29 dezembro, 2021

𝑼𝒎𝒂 𝑽𝒆𝒍𝒉𝒂 𝒆 𝒐 𝒔𝒆𝒖 𝑮𝒂𝒕𝒐 𝒆 𝒂 𝑯𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝒅𝒐𝒊𝒔 𝒄ã𝒆𝒔, de Doris Lessing

 



Autores: Doris Lessing
Título: Uma Velha e o seu Gato e a História de dois cães
Tradutora: Ana Falcão Bastos
N.º de páginas: 94
Editora: Bertrand Editora
Edição: Abril 2016
Classificação: Contos
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Dois pequenos contos devastadores e que muito significam. Doris Lessing escreve o que lhe vai na alma, livremente, sem se preocupar com o politicamente correcto. O tema predominante nos dois contos é a liberdade. A liberdade dos que rejeitam uma sociedade preconceituosa, uma sociedade normalizadora.
Num estilo directo, cru, por vezes cruel, mas também comovente, brota, no primeiro conto, uma crítica manifesta ao abandono dos idosos pelos filhos, facilmente esquecidos ou despachados para um lar e, no segundo, uma crítica mais subtil às opções, preferências e formas de ser e de viver.
Na conquista pela liberdade quer de Hetty, quer do gato Tibby, quer ainda dos dois cães, Jock e Bill, há lutas tremendas de subsistência, mas há também manifestações de afecto e de gratidão dos animais para com os seus donos. Nas duas narrativas registam-se momentos de extrema dureza, crueldade até, mas também de ternura. Hetty e Tibby tornam-se ambos sem-abrigo e vadios, mas livres. Hetty recusou todas as démarches do estado para a fecharem num lar, preferiu viver na errância, na companhia do seu gato leal que a aquecia do frio e caçava pombos para se alimentarem.
Se na primeira narrativa a opção de viver em liberdade é clara, na segunda, ainda o é mais. Dois jovens irmãos, a mando dos pais, tentam treinar e domesticar dois cães, mas não conseguem. E a crítica que subjaz neste conto é que devemos aceitar as pessoas, no caso, os animais sem alterar as suas características, a sua forma de ser. A liberdade é mais importante do que qualquer redução à domesticidade.
“O meu pai queixava-se de que os cães não obedeciam a ninguém. Exigia treino sério e sem tréguas. O meu irmão e eu ficávamos a ver a nossa mãe a afagar Jock e a ralhar com Bill e estabelecemos um acordo tácito. Partíamos para o Grande Vlei, mas, uma vez lá chegados, andávamos de um charco para o outro, enquanto os cães faziam o que lhes apetecia e descobriam as alegrias da liberdade.” (p. 73)

Ora, nos dois contos o final não é nada simpático, é triste e devastador, Dir-se-á que é o preço da liberdade! Mas será que tem de ser sempre assim? Fica a pergunta em jeito de reflexão.



27 dezembro, 2021

𝑨𝒔 𝑴𝒂𝒊𝒔 𝑩𝒆𝒍𝒂𝒔 𝑯𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂𝒔 𝒅𝒆 𝑵𝒂𝒕𝒂𝒍, de vários autores

 


Autores: Vários
Título: As mais Belas Histórias de Natal
N.º de páginas: 180
Editora: Vega
Edição (2.ª): 2007
Classificação: Contos
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Uma magnífica recolha de doze contos de Natal escritos por autores conceituados como Aquilino Ribeiro, Charles Dickens, Tolstoi, François Mauriac e Selma Lagerlöf, entre outros.
Todos os contos apresentam ensinamentos e incentivam à bondade à generosidade, à entre-ajuda e à esperança, sem todavia esquecer a crítica à avareza, à inveja, à desunião, ao poder.
Gosto de (re)ler estas histórias, transportam-me para a minha infância, quando ia com os meus amigos apanhar o musgo e colher o azevinho para o presépio, quando esperava pelas prendinhas que o Menino Jesus (ainda acreditava) deixava nos sapatinhos colocados junto à lareira e que só abríamos no dia 25. Não havia Pai Natal, não havia consumismo desenfreado.
Sendo propícia esta época para olharmos para os outros com mais atenção e carinho, não devemos, contudo, descurar estes cuidados ao longo do ano, sobretudo para com as pessoas que nos são mais próximas, já que afinal, são estes os valores que nos são transmitidos pelas personagens que habitam estas e outras histórias natalícias. E se aplicarmos o aforismo “Natal é quando o homem quiser” que seja, então, ao longo do ano e não somente nestes dias que se transformam em euforia.

