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26 julho, 2025

𝐏𝐚𝐥𝐨𝐦𝐚𝐫, de Italo Calvino




Autor: Italo Calvino
Título: Palomar
Tradutor: João Reis
N.º de páginas: 130
Editora: Planeta D'Agostini
Edição: 2001
Classificação: Contos 
N.º de Registo: (1223)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Palomar está dividido em três partes "As Férias de Palomar", "Palomar na Cidade" e "Os Silêncios de Palomar". Cada parte está subdividida em três capítulos que por sua vez apresentam 3 contos cada, reunindo, assim, 27 pequenos contos independentes que apenas têm em comum a personagem - o senhor Palomar.

Em todos os textos, o autor explora a relação entre o indivíduo e a natureza através da observação minuciosa e das reflexões do senhor Palomar.
Calvino aborda temas existenciais a partir de situações do dia-a-dia, com recurso à ironia transforma banalidades em momentos de profunda contemplação. Palomar, pela sua capacidade original de olhar para as coisas (uma onda, uma folha, um planeta, um seio, um insecto…), descobre significados pouco comuns, divaga sobre aspectos que o preocupam e tece reflexões sobre a vida, sobre as relações humanas e que acabam por conquistar o leitor.

“ O senhor Palomar decidiu que a sua principal actividade será sempre observar as coisas do lado de fora. (…) põe-se a observá-las quase sem dar por isso e o seu olhar começa a percorrer todos os detalhes e não consegue mais afastar-se delas. O senhor Palomar (…) redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece.” (p. 117)

Palomar exige do leitor uma efectiva atenção, não nos iludamos pelos textos curtos. Para captarmos a verdadeira essência da sua escrita, é importante entrar em estado de contemplação, como se fôssemos a personagem principal e usássemos um telescópio (para olhar as estrelas, por exemplo) ou uma lupa. É, igualmente, importante apreender o sentido do texto, retirar de cada observação o verdadeiro (auto) conhecimento, saber equilibrar racionalidade e sensibilidade. Isto só será possível se realizarmos uma leitura lenta e cuidada, se desfrutarmos das descrições detalhadas, se soubermos descortinar a ironia, as metáforas, os paradoxos, se estabelecermos comparações com o nosso mundo, se reflectirmos sobre as coisas observadas.
“Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? (…) Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar” (p. 118)
É um pequeno livro muito interessante. Que nos faz reflectir a sorrir.



06 junho, 2025

𝑰𝒏𝒇𝒐𝒓𝒕ú𝒏𝒊𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑼𝒎 𝑮𝒐𝒗𝒆𝒓𝒏𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒓ó𝒑𝒊𝒄𝒐𝒔, de Germano Almeida

 


Autor: Germano Almeida
Título: Infortúnios de um Governador nos Trópicos
N.º de páginas: 223
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3502)




OPINIÃO ⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio de Germano Almeida, apesar de ter alguns em lista de espera há já algum tempo.
Como surgiu a oportunidade de o ler para um clube de leitura, iniciei com algumas expectativas uma vez que o autor foi Prémio Camões, em 2018 e porque o enredo, o resgate de um caso de adultério passado no início do século XIX, na então colónia de Cabo Verde, me pareceu convincente

Partindo de um episódio verídico, como esclareceu, na introdução, o próprio autor, a narrativa desenvolve alguns aspectos históricos, políticos e sociais das ilhas de Cabo Verde e de Portugal e foca-se, sobretudo, na infidelidade da mulher e sobrinha do governador de Cabo Verde, o coronel João da Mata Chapuzet, com o jovem cirurgião, Domingos da Costa Lima.

A escrita muito descritiva lega-nos um retrato fiel da época, mas peca por excesso de repetição. A leitura que, no início, flui agradavelmente, torna-se depois monótona.
A mesma história de adultério e as consequências desse acto para os dois amantes, são-nos narradas por diversas personagens.
Confesso que a expectativa inicial ficou muito aquém do desejado. Saí desiludida desta leitura. Mas como não desisto à primeira, darei, certamente, uma outra oportunidade ao autor.




12 maio, 2025

𝑨 𝑸𝒖𝒆𝒅𝒂 𝒅𝒖𝒎 𝑨𝒏𝒋𝒐, de Camilo Castelo Branco

 


Autor: Camilo Castelo Branco
Título: A Queda dum Anjo
N.º de páginas: 175
Editora: Aletheia / Expresso
Edição: Julho 2016
Classificação: Novela
N.º de Registo: (3057)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Actualíssimo. A sátira dos costumes políticos e sociais em A Queda dum Anjo (1865) assenta como uma luva nos dias de hoje.

