30 junho, 2020

A portuguesa e outras novelas, de Robert Musil


OPINIÃO

Este livro divide-se em duas partes: a primeira, Três Mulheres - Novelas e a segunda, Uniões – Duas Narrativas.
Numa escrita irrepreensível e ensaística, Musil tece reflexões sobre o comportamento e os sentimentos das protagonistas de cada história. 

“E enquanto ela se retraía como uma película, sentindo nas pontas dos dedos a angústia silenciosa de pensar em si e as suas sensações se lhe colavam como pequenos grãos e as emoções escorriam como areia (…) o passado surgiu-lhe então, repentinamente, como expressão inacabada de algo ainda para acontecer.” (p. 143) 

De forma minuciosa, vamos conhecendo as dúvidas existenciais e, por vezes complexas, das personagens femininas. Estas dúvidas dissecadas, questionadas até à exaustão provocam algum desconforto no leitor porque este participa na mediação constante entre o sentimento e a razão; conhece os seus pensamentos, as emoções, as ideias, as motivações; especula e julga as decisões tomadas. 
“Para uma busca indefinida, a alma é qualquer coisa deste género. Durante toda a sua vida obscura, Verónica sentira receio de um amor e nostalgia de um outro; em sonhos, as coisas são por vezes idênticas ao que ela desejaria”. (p. 218) 

Musil é exímio na interpretação do comportamento humano. Ele interliga o presente e o passado, a realidade e o sonho; ele invoca os traumas psicológicos da infância, de algumas personagens, e fá-los reviver na vida adulta; ele retrata o desassossego constante. 
Musil não poupa o leitor, pelo contrário, embrenha-o nas narrativas, incomoda-o, instiga-o à reflexão. 

(…) Havia nela um ligeiro desassossego, uma nostalgia quase malsã de uma tensão extremada, o pressentimento de uma derradeira agudização. E, às vezes, parecia destinada a um mal de amor desconhecido.” (p.140)

28 junho, 2020

A Balada do Medo, de Norberto Morais


OPINIÃO



Neste livro, Norberto Morais transporta-nos de novo para um espaço imaginário. São Gabriel dos Trópicos é o país inexistente onde decorre uma parte da acção já que o protagonista, Cornélio Santos Dias de Pentecostes, passa muitos anos da sua vida, primeiro como suposto caixeiro-viajante, a circular pela região e mais tarde a fugir de uma morte anunciada. 
Ao longo da narrativa, o leitor fica deslumbrado quer pelas descrições dos locais quer pela caracterização das numerosas personagens pitorescas e extraordinárias presentes. 
O próprio protagonista é uma personagem fabulosa. Tem uma vida múltipla, com várias identidades, vive rodeado de mentira e de subterfúgios para trair a sua mulher e enganar as restantes mulheres que vai conquistando por onde passa. “Era com elaborado engenho que mantinha uma vida múltipla, conjugando afectos em todas as províncias do Norte, onde tinha mulheres aguardando-lhe o regresso. A solidão e a lonjura entre as cidades amparavam-lhe os pretextos” (p.9) 

Mas um dia tudo muda, e o folgazão passa a viver sob a égide do medo e do desespero de ludibriar o seu algoz e de assim escapar com vida. 

A leviandade e a falsidade protagonizadas por Cornélio são apresentadas com grande sentido de humor e uma grande mestria ao nível da escrita e da construção do romance. Porém, o autor pretende mais do que divertir com as peripécias amorosas da personagem, ele convoca o leitor a uma reflexão sobre a irracionalidade do ser humano perante a iminência da morte.


17 junho, 2020

O Homem que via passar os comboios, de Georges Simenon



OPINIÃO

É o primeiro livro que leio do autor e é considerado, segundo algumas críticas, como o seu melhor. 
Confesso, que também gostei muito. É um policial diferente de todos os que já li. Aqui, a narrativa não se centra na figura policial ou no detective, mas sim no criminoso. Nada de suspense, tudo nos é apresentado com naturalidade como se a loucura fosse o passo para a felicidade. E não será?
É fantástico acompanhar os actos e os pensamentos de Kees Popinga. Tudo é magistralmente planeado para que nada falhe e consiga escapar à polícia. O leitor torna-se cúmplice ao acompanhar a nova vida errática da personagem e vai gerindo as suas emoções ora com um sorriso ora com incredulidade. 
Fica a promessa de outras leituras.



13 junho, 2020

Ofício de Amar, Al Berto no Programa - A Vida Breve



Al Berto - Programa diário de poesia dita pelos seus autores, acrescentando património raro e valioso ao arquivo da rádio

https://www.rtp.pt/play/p1109/e202326/a-vida-breve    (para ouvir abrir link ou clicar no título)

Ofício de Amar

já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo

Al Berto

10 junho, 2020

Luanda, Lisboa; Paraíso, de Djaimilia Pereira de Andrade




OPINIÃO


É o segundo livro que leio da autora. Este, na minha opinião, mais intenso quer na escrita quer na narrativa.
O livro com capítulos curtos poder-se-ia ler num fôlego, mas não, lemos e relemos para melhor absorver o sentido das palavras, que de tão poderosas e simbólicas, nos atingem profundamente. 
O início da narrativa é premonitório. O leitor antevê que não vai ser fácil, que a narrativa irá por caminhos difíceis, duros, emotivos. E de facto assim acontece.