26 dezembro, 2021

𝑪𝒐𝒎𝒐 𝒂 Á𝒈𝒖𝒂 𝒒𝒖𝒆 𝑪𝒐𝒓𝒓𝒆, de Marguerite Yourcenar



Autora: Marguerite Yourcenar 
Título: Como a Água que Corre 
N.º de páginas: 188
Editora: Abril/ControlJornal
Edição:  Maio 2000
Classificação: Novelas
N.º de Registo: (1104)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Como a Água que Corre contém três novelas, escritas em períodos diferentes e um posfácio para cada uma delas. Nestes, a autora fornece informações importantes que elucidam o leitor sobre determinados aspectos que motivaram a sua escrita e as subsequentes alterações. Por exemplo, ficámos sabedores de que “Anna, Soror...”, a primeira novela” é uma obra de juventude e que inicialmente foi escrita para ser um romance, um longo romance. Todas as novelas foram várias vezes alteradas e reeditadas. “Outros pormenores houve, bem entendido, que foram omitidos, acrescentados ou mudados.” (p. 185)
A autora esclarece que o título atribuído a esta recolha representa a imagem de “um rio, ou por vezes da torrente, ora lamacenta ora límpida, que é a vida.” (p. 165) Eu acrescentaria que o título representa também a mestria da sua escrita, do seu estilo. As palavras fluem naturalmente ao ritmo do rio, do tempo, da vida e o leitor fica rendido à beleza da narrativa.

Gostei sobretudo da segunda novela, “Um Homem Obscuro”, que nos apresenta as aventuras de Natanael, um rapaz simples, de índole transparente, tal como a água que corre, que se dá bem com qualquer pessoa apesar da existência de diferenças: “Apesar da diferença de cor, entendera-se bem com o mestiço; apesar da religião, que ela aliás não praticava, fora Sarai uma mulher como outra qualquer, também havia ladras baptizadas, (…)” (p. 132) Natanael é daqueles que pensam, que questionam, e aproveitam as ocasiões boas que a vida lhes apresenta, mantendo sempre a sua independência.

A terceira novela, mais curta, “Uma Bela Manhã” dá continuidade à segunda, e narra uma parte da vida de Lázaro, filho de Natanael e da prostituta Sarai. O pequeno Lázaro, que nunca conheceu seu pai, “não tinha limites, e bem podia sorrir amigavelmente ao seu próprio reflexo…”(p. 155) partiu com uma companhia de teatro, livre, para realizar um sonho “nessa sensação de ser tantas pessoas ao mesmo tempo, a viverem tantas aventuras” (p. 155) Nisso, sem o saber, era igual ao pai.

Para concluir, e citando de novo a autora que no segundo posfácio refere, “Toda a obra literária é assim feita de um misto de visão, lembrança e acto, de noções e de informações recebidas, no decorrer de uma vida, através da palavra ou dos livros, e de resquícios da nossa própria existência.” (p. 180). Só posso acrescentar que esta recolha de Marguerite Yourcenar espelha maravilhosamente a sua forma de encarar a obra literária. Nela, tudo flui como a água que corre e a obra-prima emerge e transporta o leitor na sua corrente ora calma ora impetuosa.


25 dezembro, 2021

𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆 𝒅𝒆 𝑵𝒂𝒕𝒂𝒍, de Sophia de Mello Breyner Andresen


Autora: Sophia de Mello Breyner Andresen
Título: A Noite de Natal
Ilustrador: Jorge Nesbitt
N.º de páginas: 34
Editora: Porto Editora
Edição 5.ª: Novembro 2013
Classificação: Conto
N.º de Registo: (3332)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A Noite de Natal é um dos livros para (re)ler sempre com prazer. É um conto que nos transporta para o verdadeiro significado do Natal, isto é, para os valores da amizade, do amor e da partilha. Gestos simples que por vezes, tão rapidamente, esquecemos.
Gosto especialmente de Sophia e os seus contos legam-nos um mundo encantado e maravilhoso.