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, 44 anos, morgado transmontano conservador e de verve erudita é o protagonista. Amante dos clássicos ocupa o seu tempo mergulhado nos livros antiquíssimos, fechado na sua biblioteca. Eleito deputado pelo círculo de Miranda muda-se para Lisboa e deixa a sua mulher e prima, a morgada D. Teodora Barbuda de Figueiroa, na terra a cuidar dos bens.
O deputado conservador e defensor do passado, acérrimo crítico ao progresso e às inovações e modas causou grande impacto no Parlamento aquando da sua primeira intervenção. Aplaudido por uns e gozado por outros quer pela linguagem quer pela aparência, Calisto não se intimida, quando um deputado opositor “lhe observou o arcaísmo do traje” e outro gozou com “as botas aguçadas no bico”. Cala-os com sabedoria e ironia.
“Estas passagens, significativas do salgado espírito do provinciano, sobredoiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.” (p. 38)

Com o decorrer da sua estada em Lisboa, Calisto, o anjo, vai perder a pureza da vida provinciana e vai tornar-se homem, ao deixar-se moldar pelos costumes que imperam na capital. Vai envolver-se numa relação com uma viúva, ainda prima afastada, oriunda do Brasil e sucumbe aos vícios da modernidade, deixando-se corromper pelo luxo e pelo prazer.

A temática desta obra centra-se em dois aspectos, na minha opinião.
O primeiro, centra-se na vacuidade do discurso parlamentar e nos excessos linguísticos que evidenciam a presunção de certos deputados, como o Dr. Libório de Meireles. Este tipo de “retórica florida” que indispõem e irritam o protagonista, permite a Camilo Castelo Branco ridicularizar os deputados sem moral e sem talento. Vejamos como ele se serve de Calisto, que diz as coisas à moda velha, com correcção e saber, no parlamento:
“(…) Tomo a liberdade de perguntar a V. Ex.ª se as locuções repolhudas do ilustre colega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê de se me dizer onde se estudam tais farfalhices.” (p. 50).
O segundo, foca-se na fragilidade e imperfeição humanas em relação às ideologias individuais e colectivas, mas também à natureza dos casamentos sem amor e às paixões amorosas.
Calisto, o morgado que casara sem amor com uma prima, senhora escrupulosa nos seus deveres domésticos para com o marido e a casa, sempre combateu os seus impulsos de jovem refugiando-se, excessivamente, nas suas leituras. Porém, em Lisboa, acaba por ceder aos impulsos do coração. Conhece, finalmente, o amor e experimenta o ciúme e o desprezo.
“ (…) sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal.” (p. 73)
(Não é uma descrição maravilhosa? Eu adorei!)

O “anjo” desprezado, perde todas as suas convicções. Até que surge na sua vida a viúva Ifigénia, também ela mal-amada e desamparada.
É neste processo de transformação que a auto-ironia do autor se evidencia, facto que enriquece sobremaneira a narrativa.

Camilo Castelo Branco interpela amiúde o leitor e leva-o a uma identificação com o protagonista, tornando-o cúmplice. Com esta estratégia, pretende mostrar que a queda do anjo é, afinal, a libertação de Calisto, o caminho da felicidade e não da imoralidade.
“Na qualidade de anjo, Calisto sem dúvida seria mais feliz; mas na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vai concertando menos mal com a vida.” (p. 175).
Esta citação final revela evidentes marcas pessoais.

Concluo, reafirmando o meu deleite em ler CCB. Considero-o exímio na novela passional e na sátira social do Romantismo português.


09 maio, 2025

A Agulha bailarina e o Piano encantador

 

 Foto criada por IA - Copilot | 9.05.2025

                                                 

     Na sala de estar de uma casa acolhedora, iluminada pelo suave brilho do amanhecer, onde o aroma de chá perfuma o ar e as paredes guardam memórias de gerações, vive um piano imponente de madeira polida, com teclas de marfim brilhantes que já sentiram o toque de várias gerações. Ele é o coração do espaço, reverenciado pela sua capacidade de evocar emoções profundas.
     Ao lado, numa pequena cesta de costura repousa um bastidor com um bordado e uma agulha pequena, silenciosa e presa no tecido.
Nessa casa, as mãos que enfiam, movem e orientam a agulha são as mesmas que acariciam e dedilham as teclas de marfim. Mãos finas, alegres e cheirosas. As mãos de Maria Eduarda, a senhora da casa.
     A agulha e o piano gostam delas, sentem-se embevecidos perante tanta agilidade e segurança.
     Porém, certo dia, ambos pressentem um nervosismo e uma desmesurada insegurança: a agulha ora fica suspensa e pensativa, ora desliza e cai; o piano, maltratado, solta sons irregulares, desafinados. Esta desorientação prolonga-se no tempo, até que, uma manhã, a sala permanece sombria e    silenciosa.

