27 fevereiro, 2022

Slava Ukraini

 


@carolinabranco


Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.


PRIMO LEVI, Se isto é um homem (1947)

19 fevereiro, 2022

𝑯𝒆𝒊-𝒅𝒆 𝒂𝒎𝒂𝒓-𝒕𝒆 𝒎𝒂𝒊𝒔, de Tiago Salazar

 



Autor: Tiago Salazar
Título: Hei-de amar-te mais
N.º de páginas: 131
Editora: Oficina do Livro
Edição: Maio 2013
Classificação: Diário
N.º de Registo: (3066)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Hei-de amar-te mais é um diário íntimo, onde o autor revela a sua paixão pela mulher, Cristina, pelos filhos, pela vida. É um belíssimo livro que partilha com o leitor os registos de um viajante ao longo de seis anos, sobre momentos importantes da sua vida, sobre a partida e o desejo de regresso, sobre a ausência e essencialmente sobre o seu relacionamento com a mulher, os filhos e os seus escritores maiores, como Clarice Lispector, Pablo Neruda, Henry Miller, Céline, entre outros.
É um livro de reflexões, de poemas, de fragmentos, de memórias. É uma autêntica declaração de amor. Uma ode ao amor.
É nas cartas endereçadas à mulher pelo autor que o leitor se deixa inebriar e se perde em divagações porque o amor descrito é belo, sincero, verdadeiro. Numa escrita sensível e apaixonada o autor revela um amor renovado diariamente, mesmo que à distância, alimentado por palavras e actos, celebrado como forma de vida intensa
“ Tento parar o olhar na maior beleza da praia, a luz do entardecer, mas o olhar nunca se detém como a luz dispersa nas sombras das enseadas. A beleza maior não está aqui derramada. A beleza, o amor, é o que somos quando a maré se aquieta e todos os fundos e meandros se revelam. Quando dois amantes afastados no acaso do mundo pensam amorosamente e infinitamente um no outro. Beijam-se e amam-se de memória no preciso instante em que a onda lânguida recolhe do mar como um longo abraço.” (p. 33)



15 fevereiro, 2022

𝑬𝒎 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒆𝒏𝒂 – 𝒖𝒎𝒂 𝒉𝒊𝒔𝒕ó𝒓𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝒂𝒎𝒐𝒓, de José Gardeazabal



Autor: José Gardeazabal
Título: Quarentena - Uma História de Amor
N.º de páginas: 205
Editora: Companhia das Letras
Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3337)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Livro desafiador porque nem tudo está escrito. É preciso ler nas entrelinhas para captar toda a mensagem. Num tempo de confinamento obrigatório, a mente entra em ebulição. Tudo é revisto, tudo é analisado ao pormenor, tudo é questionado, tudo… mesmo o amor, sobretudo o fim de um amor.

Em Quarentena – uma história de amor, um casal que decidiu separar-se é obrigado a ficar em casa confinado. Ora, ficar em quarentena exige proximidade, partilha de espaços, vida em comum…
“Tínhamos decidido que um de nós faria a mala e abandonaria o apartamento. (…) Penduraram-nos um selo do lado de fora da porta.
Um Casal
0 Filhos
(…)
A nossa relação desapareceu pelo efeito preguiçoso do tempo – e agora isto: dão-nos mais tempo, os dois trancados no mesmo espaço.” (pp. 15 e 16)
A partir daqui, ao longo de 40 dias, temos o narrador que nos relata diariamente a partilha do espaço fechado com Mariana, a (ex)companheira, os seus pensamentos, os seus desejos, algumas boas memórias vividas a dois, a sua incompreensão do fim do relacionamento, a sua visão da política, da pandemia, da contradição dos números, o vazio das ruas, o sofrimento dos outros, a morte de muitos…

Há ainda registo dos diálogos, muito breves. Das dúvidas que se vão colocando sobre a situação actual, sobre o passado e sobre o futuro. A sós? Juntos? Afinal “Mariana é bonita”; “Mariana tem os olhos bonitos”, a boca também, mas está escondida pela máscara.

Ao longo dos dias, o narrador reaprendeu a olhar Mariana, quem sabe a amá-la… “Muita gente esquece o amor e esquece a história por detrás do amor, mas decidi não esquecer.” (p. 107)

Nesta quarentena (e certamente em todas as outras) há sempre uma televisão ligada, mas há sobretudo tempo para recordações, e das gavetas da memória surgem imensas referências literárias, artísticas, cinematográficas, musicais, única forma de se manter lúcido perante tanta incompreensão.

Numa escrita singular porque muito própria, o autor coloca o narrador numa posição de observador o que lhe permite interligar a realidade (distanciamento, factos, números), a introspecção (sentimentos, desejos) e as memórias (vivências conjugais).

Sendo este o primeiro livro que leio deste autor, fica a promessa e o interesse de o descobrir noutras leituras.



14 fevereiro, 2022

Dia de S. Valentim



                                   Pormenor da escultura Cupido e Psique, Museu do Louvre




"Ouço-te ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo-te baixinho: Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge."

Al Berto, in Lunário




13 fevereiro, 2022

𝑪𝒂𝒔𝒂 𝒅𝒆 𝑫𝒊𝒂, 𝑪𝒂𝒔𝒂 𝒅𝒆 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de Olga Tokarczuk

 



Autora: Olga Tokarczuk
Tradutora: Teresa Fernandes Swiatkiewicz
Título: Casa de Dia, Casa de Noite
N.º de páginas: 347
Editora: Cavalo de Ferro
Edição: Junho 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Para quem já conhece um pouco a obra da autora, não estranha a estrutura deste livro. Como se de um puzzle se tratasse, a narrativa desfila em histórias que se vão alternando, cruzando, completando. Fica a ideia que tal como para as fotografias tiradas por R. será necessário “compor com todas elas um só céu”, (p. 347) as suas histórias também só farão sentido depois de todas lidas.