 

Natal, Fernando Pessoa


                                           



«Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só, e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!»


Fernando Pessoa

21 dezembro, 2021

𝑳𝒆 𝑷𝒂𝒚𝒔 𝒅𝒆𝒔 𝑨𝒖𝒕𝒓𝒆𝒔, Leïla Slimani



Autora: Leïla Slimani
Título: Le Pays des Autres
N.º de páginas: 407
Editora: Gallimard (Folio)
Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3299)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Le Pays des Autres é o primeiro livro de uma prevista trilogia, sustentada numa história familiar (a da própria autora) que tem como pano de fundo a independência de Marrocos, de 1944 a 1955.

O livro narra a história de Mathilde, uma jovem francesa, oriunda da Alsácia, que se apaixona, em 1944, pelo oficial Amine Belhaj, um marroquino que combatia no exército colonial francês na Segunda Guerra Mundial. No final da guerra, o jovem casal vai viver para Meknes, em Marrocos, uma colónia francesa.
Mathilde cedo percebe que este não é o seu mundo. Sente-se sufocada pela aridez da terra e do clima, pelas dificuldades em construir e manter uma harmonia familiar, em aceitar os usos e costumes religiosos e culturais, sobretudo em relação à mulher. Vista como inimiga pelos nativos porque é francesa e como uma selvagem pelos colonos franceses porque casou com um marroquino, é assim, rejeitada e criticada por todos. É, por isso, natural que se instale no seio familiar um confronto constante e doloroso, onde os sonhos são constantemente adiados. Este confronto, já por si, difícil de gerir, vai intensificar-se com a situação política, nas lutas de libertação que levarão o país à independência do protetorado, provocando conflitos entre marroquinos e franceses. Mathilde e Amine vão viver intensamente este conflito, vão tentar sobreviver à constante e ambígua luta interior entre amor e rejeição, submissão e emancipação, respeito pela identidade do outro e fidelidade às tradições culturais e religiosas.

O enredo deste livro entranha-se no leitor e permanece muito para além da última página. A escrita de Slimani, sem deixar de questionar e de narrar a verdade, revela uma grande humanidade e subtileza na caracterização das personagens, na descrição dos actos de violência, na submissão da mulher ao poder do homem. O título representa os dois lados desta ambiguidade porque representa o país que não é certamente o de Mathilde, mas também o país que não é dos marroquinos porque se encontra ocupado pelos franceses.



16 dezembro, 2021

𝑨 𝑫𝒆𝒍𝒊𝒄𝒂𝒅𝒆𝒛𝒂, David Foenkinos


Autor: David Foenkinos
Tradutora: Catarina Almeida
Título: A Delicadeza
N.º de páginas: 227
Editora: Presença
Edição: Agosto 2011
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3248)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É o primeiro livro que leio deste autor e fiquei seduzida. Compreendo agora por que foi selecionado para tantos prémios da rentrée literária em França.
É um livro desconcertante, divertido e delicado. Sim, é um livro que trata dos assuntos sentimentais, sejam eles dolorosos ou amorosos com uma tremenda delicadeza e naturalidade.
O enredo revela-nos uma história de amor, simples mas nada convencional. E é aqui que reside o encanto deste romance. Nathalie, a protagonista vive sete anos de um amor perfeito até que uma tragédia rompe essa felicidade. Entra em depressão profunda, perdida num luto que parece não ter fim, até que o destino lhe apresenta uma inusitada oportunidade,
É um beijo dado num momento de devaneio, sem sentido e completamente inesperado que vai espoletar uma improvável relação. Contra todas as expectativas é com Markus que Nathalie irá ultrapassar a dor e dar um novo rumo à sua vida. Markus é um homem pouco atractivo, tímido, com um fraco historial junto do sexo oposto, mas com um enorme sentido de humor e delicado no trato com os colegas e, naturalmente, com Nathalie.
Um beijo vai provocar um turbilhão de sentimentos desconexos nas duas personagens e tudo vai mudar.
Gostei muito da forma como Foenkinos nos conta a história, como nos descreve com exactidão, simplicidade e delicadeza o que cada personagem sente e pensa.
“Nathalie pensara que esse beijo fora ditado pelo acaso de uma pulsão. Talvez não. Talvez o acaso não existisse: Talvez tudo aquilo não tivesse sido senão o progresso inconsciente de uma intuição. O pressentimento de que estaria bem com aquele homem. (…)
- Posso beijá-la? – perguntou ele.
- Não sei… parece-me que estou a chocar uma constipação.
-Não tem importância. Estou disposto a ficar doente consigo. Posso beijá-la?
Nathalie gostara tanto que ele lhe tivesse perguntado. Era uma forma de delicadeza. Cada momento passado com Markus desviava-se da normalidade.” (p. 150)