    A agulha que sempre aspirou a ser bailarina ao som do piano que tanto admira e, secretamente, inveja, suspira de inacção e tédio. O piano, por sua vez, sente-se inútil e solitário. As suas teclas há muito que não ressoam melodias, que não são acariciadas, que não ouvem aplausos.

     Cansada de esperar, a agulha começa a treinar alguns passos de dança, em bicos de pé e devagarinho salta para a direita, salta para a esquerda, experimenta o plié, o tendu, o rond de jambe… Suspira e recomeça…
    Mas, certo dia, enquanto ensaia os seus passos sobre o pano de bordado esticado, ouve um gemido, um som mágico vindo do piano, ali mesmo ao seu lado. É uma melodia triste e encantadora. A agulha bailarina não resiste — salta para o chão de madeira e desliza até ele, atraída pela música como se fosse um apelo do destino.
    - Olá, senhor Piano, diz a agulha, numa voz fina, mas firme.
O piano surpreendido, suspende os seus sons, e responde gentilmente.
     - Olá, senhora Agulha. O que a traz até mim?
   - Ouvi a sua música e não resisti. Sabe, estou angustiada porque não tenho ninguém com quem conversar, nem nada para fazer. Farta de ficar presa, até já comecei a treinar uns passinhos de dança para ocupar o tempo e sacudir o corpo. Se não for assim, enlouqueço e …
   - Pois é… sinto o mesmo, atalhou o piano. Confesso que ouvi uma certa agitação e foi por esse motivo que comecei a mover as teclas.
  - Importa-se que suba até aí para conversarmos melhor? Pergunta a agulha.
  - Suba, suba. Terei todo o prazer em conhecê-la. Retorque o piano, esboçando um sorriso.
     A Agulha esguia e graciosa, não se faz rogada, sobe por aí acima e, sem resistir, começa imediatamente a esboçar uns passinhos hesitantes…
Nesse instante, Piano, o velho cavalheiro, sente algo que jamais havia sentido. A pequena Agulha, com a sua elegância delicada de movimentos leves, desliza sobre as suas teclas como uma estrela num céu escuro, transformando cada nota num afago melodioso, numa poesia viva.

    Nesse dia, entre uma Agulha e um Piano nasceu uma amizade improvável, assente na cumplicidade e no desejo de manter vivo o que, inexplicavelmente, se tornou sombrio.
  Dia após dia, semana após semana, a Agulha bailarina e o Piano encantador tornam-se inseparáveis. Ela dança, ele toca. Ele tange, ela baila. Ele afina-se, ela eleva-se. Juntos compõem harmonias que ecoam pela sala desabitada.

   E assim, juntos, emergem por entre as cortinas da solidão e do abandono, da dor e do luto. Juntos criam a mais bela dança, uma sinfonia de amor entre a música e o movimento. Um amor selado na melodia do tempo.




A agulha bailarina
improvisa e treina
voltas e reviravoltas

intensamente

O piano encantador
desafina a dor
nas teclas brancas e pretas

perdidamente

A agulha e o piano
juntos
tocam e volteiam
melodias breves e soltas

apaixonadamente


GR

23 abril, 2025

Ler a Liberdade


O grupo de leitores de Uma Casa Sem Livros esteve ontem reunido para falar de livros, de poesia, de música, de liberdade. As autoras em destaque foram Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Três Marias, três Mulheres que lutaram para que nós, mulheres, possamos, hoje, estar reunidas e falar livremente.

Apresentámos as nossa leituras, lemos excertos e poemas e ouvimos o poema "Segredo" cantado por Cristina Branco.
Os livros lidos pelos presentes e discutidos foram os seguintes:
As Novas Cartas Portuguesas, das três autoras;
A Desobediente - biografia de MTH, de Patrícia Reis
Minha Senhora de Mim; A Paixão Segundo Constança H.; As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta;
Maina Mendes e Lucialima, de Maria Velho da Costa;
De Noite, Maria Isabel Barreno.

Hoje, dia 23, celebramos O Dia Mundial do Livro, objecto que nos faculta conhecimento; daqui a dois dias celebraremos a Liberdade que nos permite falar, ver e ouvir.
Vivemos dias conturbados, estranhos, não podemos permitir o regresso a um país triste, vestido de cobardia e hipocrisia.

O verso de Sophia ressoa, outra vez, com urgência: "Vemos, ouvimos e lemos não podemos ignorar".

Viva a Leitura. Viva a Liberdade.

