Azinhaga, local de boas memórias, onde o autor passou grande tempo da sua infância e juventude.

As ilustrações maravilhosas de Yolanda Mosquera complementam a mensagem simples e sensível do texto. As páginas coloridas vão muito além do diálogo directo com as palavras, já que os pormenores inseridos criam um outro enredo imagético que sugere momentos de felicidade e de descoberta vividos pelo menino. A frase mais expressiva do conto vem revelar isso mesmo, o despertar para novas vivências, novas sensações.

"Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei.
Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci".







16 novembro, 2023

LER faz mal à saúde.

 




Ler faz mal à saúde!
Porque nos faz parar.
E nos “obriga” a sentir. E a imaginar.
Porque nos co-move. E movimenta.
E nos destranca. E agiganta.
E isso assusta! Porque (em vez de nos tornar conformados ou livres, em segredo) nos desabotoa o pensamento. E nos torna - “só”! - voáveis.

Ler faz mal à saúde!
Porque nos põe perguntas. E leva a que os livros nos conduzam, pela mão, do silêncio ao assombro.
E ao desejo. E levem, ainda, a reparar que até os estranhos têm histórias. Vizinhas das nossas. Antes de se tornarem - como somos todos, quando lemos - numa casa. Uns para os outros.

Ler faz mal à saúde!
Porque nos remexe; por dentro. E nos encaminha, de supetão, do silêncio das coisas à surpresa e ao encanto. E nos faz perceber que, da cada vez que lemos um livro, nos damos a ler. Mas isso expõe-nos à transparência. Por tanto, é mau…Porque nos torna, subitamente, mais simples. Mais acolhedores. E mais bonitos.

Ler faz mal à saúde!
Porque nos ajuda a entender que temos - todos! - sonhos e lágrimas. Sombras e luz. Paixão, intimidade e solidões. E isso é mau! Porque, todos juntos - quando nos compartilhamos por entre os livros que somos e por aqueles que lemos - ficamos mais fáceis de ler.
E, de espanto em espanto, vindas do fundo de nós, mais palavras se soltam. À espera das mãos de quem as “apanhe”, as costure e desenhe.
Por tudo isto, não devorem os livros.

Leiam-nos. Sem pressa. Leiam como quem resiste ao furor da estupidez humana e, teimoso, não desiste de pensar.
Saboreiem os livros.Degustem-nos! (E desgostem quem vos assuste com eles.) Leiam-se enquanto lêem. Percam-se nas histórias.Leiam! Mas guardem-se nos livros.
Se bem que ler nos faça… mal!Sobretudo quando descobrimos que, dentro de cada um de nós, há uma imensidão de livros que aguardam (pacientemente!) por ser escritos.

Tudo isto, porque os livros não são livros. São pontes. E avenidas largas. E são barcos. E janelas. Pináculos. E planaltos. Os livros são auroras. E elefantes que voam. Árvores que, em vez de frutos, dão palavras. E, até, asas. Que se desencontram do seu voar.

Ainda assim, leiam. Leiam. Leiam devagar! Lentamente é a forma mais rápida de tornar mais perto o sítio mais longe onde se quer chegar.


Texto de Eduardo Sá




12 novembro, 2023

Sonho

                                                        Ana Hatherly na Gulbenkian – Digital Hub



O sonho é a ponte
Que vai do infinito ao infinito,
É a medida sem comparação,
É a presença do que se imagina.

Sonhar talvez só seja
Reconhecer o que já nem a alma sinta
Nem o próprio pensamento veja.

in Aparências, Ana Hatherly



Maléfique - Once upon a dream {Lana Del Rey}






                                           

06 novembro, 2023

Felicidade Clandestina, Clarice Lispector

   Tela de Clarice Lispector, sem título e sem data. Óleo sobre madeira
 (Foto: Acervo do Instituto Moreira Salles/Divulgação)


Felicidade clandestina 


     Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. 
     Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". 
      Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. 
     Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. 
     Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. 
      Até ao dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. 
     No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. 
     Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo. 
     E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. 
      Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. 
     Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! 
     E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. 
     Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
      Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar ... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. 
     Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. 
     Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.



in Contos, Relógio d'Água


05 novembro, 2023

𝑶 𝒃𝒂𝒓𝒖𝒍𝒉𝒐 𝒅𝒂𝒔 𝒄𝒐𝒊𝒔𝒂𝒔 𝒂𝒐 𝒄𝒂𝒊𝒓, de Juan Gabriel Vásquez

 


Autor: Juan Gabriel Vásquez
Título: O barulho das coisas ao cair
Tradutor: Vasco Gato
N.º de páginas: 302
Editora: Alfaguara
Edição: Outubro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3333)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐




O barulho das coisas ao cair é um romance fascinante que descreve uma Colômbia que tenta resgatar-se da violência e do medo imposto durante anos pelos homens de Pablo Escobar.