A estrutura sai um pouco fora da caixa, na medida em que após cada capítulo surge um pequeno texto, uma entrada de dicionário, uma receita, um pensamento, enfim um complemento, sem nada alterar ou acrescentar ao enredo, mas que atribui certo encanto. Eis um exemplo:
“Pensamento de um filósofo polaco
Há pessoas formidáveis
que conhecemos no momento errado.
E há pessoas que são formidáveis
porque as conhecemos no momento certo.” (p. 94)

É um livro diferente para ler e para oferecer. É um livro que enaltece pequenos gestos, palavras sinceras, sentidas e que mostra a necessidade de aceitar quem verdadeiramente nos estima e nos respeita. É um livro de descoberta do outro e de superação da dor.


13 dezembro, 2021

𝑶𝒓𝒈𝒖𝒍𝒉𝒐 𝒆 𝑷𝒓𝒆𝒄𝒐𝒏𝒄𝒆𝒊𝒕𝒐, de Jane Austen

 

Autor: Jane Austen
Tradutora: Ângela Miranda Cardoso
Título: Orgulho e Preconceito
N.º de páginas: 396
Editora: Presença
Edição: Fevereiro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Neste clássico de literatura inglesa, a autora retrata a sociedade da época, início do século XIX, de forma brilhante. Pela caracterização das diversas personagens percebemos o quanto as relações humanas são interesseiras e promíscuas, muitas vezes, encobertas pelo estatuto social. Fica desde logo claríssima a ideia de que para que um casamento se realize (e penso que esta é um tema predominante na obra) não importa o amor, mas sim o valor do dote. Os valores morais como a hipocrisia, os ciúmes, a ambição e a ignorância tendem a prevalecer sobre a inteligência, a honestidade, a sinceridade e o amor verdadeiro.
Ao longo da narrativa, fica assim patente a importância dada ao dinheiro bem como o orgulho e o preconceito da maioria das personagens em relação à origem das famílias.
É na descrição de personagens psicológica e emocionalmente fortes que reside a beleza da escrita de Jane Austen. Num tom sarcástico a autora desafia os padrões da época e é em Elizabeth e em Mr Darcy, personagens modeladas, isto é, que evoluem ao longo da narrativa, que se centram esses desafios. Elizabeth revela uma personalidade forte e avançada para o seu tempo. Ela carrega em si a alteração necessária às convenções sociais e culturais da época. Não receia contrariar o papel destinado à mulher, não se subjuga às normas, não aceita o casamento por conveniência, critica abertamente as atitudes, e as decisões dos seus familiares e, mais importante, acaba por assumir os seus próprios erros e de os corrigir.
O mesmo se passou com Mr. Darcy que, de início, justifica a sua arrogância devido à riqueza e privilégio social que detém, mas que por amor, se modifica e decide casar uma uma mulher humilde, de estatuto inferior, contrariando o estabelecido na família e, por consequência, na época.
Assim, entre os dois protagonistas, a relação inicial pautada pela indiferença, arrogância e preconceito acaba por evoluir e transformar-se numa relação amorosa, verdadeira e de entendimento, tendo prevalecido a inteligência e a vontade própria de cada um.
Podemos afirmar que Jane Austen conseguiu demonstrar, protagonizando momentos divertidos e caricatos, que é possível alterar as mentalidades e corrigir comportamentos. Penso que o “Ridendo castigat mores”, de Gil Vicente se aplica aqui na perfeição.