Nota: hoje, no auditório durante a representação de Uma peça de teatro, ouvi a actriz clamar que "A Liberdade é a cedilha da palavra esperança!" E eu gostei porque quero acreditar que assim é.



Segredo | Maria Teresa Horta

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar


22 abril, 2025

𝑳𝒖𝒄𝒊𝒂𝒍𝒊𝒎𝒂, de Maria Velho da Costa


Autora: Maria Velho da Costa
Título: Lucialima
N.º de páginas: 351
Editora: O Jornal
Edição (2.ª): Junho 1983
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3306)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Lucialima é um romance onde as múltiplas personagens nunca se cruzam. Maria Velho da Costa oferece-nos uma teia de histórias, que parecem contos, habitadas pelos traumas coloniais e pelos silêncios e receios vividos no período cinzento do antigo regime.

Num estilo muito próprio pela sua complexidade e inovação, MVC tece uma escrita com traços de erudição que desafia o leitor a ler devagar, com redobrada atenção, para poder descortinar o sentido do texto e captar a subtileza das diversas camadas de significação, presentes nas inúmeras referências. Nas seis partes que compõem o livro «Madrugada», «Manhã», «Meio-dia», «Três da Tarde», «Crepúsculo» e «Noite», a narrativa apresenta personagens distintas que, como já referi, nunca se encontram - Ramos, Mariana Amélia, Eugénia, Lima e Lúcia - e descreve episódios da vida de cada um, em sequências que se vão repetindo, de forma anacrónica. Ou seja, a narrativa inicia com «Madrugada», facilmente associada ao 25 de Abril, mas continua com outras referências de episódios anteriores.

A complexidade fragmentada e anacrónica, acrescida de uma fusão exímia do vivido e do imaginário, é susceptível de diversas interpretações e levam-me a intuir que a mensagem primordial é fazer coincidir as personagens num ambiente de isolamento, inacessível, mas desejado, numa oscilação ambígua entre o “eu” e os “outros”.
“ Eugénia levanta os olhos dos tecidos e suspira profundamente, do calor, do prazer de estar só. Só e em silêncio todo o dia. (…) A minha vida foi sempre pontuada por uma deliciosa relação com as pausas, o interior do silêncio dos interiores e das paisagens, a pulsação que as coisas tomam na ausência de outros, dos outros» (p. 271)

Maria Velho da Costa em Lucialima explora, na minha opinião, a solidão enquanto dimensão pessoal onde se reformulam opiniões, certezas e emoções a partir da memória (“Fiapos continuam a cruzar-se na memória”) e da imaginação, faculdades vitais que nos permitem (re)viver o passado e compreender o presente.




16 março, 2025

𝑹𝒆𝒈𝒓𝒆𝒔𝒔𝒐 𝒂 𝑪𝒂𝒔𝒂, de José Luís Peixoto

 


Autor: José Luís Peixoto
Título: Regresso a Casa
N.º de páginas: 110
Editora: Quetzal
Edição: Agosto 2020
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3255)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



José Luís Peixoto (JLP) abre este livro de poesia com um belíssimo apelo. “Repara na manhã que nos rodeia”, repara na vida, nas palavras, na poesia. É um Regresso a Casa, às “suas casas”, lugares de afecto, às suas memórias, aos seus livros, às suas viagens.
Este regresso à poesia, em tempos de confinamento, é um mergulho emotivo e sincero na realidade e na sua intimidade, mas também uma fuga ao isolamento (quase claustrofóbico), ao receio de um futuro incerto. 
JLP encontra no poema e nas palavras uma janela propícia à reflexão, às lembranças, à saudade, mas também à confirmação de uma identidade. A sua.
“O poema é como uma casa, tem paredes
e janelas, é habitado pelo presente.”

JLP transforma a escrita, a poesia em terapia, como uma protecção e um escape à realidade. Para quem viaja regularmente, torna-se necessariamente difícil ficar “preso” em casa. Nos seus poemas captamos os afectos pelas pessoas, pelos lugares; as emoções; o amor; os instantes que preenchem “quarenta e cinco anos”.

Hoje, ao lê-lo, e ao partilhar o seu diálogo introspectivo, revejo-me na “minha casa” fechada entre quatro paredes, nas aulas aos quadradinhos, de volta dos livros e focada nas múltiplas partilhas de solidariedade que, espontaneamente, surgiam na internet; assaltam-me certas memórias que também recuperei e rememoro as dúvidas e os receios, então, vividos diariamente. Porém, a leitura deste livro proporciona-me, sobretudo, um melhor conhecimento de JLP, quer através da dimensão intimista que nos lega em diversos poemas, quer através da revisitação de algumas das suas obras publicadas até então. Como exemplo, o poema intitulado “Morreste-me” é enternecedor. Não ficamos indiferentes às palavras sentidas e sensíveis, tal como não ficámos aquando da leitura do livro homónimo.