António Yammara, o jovem protagonista, narra a sua vida “contaminada” e por analogia a de tantos outros da sua geração, “ a geração que nasceu com os aviões, com os voos cheios de sacos e os sacos cheios de marijuana, a geração que nasceu com a Guerra contra as Drogas e conheceu depois essas consequências,” (p. 251); a geração que vive perturbada por barulhos indefiníveis e intermináveis, “um barulho que não é humano ou é mais que humano, o barulho das vidas que se extinguem mas também o barulho dos materiais que se partem. É o barulho das coisas ao cair, um barulho interrompido e por isso mesmo eterno, um barulho que não termina nunca, que continua a ressoar na minha cabeça…” (p. 97)

A narrativa que está magistralmente escrita permite ao leitor imaginar e atribuir contornos à história que não estando relatados, são facilmente intuídos. O leitor, assim, mais facilmente se agarra à história como se dela fizesse parte integrante. A realidade e a ficção, mesclam-se na perfeição. O período negro do narcotráfico que destruiu toda uma geração de um país enleia-se com as histórias de amor e de amizade próprias dos acasos da vida.

Trata-se de um relato sensível, intimista sobre a perda nas suas múltiplas acepções. Contudo, no final prevalece a esperança de uma recuperação do protagonista e metaforicamente, do país. “Pus-me de pé, olhei pela janela grande. Lá fora, para lá das escarpas, assomava a mancha branca do sol.” (p. 295)

Recomendo.



04 novembro, 2023

𝑶𝒏𝒅𝒆, de José Luís Peixoto

 



Autor: José Luís Peixoto
Título: Onde
N.º de páginas: 139
Editora: Quetzal
Edição: Julho  2022
Classificação: Roteiro literário
N.º de Registo: (3380)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Como classificar Onde? Um livro de crónicas, um guia de viagens, um texto poético? É uma mescla de tudo isso, é um roteiro literário já que versa por terras de Botto, Camões e Gil Vicente.

José Luís Peixoto a partir da Praça da República, centro do Sardoal e do mundo, convida o leitor a avançar pelas páginas do seu livro, pela sua geografia. E o leitor entusiasmado deixa-se conduzir pelas suas palavras poéticas.

São 139 páginas de textos breves que nos proporcionam a descoberta de igrejas, de fontes, de miradouros, de ruas, de árvores, de paisagem, de monumentos, de bibliotecas…. Para o leitor que já visitou Abrantes, Constância e Sardoal, esta viagem pode tornar-se num avivar de memórias, de recordações, mas pode também tornar-se num enorme lamento porque percebe que então, o seu olhar não captou a realidade existente no “cruzamento entre o tempo e o espaço” e que não “soube manobrar o olhar”, pelo que no final do livro, sente vontade de regressar com os olhos bem abertos, de seguir os passos e as palavras do autor, de apreender tudo de novo, de captar a essência de cada lugar e de terminar na Biblioteca Municipal de António Botto (inevitável) para sentir o seu olhar, para ser biblioteca:

“ A BIBLIOTECA ESTÁ A VER-TE. A partir das janelas abertas, esse olhar não te larga, fixa cada um dos teus movimentos, até os mais ínfimos: o peito a encher-se e a esvaziar-se, o ligeiro tremor com que te firmas nas pernas. Existes no olhar da biblioteca, da mesma maneira que estas palavras existem no teu olhar. (…) Mas agora estás aqui, és uma figura ao longe. A tua pele são as tuas paredes, como as paredes da biblioteca são a sua pele. As prateleiras de livros são as suas veias e artérias. Através delas, fluem palavras como sangue ou seiva, são a transcrição literal dos teus pensamentos. A biblioteca está a ler-te. Tu és a biblioteca da biblioteca. “ (pp. 85. 86)

Em jeito de conclusão, Onde é um livro diferente, que se pode ler num ápice. Contudo, recomendo que se leia com vagar, que se aprecie a escrita simplesmente poética porque “PRECISAMOS DAS BORBOLETAS para falarmos de delicadeza. Sem elas, seria muito mais difícil escolher palavras finas e raras, prontas a pousar lentamente nos ouvidos de quem as escute, nos olhos de quem as leia.” (p. 83) e, também, porque “às vezes, a poesia é a loucura arrumada em versos, palavras que se parecem com os seus sinónimos mas que, ao serem lidas, nos puxam para um lugar com outra lógica.” (p. 87)

É isto! É poesia! São palavras belas, são borboletas!

A certa altura, JLP escreve “Sorrir foi a lição mais importante.” Eu sorri bastante.





03 novembro, 2023

Silêncio !

 

 © Lesley Oldaker | Talk to Me (2019) | Art Gallery UK


“Sou mestre na arte de falar em silêncio, passei minha vida toda conversando em silêncio e em silêncio acabei vivendo tragédias inteiras comigo mesmo."


Fiódor Dostoiévski,  in O Sonho de um Homem Ridículo