“Se uma história se parece com o corpo de um animal, então pode começar por um calcanhar. O calcanhar esquerdo do filho mais novo de Cartola de Sousa nasceu malformado. O pai deu-lhe um nome helénico, tentando resolver o destino com a tradição.” 

Os protagonistas, Cartola e Aquiles, pessoas simples e de boa fé, partem de Luanda rumo a Lisboa (“a cidade do progresso”) para tratar do calcanhar de Aquiles. Esta viagem, Cartola, o pai, “sonhara com ela uma vida inteira”. E representa a esperança de um futuro mais risonho e a cura do calcanhar do filho. Porém, mais não é do que o trampolim para o desenraizamento, o desencanto, o silêncio, a miséria.
“Pai e filho não enganaram nem a fome nem o frio, mas haviam-nos enfrentado como dois ventos contrários que se disputam num cruzamento. Seis anos passaram sem melancolia.”
“ (…) A história empurrou-os para uma margem sem que dessem conta de que tinham chegado a terra. Postos de parte, não tinham nem a dignidade dos espoliados nem a honradez redutora dos desgraçados. Tinham apenas o heroísmo insuspeito de terem ficado de lado, como ervas daninhas, querubins, migalhas de pão, e a graça de se poderem reerguer fora do campo de visão de quem os soubesse existentes, enquanto clandestinos…”

Esta dureza é atenuada por breves momentos de ternura e de amor presentes nas cartas e telefonemas trocados, de quatro em quatro semanas, entre Cartola e Glória, a mulher, e pela amizade que o unia a Pepe, o taberneiro, e a Iuri, um miúdo de Paraíso, o bairro onde (sobre)vivem. Com o desenvolvimento destas amizades, a esperança reavivou-se. Mas o Fado há muito que estava traçado. 
Recomendo muito. É um livro fabuloso, muito marcante. Djaimilia sabe do que fala e fá-lo muito bem.


06 junho, 2020

O macaco bêbedo foi à ópera, de Afonso Cruz



OPINIÃO



O macaco bêbedo foi à ópera é um breve, mas muito interessante ensaio sobre a influência do álcool, da embriaguez, na civilização ao longo dos tempos. Afonso Cruz desenvolve a teoria de que os macacos desceram das árvores para apanhar os frutos maduros que se encontram no chão. Ora, segundo a mesma teoria, os frutos maduros têm mais açúcar, fornecem mais energia e emanam um cheiro a álcool. “O que sustenta a teoria do macaco bêbedo é que o fruto caído e demasiado maduro está em processo de fermentação. Cria etanol. E o etanol viaja pelo ar com facilidade e chega ao nariz de quem procura açúcar. Resumindo: o macaco desce da árvore porque lhe cheira a álcool e isso significa açúcar, energia, calorias, consequentemente um cérebro maior, e muitos milénios depois a possibilidade de ir à ópera.” (p. 14) 

Porém o autor não fica por aqui, para além de demonstrar claramente como tudo isto se processa, o autor foca-se também no desenvolvimento da agricultura, na sedentarização do homem, no fabrico do álcool, sobretudo da cerveja, no consumo do mesmo e no impacto causado no homem e por conseguinte na sociedade.
“Essa mudança teve consequências, boas e más, cabendo a cada um relevar ou obliterar os argumentos que porá na sua balança filosófica, política, social e ética.” (p. 39) 

Para desenvolver a sua teoria deveras surpreendente, pelo menos para mim, o autor lega-nos, ao longo do texto, várias referências a outros livros permitindo, a quem o desejar, o aprofundamento deste tema. Ma o que destaco deste ensaio é a simplicidade e a clareza da escrita, com pinceladas de ironia o que de certa forma facilita a assimilação da informação e torna a leitura cativante. A certa altura, quando o autor desenvolve alguns aspectos causados pela embriaguez, como a loucura, a jovialidade, a demência temporária, entre outros, refere que “ a poesia é uma forma de embriaguez da língua, das palavras, e que o poeta, um pouco como o bêbedo, a criança, o profeta (…) relaciona coisas irrelacionáveis e as transforma em beleza e, mais do que isso, na possibilidade de novas teorias científicas, sociais, políticas e tecnologia.” (pp. 46, 47) 

Ora, foi isto que aconteceu na escrita deste ensaio. Afonso Cruz certamente um pouco embriagado (ele próprio é produtor de cerveja artesanal), ofereceu-nos este delicioso pequeno livro.