Recomendo muito este Regresso a Casa. Lê-se lindamente e “carrega ecos” de um tempo e de um autor que muito aprecio. E termino como iniciei. “Repara” na vida, na poesia! Lê poesia! Lê JLP.
“(…)
Estamos vivos, repara. Um livro
de poesia, como uma trégua secreta,
uma janela, como os teus olhos
a verem-me em silêncio, ou os meus
olhos a verem-te. Um livro de poesia, como um regresso a casa.”




15 março, 2025

A menina pequenina

 

 




Exercício de Escrita Criativa proposto por Carolina palminha no âmbito do grupo de leitoras da biblioteca municipal de Sines - Uma Casa sem Livros.

Premissas: 
 A partir de um início de texto (em itálico) desenvolver uma história criativa; ter em conta que uma página, ou página e meia seria suficiente. 


Sentei-me.
O comboio pôs-se em movimento.
Pelas janelas a paisagem deslizava em tonalidades de verdes, dourados, amarelos das azedas, vermelhos de papoilas e de quando em quando, o casario de um pequeno povoado mostrava-nos, pelo fumegar que saía das chaminés, que ali havia gente, havia vida, gargalhadas ou tristezas, calor ou frio…
No interior da carruagem o alegre riso de crianças e o tagarelar dos adultos.
Alguns farnéis foram retirados das cestas e um cheiro de fritos e frutos inundou-nos.
Tentei abstrair-me, abri o livro e recomecei a leitura.
Daí a instantes,
                  uma das crianças aproximou-se de mim, lentamente, com receio de me incomodar e estendeu a sua mãozinha com uma maçã bem vermelha e apetitosa.
- Toma - disse ela - também tens fome? Mal tive tempo de agradecer, saltou para o meu lado e metralhou-me com perguntas sobre o livro que estava a ler, de que falava, se tinha desenhos e, de seguida, com um sorriso maroto, pediu-me para lhe ler a história.
Quando, finalmente, me foi concedido um tempinho para falar, perguntei-lhe como se chamava e quantos aninhos tinha.
- Sou a Beatriz, mas todos me chamam Bia e tenho quatro anos, respondeu a despachar-me com os olhos bem abertos. E a história? Insistiu ela.
Expliquei-lhe que o livro que estava a ler não era para a idade dela e que não iria compreender a história, já que tratava de guerra. Li-lhe o título do livro – O Sangue dos Outros, indiquei-lhe o nome da autora (Simone de Beauvoir) e fiz-lhe um pequeno resumo para que ela percebesse que não era má vontade minha. Ela baixou tristemente a cabeça e pediu que lhe lesse então só um bocadinho que não falasse de guerra. É que eu gosto muito de histórias e não tenho livros em casa…
Pedi-lhe, então, que fechasse os olhos e que só os abrisse quando eu lhe dissesse.
Abri a mochila que levava comigo e retirei um livro. Como ia visitar a família e os sobrinhos, tinha uma vasta gama para lhes oferecer. Sabem, é que faço parte do clube das tias que só oferecem livros. Que falta de criatividade! Oferecer sempre o mesmo! Dir-me-ão.
Como dizia, retirei da mochila um livro. Um livro maravilhoso que sabia de antemão que iria agradar a esta menina ternurenta e carinhosa. E comecei a ler:
        Era uma vez uma menina muito, muito pequenina…
Assim, que ouviu a primeira frase, os seus olhos cresceram e o sorriso iluminou-se. Aquietou-se bem ao meu lado para acompanhar as páginas e observar as ilustrações.
No final da história com os olhinhos marejados de lágrimas, lançou os seus bracinhos ao meu pescoço e disse que tinha gostado muito da história da menina que não sabia chorar.
- Olha, não me disseste como se chama o livro, nem quem o escreveu – comentou ela, feliz a desenhar com os dedinhos o contorno dos desenhos.
- Tens razão, respondi. Chama-se “Os olhos GRANDES da menina pequenina”, foi escrito por Ondjaki, um escritor angolano, inventor de histórias bonitas, e foi ilustrado por Carla Dias.
Estávamos felizes, ela com o livro nas mãos, ainda a saborear a história, e eu por ter contentado uma criança com uma simples leitura.
De repente, o encanto termina. Somos sacudidas com o berro “Bia, anda já pr’aqui” de uma mãe insensível.
Bia olhou para mim, encolheu os ombros, e deixou-se ficar virando e revirando o livro. Disse-lhe que devia obedecer à mãe. Mas ela fingiu não me ouvir e acariciou a imagem da menina da capa do livro.
Do outro lado, a mãe insistia no pedido e nos berros. A Bia olhou-me, levantou-se, entregou-me o livro e fechou o sorriso.
Devolvi-lhe o olhar e o livro – Podes ficar com ele. É uma prenda minha. Em retorno, recebi o sorriso de uns olhos grandes.
Afinal, há no mundo muitas meninas pequeninas com olhos grandes. Ondjaki quando escreveu este livro, sabia que ia encontrar muitas. E eu, hoje, nesta viagem, encontrei a Bia. Uma menina pequenina, de olhos grandes que adora histórias.