12 dezembro, 2021

𝑺𝒐𝒃𝒓𝒆 𝒂 𝑳𝒆𝒊𝒕𝒖𝒓𝒂, de Marcel Proust


Autor: Marcel Proust
Tradutor: Miguel Serras Pereira
Título: Sobre a Leitura
N.º de páginas: 52
Editora: Relógio d'Água
Edição: Novembro 2020
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3309)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Este pequeno ensaio sobre a leitura foi escrito pela primeira vez como prefácio ao livro “O Sésamo e os Lírios (Sésame et ses Lys), de John Ruskin, tendo no entanto, mais tarde, sido editado de forma independente e é hoje considerado um clássico sobre o prazer de ler.
Proust inicia o seu texto demonstrando que a leitura lega ao leitor imagens “dos lugares e dos dias” em que são feitas. Ele descreve episódios da sua infância sobre os seus hábitos de leitura que ficaram amplamente marcados na sua memória. Ele apreciava o silêncio e o isolamento para usufruir do prazer que a leitura lhe proporcionava.
O autor considera o acto de ler como uma terapia, “uma espécie de disciplina curativa…”
“ Enquanto a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas nos abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas nas quais não teríamos sabido penetrar, é salutar o seu papel na nossa vida. (…) como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros, como um mel completamente preparado pelos outros e que só temos de nos dar ao trabalho de recolher nas prateleiras das estantes e de saborear em seguida passivamente num perfeito repouso de corpo e de espírito.” (p. 30)

Proust prefere a amizade que obtém dos livros em detrimento da amizade humana:
“Sem dúvida, a amizade, a amizade que tem que ver com os indivíduos, é uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de se dirigir a um morto, a um ausente, lhe alguma coisa de desinteressado, de quase tocante. (…) Com os livros, não há amabilidade. Esses amigos, se passamos com eles o serão, é porque temos verdadeiramente vontade de o fazer. A eles, pelo menos, muitas vezes só contrariados os deixamos. ” (p.36)

Em suma, a leitura, como acto solitário e silencioso, permite ao leitor intuir, decifrar o pensamento do outro, educar o seu espírito, “sair de si-mesmo, viajar” e adquirir a capacidade de pensar e de criar.
“Ora, esse impulso que o espírito preguiçoso não pode encontrar em si mesmo, e que tem de lhe chegar de outrem, é claro que terá de recebê-lo no interior da solidão fora da qual, como vimos, não pode produzir-se essa atividade criadora que se trata precisamente de nele ressuscitar. Da pura solidão o espírito preguiçoso nada poderia tirar, uma vez que é incapaz de pôr ele mesmo em movimento a sua atividade criadora. (…) O que é necessário pois, é uma intervenção que, vinda embora de um outro, se produza no fundo de nós mesmos; é sobretudo o impulso de um outro espírito, mas recebido no interior da solidão. (…) A única disciplina que poderá exercer uma influência favorável sobre tais espíritos é, portanto, a leitura…mas, aqui, ainda, a leitura não age senão à maneira de uma incitação que em nada pode substituir-se à nossa atividade pessoal…” (p. 29)

É um pequeno livro maravilhoso.

07 dezembro, 2021

𝑴𝒆𝒔 𝑨𝒑𝒑𝒓𝒆𝒏𝒕𝒊𝒔𝒔𝒂𝒈𝒆𝒔, de Colette

 

Autor: Colette
Título: Mes Apprentissages
N.º de páginas: 213
Editora: Ferenczi
Edição: 1936
Classificação: Memórias
N.º de Registo: (67)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em 1909, aquando do seu divórcio, Colette referiu que "Só se morre do primeiro homem". Neste livro de memórias escrito em 1936, percebemos que passados vinte e cinco anos dessa tomada de decisão, a ferida ainda não cicatrizou. Num testemunho directo, porém seleccionado (apenas nos revela o que bem entende ou se lembra), ela regressa aos seus primeiros anos de jovem esposa, relata alguns factos da sua família, sobretudo da mãe que sempre a apoiou e a quem ela escondeu o seu fracassado casamento, evoca personalidades do mundo jornalístico e literário com o qual conviveu desde muito cedo, e centra-se, acima de tudo, na acusação contra o seu marido Willy.