É um livro que levanta sobretudo questões e que raras vezes dá respostas, que propõe reflexões, que inquieta e obriga a interiorizar certas vivências e que abre novas perspectivas sobre temáticas como a relação do ser humano com o seu próximo, com os animais, com a natureza e sobre a inevitável passagem do tempo, a imortalidade, a contemplação, o silêncio, …

A narradora vai descrevendo os poucos habitantes de Nowa Ruda, “Cidade do vale, das encostas e dos cumes. (…) Cidade onde o anoitecer chega subitamente vindo das montanhas e desaba sobre as casas como uma monstruosa rede de borboletas. (…) Cidade silesiana, prussiana, checa, austro-húngara e polaca. Cidade de periferias. (…) Cidade onde o tempo anda à deriva, as notícias chegam com atraso e os nomes confundem.” (pp. 338 e 339).

A sua descrição incide na singularidade de certas personagens e nas suas histórias fabulosas; nos vários enredos anedócticos e por vezes incompletos; nos relatos oníricos e transcendentes; na explanação de várias matérias históricas, sociais, cosmológicas e ambientais.

Toda a sua escrita revela um estilo e um olhar muito próprio do mundo, uma sensibilidade por outras formas de vida, por outras formas de encarar a existência. É uma escrita que apresenta as coisas de uma forma inabitual, que faz pensar e que provoca imensas dúvidas.
“ - o nosso mundo é povoado de pessoas adormecidas que morreram e sonham que estão vivas.” (p. 166)

Há histórias de uma beleza estonteante das quais sublinhei e retirei imensas passagens.


05 fevereiro, 2022

𝑻𝒓ê𝒔 𝑪𝒐𝒏𝒕𝒐𝒔, de Umberto Eco e Eugenio Carmi

 


Autor: Umberto Eco
Ilustrador: Eugenio Carmi
Título: Três Contos
N.º de páginas: 113
Editora: Gradiva
Edição: Junho 2021
Classificação: Contos
N.º de Registo: (BE)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Três contos é uma belíssima união entre as palavras de Eco e as ilustrações de Carmi. Os traços abstractos e a paleta de cores estão em simbiose com a fantasia e a ironia presentes nos textos.
Três histórias curtas e directas, com temas actuais, como a guerra e a paz; a competitividade e a tolerância; poluição, consumo e consciência ambiental, que nos fazem reflectir.
Sendo o texto muito curto, não posso nem quero desvendar o teor dos contos. Transcrevo a última frase da sinopse que penso traduzir muito bem o conteúdo do livro “ Do encontro extraordinário entre um narrador e um artista, três histórias sobre o respeito e a esperança, para quem ama ler com a imaginação.”



03 fevereiro, 2022

𝑨𝒖𝒔𝒄𝒉𝒘𝒊𝒕𝒛, 𝑪𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆 𝑻𝒓𝒂𝒏𝒒𝒖𝒊𝒍𝒂, de Primo Levi

 

Autor: Primo Levi
Tradutores: Diogo Madre Deus e Maria do Rosário Pedreira
Título: Auschwitz, Cidade Tranquila
N.º de páginas: 166
Editora: D. Quixote
Edição: Setembro 2021
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Auschwitz, Cidade Tranquila integra dez contos e dois poemas. Mais uma obra de não-ficção que nos conta o que aconteceu com o rigor que Primo Levi já nos habituou e que deve ser lido para que a memória não se apague. A verdade dos factos aqui relatada foi vivida, sofrida e observada. O autor, após a libertação, para se redimir da dor que as memórias dos campos de concentração lhe causam, tenta escrever, tenta testemunhar tudo o que viveu, tudo o que observou. Foi um período difícil, as consequências da sobrevivência foram devastadoras.

Estes contos percorrem um tempo de cerca de 30 anos. Há contos que narram de forma inequívoca o que viveu em Auschwitz, outros mais ficcionados, dizem-no também, mas é nas entrelinhas que descortinamos os factos ocorridos no Lager.
“A trinta anos de distância torna-se difícil reconstituir a espécie de exemplar humano que correspondia, em novembro de 1944, ao meu nome ou melhor ao meu número174517.”      (p. 97, Cério)

O conto que dá o título à obra, é um paradoxo. Com tudo o que sabemos, e com tudo o que Levi viveu e presenciou, como justificar o epíteto de “cidade tranquila”? Levi ajuda-nos a compreender: se para uns foi o inferno, para outros, os que colaboraram, os que não quiseram ver foi efectivamente uma cidade tranquila.

A apresentação de Fabio Levi e Domenico Scarpa, responsáveis pela organização do livro, é clara quanto à intenção de Primo Levi ao escrever (e muito) sobre o Lager: “Vítima, espectador e testemunha, Levi também sente que as suas descrições, a sua narração e a sua pesquisa nunca chegam a ser suficientes: por mais transparentes, precisas e perspicazes que elas sejam, é sempre pouco face à demasiada dor, à dor excessiva daquele lugar. É por isso que ao longo dos anos experimentará tantos pontos de vista sobre Auschwitz: a fim de o restituir no modo mais absoluto possível.” (pp.15 e 16)


É por isso que o leio. É por isso que recomendo as suas obras.