GR



05 março, 2025

𝑵𝒂𝒔 𝑻𝒖𝒂𝒔 𝑴ã𝒐𝒔, de Inês Pedrosa

 


Autora: Inês Pedrosa
Título: Nas Tuas Mãos
N.º de páginas: 227
Editora: D. Quixote
Edição (7.ª): Março 2003
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1664)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Nas Tuas Mãos integra três partes, com dez textos cada, que nos confrontam com três vidas, três mulheres, três gerações. Três perspectivas autobiográficas – Jenny, a aristocrata; Camila, a fotojornalista e Natália, a arquitecta - que começam na década de trinta sob o regime conservador, opressivo, patriarcal e bafiento de Salazar e findam nos anos noventa.

Cada uma das partes é introduzida por uma epígrafe que exalta a força da amizade, do amor. Contudo, na minha opinião, é a terceira, de Vergílio Ferreira “Não sei fingir que amo pouco quando em mim ama tudo” que melhor colige os sentimentos e os comportamentos das três mulheres.

Jenny, mãe e avó, num diário intimista e confessional, em diálogo com o falecido marido, lega-nos os seus segredos de um casamento de fachada, a sua força para combater as traições do homem que ama, decepções de amizade, mudanças sociais. Camila selecciona dez fotografias para, a partir delas, recordar e nos descrever uma época turbulenta de desencontros e perdas, de perseguição e tortura da ditadura, de dedicação às lutas revolucionárias, de envolvimento, como repórter, na guerra colonial de Moçambique, na busca de uma terapia para a solidão e o luto. Mas é no ato obsessivo de fotografar que ela resgata a verdade, a sua verdade. Natália, concebida em Moçambique, personifica a actualidade e é nas cartas que escreveu à avó Jenny, que a vamos descobrir. Nelas, ela revela o seu sucesso profissional, o seu distanciamento com a mãe, a procura da sua história, do seu pai, o (des)encontro com o amor e, sobretudo, a sua admiração pela avó. Natália descobre-se e define-se através das vidas misteriosas e independentes das suas antecessoras. E acaba por concluir que, apesar de tudo, constituem três gerações de solidão que se continuam.

Numa escrita muito poética e comovente, a autora apresenta-nos três vozes que vagueiam desiludidas num mundo agitado e perdidas no campo amoroso; que partilham a extravagância da classe alta em Lisboa; o idealismo das lutas dos anos sessenta e a impaciência e o desalento da década de oitenta/noventa.

Gosto sobremaneira da voz de Jenny. É um discurso intimista que revela uma mulher de olhar triste e doce, que assiste à paixão do marido por Pedro; que apaixonada vive louca e dolorosamente só numa casa enorme. É a voz que silencia a homossexualidade do marido, inaceitável na época; que denuncia a sua intimidade, que reflecte sobre a sua longa vida que acaba melancolicamente num reconhecimento de desistência, de “desaparecimento dos sonhos.”

Para concluir, Nas Tuas Mãos é uma obra sobre o íntimo de três mulheres, mas também sobre a transformação de uma sociedade. Através do olhar de cada uma são-nos apresentados fragmentos de um país que vive uma crise de identidade cultural, social e política.




17 fevereiro, 2025

𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de Elie Wiesel

 


Autor: Elie Wiesel
Título: Noite
Tradutora: Paula Almeida
N.º de páginas: 133
Editora: D. Quixote
Edição: Agosto 2023
Classificação: Testemunho
N.º de Registo: (3663)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Vencedor do Prémio Nobel da Paz em 1986, Elie Wiesel, judeu e sobrevivente do Holocausto, desenvolveu um trabalho importante em defesa da dignidade e dos direitos humanos.
Noite é um testemunho importante (ao nível de um Se Isto É Um Homem, de Primo Levi) sobre os horrores praticados na segunda guerra mundial porque nos apresenta um relato aterrador e doloroso da sua experiência no gueto e nos campos de concentração.