Colette descreve a sua vida de casada com um homem mais velho e infiel, que a trancava no quarto para a obrigar a escrever a famosa obra Claudine (4 volumes) que ele editou como sendo de sua autoria. Era ele que tomava todas as decisões financeiras e domésticas, e ela sujeitava-se a tudo e obedecia.

Colette não consegue explicar a sua passividade e obediência ao marido. Justifica-a pela personalidade dominante deste, pelo medo de ficar sozinha e de confessar o seu fracasso. Foram treze anos de submissão, de humilhação, de incertezas e de desamor numa cidade que ela odiava, apesar dos encontros intelectuais que mantinha graças aos conhecimentos do marido, acabando por manter uma vida mundana, já que o casal frequentava os melhores salões parisienses. A hipocrisia e os falsos valores da alta sociedade reinavam na época.
O facto de ele a ter obrigado a escrever, lesando-a sobre os direitos de autor, acabou por lhe proporcionar, mais tarde, uma carreira literária e permitiu-lhe fomentar amizades fiéis que permaneceram ao longo da sua vida e a ajudaram a sair do logro.

Numa escrita inteligente e sincera, a autora acaba por ajustar contas com o marido, revelando a todos o seu verdadeiro carácter, mas também assume a sua própria fragilidade e, zangada, confessa que foi ele que acabou por deixá-la, antes que ela o fizesse. No final, e sem rancor, refere que “aprendeu a viver”.      



03 dezembro, 2021

𝑨 𝒗𝒊𝒂𝒈𝒆𝒎 𝒅𝒐 𝑬𝒍𝒆𝒇𝒂𝒏𝒕𝒆, de José Saramago

 

Autor: José Saramago
Título: A Viagem do Elefante
N.º de páginas: 258
Editora: Caminho
Edição: Outubro 2008
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2481)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É uma releitura e como todas as releituras que faço, fico sempre mais satisfeita. A minha disponibilidade para a narrativa, visto que já conheço a trama, é mais centrada nos pormenores quer da escrita quer do carácter das personagens quer ainda das descrições.

O livro narra a viagem de um elefante, Salomão, vindo da Índia, mas que estava há dois anos em Lisboa e que foi oferecido pelo rei D. João III ao arquiduque da Áustria Maximiliano II (seu primo). É, portanto, essa viagem de Lisboa a Viena que o elefante e o seu cornaca, Subhro, terão de fazer acompanhados por um séquito bem específico e que garantirá que tudo corra como planeado.
Segundo o próprio autor, este livro é uma metáfora da vida humana. O facto de Saramago ter estado doente aquando da sua escrita (que esteve em risco de ser concluído) pode ter tido alguma influência na descrição da “viagem” do elefante que afinal acaba por ter o mesmo fim que a do ser humano, isto é, a morte, porque todos morremos, de forma diferente, é um facto, mas no fundo a passagem pela vida é isso mesmo e “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (epígrafe do livro).
A escrita é poética, fácil, prazerosa, repleta de considerações bem-humoradas sobre os comportamentos humanos e a sociedade da época (século XVI). Apesar de ser um livro com uma temática mais leve, a ironia e o sentido crítico de Saramago mantêm-se. A longa viagem mais não é do que a sua visão atenta sobre o homem, os representantes da igreja, a burocracia da administração, do Estado, a corrupção, a ignorância mas também a simplicidade e a sabedoria do povo.
“… uma boa coisa que a ignorância tem é defender-nos dos falsos saberes” (p.121) e “ … não há dúvida de que as melhores lições nos vêm sempre das pessoas simples.” (p. 144)
A genialidade da escrita e o sarcasmo sempre presentes são razões muito válidas para continuar a ler Saramago. Um dos meus autores preferidos.