Com apenas 15 anos, Elie e o pai, separados da mãe e das irmãs logo à chegada ao campo, à tão terrível selecção – “o perigo mais grave”, lutaram pela sobrevivência. Enfrentaram torturas, fome, frio, longas caminhadas, doenças e presenciaram a morte nas mais diversas formas.

Numa escrita crua, concisa e intensa, Elie, anos depois e por uma questão de sobrevivência mental, resgata as suas memórias por entender que é necessário preservá-las e revelá-las ao mundo. Elie denuncia detalhadamente a violência, a crueldade de episódios que viveu e testemunhou; revela a sua perda de inocência (“( …) daquela criança que descobre. De uma assentada, o mal absoluto.”) e de dignidade perante o horror e a banalidade do mal; descobre a sua revolta, a sua angústia por ter deixado de acreditar em Deus, “Não tinha negado a Sua existência, mas duvidada da Sua justiça absoluta.” (p. 59); denuncia a sua impotência perante a morte há muito anunciada de seu pai. É doloroso acompanhar a degradação das pessoas perante a necessidade de sobrevivência.

Por muito que já tenha lido sobre o assunto, sou sempre surpreendida com novos factos que me levam a reflectir sobre a crueldade do ser humano em relação ao outro e sobre a real dimensão da ferida legada às gerações seguintes.
Hoje, surge-nos, de novo, a ameaça dos valores humanos, democráticos. Urge analisar, debater e repensar alguns valores visíveis e crescentes nas nossas sociedades, como a xenofobia, a descriminação, a intolerância. Há uma dimensão do mal que se instala gratuitamente

Apesar, de ser uma obra dura porque muito realista, recomendo a sua leitura. Elie Wiesel dedicou parte da sua vida a lutar pelos direitos humanos e a manter viva a memória do Holocausto.
A certa altura (p. 48), perante o que ele e muitos apelidaram de “antecâmara do inferno”, ou seja, perante “tanta brutalidade bestial”, Elie, apertou a mão do pai e pensou:
“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada.
Nunca esquecerei aquele fumo.
Nunca esquecerei os pequeninos rostos das crianças cujos corpos eu vi transformarem-se em espirais sob um céu mudo.
Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé.
Nunca esquecerei aquele silêncio nocturno que me privou, para a eternidade, do desejo de viver.
Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas.
Nunca esquecerei, mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus.
Nunca.”

Por tudo isto, também nós, não podemos esquecer. Não podemos deixar que o passado se venha a repetir.



13 fevereiro, 2025

𝑶 𝑷𝒂𝒑𝒆𝒍 𝒅𝒆 𝑷𝒂𝒓𝒆𝒅𝒆 𝑨𝒎𝒂𝒓𝒆𝒍𝒐, de Charlotte Perkins Gilman

 


Autora: Charlotte Perkins Gilman
Título: O Papel de Parede Amarelo
Tradutora: Maria Amorim
N.º de páginas: 67
Editora: Húmus
Edição: Novembro 2020
Classificação: Conto
N.º de Registo: (3670)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐




O livro contém dois textos de Charlotte Perkins Gilman, o conto O Papel de Parede Amarelo; o depoimento Porque escrevi O Papel de Parede Amarelo e um posfácio Que Papel de Parede? (Uma leitura do conto), de Rita Santana dos Santos.

A ambiguidade e a ironia presentes na escrita deste conto elevam-no a um patamar superior.

Gilman descreve-nos de forma inquieta e inteligente a reacção de uma mulher (não lhe é atribuído nome) a quem foi diagnosticada “uma depressão nervosa temporária – uma pequena predisposição histérica.” (p.8) e que, por conselho e decisão do marido, médico prestigiado, vai passar um verão numa casa isolada no campo para beneficiar de um repouso total. Assim, encontra-se proibida de trabalhar, de desenvolver qualquer tipo de esforço físico ou intelectual. Ela, pessoalmente, discorda e considera “que um trabalho agradável, estimulante e sem rotinas” lhe faria muito bem. Mas como mulher que é, vai acatar as ordens do marido.
Assim, ao longo da sua estada naquela casa e sobretudo no quarto que tem um papel de parede amarelo horrível vamos acompanhando, num crescendo, a sensação de claustrofobia que a conduz à insanidade.
Toda a narrativa causa desconforto e ansiedade ao leitor.

Numa primeira abordagem, está premente a questão da saúde mental numa mulher que é forçada a fazer o que outros lhe recomendam e não o que ela gostaria efectivamente de fazer, como escrever, estar com amigos, lidar com o seu bebé.
Ora, é neste ponto que reside a questão essencial do conto. O facto de a personagem feminina estar “impedida” de pensar e de escrever, de ser ”obediente a um marido detentor de autoridade”, de ser desvalorizada e infantilizada, põe em relevo a condição de opressão das mulheres que, naquela época, viviam numa sociedade patriarcal e conservadora e que, inevitavelmente, lhes causava perturbações mentais.
Gilman através de uma metáfora fabulosa desmonta a perspectiva da “doente mental” que, como vítima passiva e isolada num quarto que “cheira a amarelo”, se vai aproximando de um final inesperado. É perturbador e intrigante acompanhar as suas descrições, tão sensoriais, do papel amarelo – as imagens que visualiza e fantasia, os cheiros que a perseguem, as movimentações das “mulheres” que compõem o padrão.

Afinal, esta luta mental da protagonista que descreve todo um processo de libertação, por via das mulheres que saem do papel, representa, metaforicamente, a luta travada pelas mulheres pelos seus direitos, pela sua liberdade.
Apesar de ser um texto curto, acaba por suscitar no leitor inúmeras provocações e leva-o a reflectir sobre a questão tantas vezes repetida ao longo do conto “mas o que é que se pode fazer?” . Questão que se aplica não só nesta situação, mas em tantas outras que privam o ser humano da sua essência primordial - a liberdade.

Resta-me referir que Gilman afirmou no seu depoimento, que “o conto não pretendia enlouquecer as pessoas, mas evitar que enlouquecessem, e funcionou.” (p. 41). Se tiverem curiosidade em saber como, convido-vos a ler os dois textos.


12 fevereiro, 2025

𝑶 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒐𝒓, de Bernhard Schlink

 


Autor: Bernhard Schlink
Título: O Leitor
Tradutora: Fátima Freire de Andrade
N.º de páginas:144
Editora: Edições ASA
Edição(7.ª): Maio 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2600)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Decidi reler O Leitor. A primeira leitura ocorreu em 2010 e já não tinha memória de determinados factos. Além do mais, gosto de voltar a livros que me marcaram para deles retirar novas compreensões e ensinamentos.

O enredo situa-se nos anos de 1960 e aborda a temática do Holocausto, pondo em confronto duas gerações, através do relacionamento íntimo entre Hanna (36 anos) e Michael (15 anos). A geração que viveu o Nacional-socialismo de Hitler e a geração da pós-segunda guerra mundial, ou seja, a dificuldade dos mais jovens compreenderem determinados comportamentos dos seus pais, dos seus antepassados.
“Todos condenámos os nossos pais à vergonha eterna, ainda que só os pudéssemos acusar de terem tolerado depois de 1945, a companhia dos assassinos.” (p. 62)
O tema é controverso, pelo que o autor aborda-o com subtileza e atribui a Michael Berg a função de se questionar sobre esse passado doloroso e criminoso. Não há respostas para as perplexidades apresentadas, nem tão pouco às múltiplas questões colocadas. A subtileza perpassa, ainda, pela ausência de certas memórias e pela presença de imagens “que ficaram”.

O Leitor levanta várias possibilidades de leituras. Todas perturbadoras. Pretenderá o autor, através das atrocidades cometidas, neste caso, pelas guardas dos campos de concentração, demonstrar a crueldade de um passado que não se pode repetir? Pretenderá, através do relacionamento amoroso entre Michael e Hanna, desvanecer o passado que as gerações actuais não viveram? Pretenderá gerar compaixão e empatia por Anna? Pretenderá, pelo viés do julgamento, absolver as acções cometidas por determinados agentes? Pretenderá justificar o “embotamento” dos sobreviventes, dos criminosos e de toda uma sociedade que se acomodou à situação do pós-guerra? Pretenderá desobrigar a geração de Michael ainda vítima das fissuras do Holocausto? (A mesma geração do autor).

Mas para além destas, e de outras possíveis, reflexões, O Leitor oferece-nos a possibilidade de entender a leitura como um prazer e uma fonte de conhecimento e humanização. Ao atribuir a Hanna a característica de analfabeta, o autor serve-se, de novo, dos pensamentos e das dúvidas de Michael para demonstrar que se ela soubesse ler teria mais consciência dos seus actos e poderia ter sido uma pessoa diferente, talvez mais sensível.
“Mas seria possível que a vergonha de não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento de Hanna durante o julgamento e no campo de concentração?” (p. 87)

Em boa hora, decidi reler este livro. Coloca questões pertinentes que avivam memórias e estabelecem pontes entre o passado, o presente e o futuro. Num presente muito preocupante, com a leitura deste livro, reforço a convicção de que a leitura e a cultura combatem a ignorância e geram uma consciência social mais aguda e crítica.