29 março, 2023

Momento emocionante.



Hoje, fui surpreendida pela soberba leitura de dois poemas. Ana Zorrinho tem o condão de me  emocionar. Sabe dizer poesia! Sabe transmitir e partilhar emoções! É maravilhoso! 
Sou-lhe imensamente grata por estes momentos. 

|este foi um deles| 


Calçada de Carriche 

Luísa sobe, sobe a calçada,
sobe e não pode que vai cansada.

Sobe, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.

Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.

Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa, larga que larga,[x 4]
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa, larga que larga,[x 4]

Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada, [x 3]

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

António Gedeão


28 março, 2023

𝑶𝒖𝒕𝒐𝒏𝒐, de Ali Smith


Autora: Ali Smith
Título: Outono
Tradutor: Manuel Alberto Vieira
N.º de páginas: 215
Editora: Elsinore
Edição (2.ª): Novembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3328



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Outono é o primeiro livro de uma tetralogia. O contexto da narrativa situa-se no pós-Brexit e a autora apresenta algumas reflexões sobre esse tempo. É um tempo que conduz à indiferença, à ansiedade, ao descontentamento. É um tempo de futuro incerto.
“Foi o pior dos tempos, foi o pior dos tempos. De novo. É esse o problema das coisas. Desfazem-se, sempre se desfizeram, sempre se desfarão, está-lhes na natureza.” (p. 15)
A história revela-nos duas personagens maravilhosas, Elisabeth Demand e Daniel Glück, dois vizinhos com setenta anos de diferença. Ela na casa dos trinta e ele já centenário vão construindo uma amizade aparentemente improvável e nem sempre compreendida pela “ultrassensível e ultrairritante” mãe de Elisabeth.
“Ele é meu amigo, disse Elisabeth.
Tem oitenta e cinco anos, disse a mãe. Como é que um velho de oitenta e cinco anos pode ser teu amigo? Porque é que não tens amigos normais como as pessoas normais de treze anos?
Isso depende da tua definição de normal, disse Elisabeth. Que será diferente da minha definição de normal. Porque todos vivemos na relatividade e a minha, no momento presente, não é, e suspeito que nunca será, igual à tua.” (pp.69-70)

A narrativa evolui sem uma linha temporal definida. Entre “episódios de outros tempos” surgem memórias, recordações, sonhos, que assim oscilam entre o passado, vivido por ambos desde a infância de Elisabeth, e o presente em que Daniel se encontra hospitalizado num “período de sono prolongado”.

Gostei sobretudo da escrita poética e da subtil transição entre o passado e o presente. Os factos reais, os imaginados e as memórias entrelaçam-se harmoniosamente, atribuindo apenas relevância àquilo que importa mesmo, isto é, à vida, à relação afectuosa entre pessoas que se estimam, à partilha de conhecimentos e de ensinamentos:
“Devemos estar sempre a ler alguma coisa, disse ele. Mesmo que não estejamos a ler fisicamente. Caso contrário, como seremos nós capazes de ler o mundo?” (p. 62)

27 março, 2023

𝑫𝒖𝒂𝒔 𝑺𝒐𝒍𝒊𝒅õ𝒆𝒔. 𝑶 𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒏𝒂 𝑨𝒎é𝒓𝒊𝒄𝒂 𝑳𝒂𝒕𝒊𝒏𝒂, de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa

 


Autores: Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa
Título: Duas Solidões. O Romance na América Latina
Tradutor: J. Teixeira de Aguilar
N.º de páginas: 175
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2021
Classificação: Conversa/testemunhos
N.º de Registo: (3371)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Duas Solidões. O Romance na América Latina é a transcrição do interessantíssimo embate comunicacional de dois vultos da literatura - Gabriel García Márquez (Gabo) e Vargas Llosa, ocorrido em setembro de 1967, em Lima, no Peru. Os dois escritores, já nomes promissores da literatura latino-americana, estavam em início de carreira e tinha acabado de sair o famosíssimo Cem anos de solidão.
Trata-se de uma conversa amena, elegante, esclarecedora e emocionante.
Fala-se da utilidade dos escritores, “Para que achas que serves tu como escritor?” (p. 41) perguntou Llosa logo no início da conversa; dos métodos de escrita; de convicções; do boom do romance latino-americano; do “boom de leitores”; de leituras, de influências; das próprias obras e daquilo a que se viria a chamar mais tarde de “realismo mágico”.

Para além desta conversa entre os dois Nobelizados (duas partes), a edição conta com três textos introdutórios e uma Nota preliminar. No final, conta ainda com quatro testemunhos, duas entrevistas e algumas fotografias.

Num dos textos introdutórios, Juan Gabriel Vásquez descreve desta forma brilhante os dois protagonistas: “Aqui está esse Vargas Llosa: o romancista-crítico, senhor de uma consciência exacerbada do seu ofício, sempre com o bisturi na mão. Ao lado, García Márquez faz grandes esforços para defender a sua imagem de narrador instintivo, quase selvagem, alérgico à teoria e mau explicador de si mesmo ou dos seus livros. (…) Ora bem, o diálogo é também uma encenação de duas maneiras diferentes de entender o ofício de romancista; (…) Por um lado, a generosidade intelectual de Vargas Llosa (…) e, por outro, a timidez de García Márquez” (pp. 20-21)

Penso que este livro destaca a importância da conversa quer para os leitores quer para futuros escritores e é revelador da genialidade dos seus autores, da amizade e do respeito entre ambos. É bonito perceber que entre os dois há uma enorme cumplicidade apesar das divergências existentes, como é natural.

Termino com uma resposta de Gabo a Llosa que se tornou numa das suas máximas principais: “Escrevo para que os meus amigos gostem mais de mim.”



21 março, 2023

Dia Mundial da Poesia



como é que eu te explico isto que não sei se sinto ou invento
mas é como se um inverno cá dentro
como se o corpo me ardesse todo em veneno
e
ao mesmo tempo
                              tão sereno
                                                    tão pétalas de príncipe negro

como é que eu te explico
eu que das palavras me sustento
que tu em mim és um vento
um tornado
um arrancar de árvores pela raiz
que tu em mim és por um triz
um atirar-me do alto da ponte
com a certeza de ser pássaro
                                              nuvem
                                                                 de ser um sonho

como é que eu te explico
como é
eu que de palavras me componho
que tu em mim és a crença onde jamais vingou fé
e que a tua presença
a tua presença

todo eu me baralho
todo eu me complico
mas como é que caralho eu te explico
como
como
como
como é que eu te explico

Norberto Morais



Dia Mundial da Poesia

 

MEU ÚNICO AMIGO

só conseguia amar-te se falasse de mim
sem cessar

hoje vivo quase sempre sozinho
paciência
os momentos de infelicidade estão esquecidos

uma pétala de luz percorre as linhas da mão
o rosto é aquele que sonhei
e não o que a noite dos espelhos tenta dar-me

eis o retrato de meu único amigo
a quem tudo revelo
o que me cresceu no coração

Al Berto







20 março, 2023

𝑨 𝑳𝒊𝒗𝒓𝒂𝒓𝒊𝒂, de Penelope Fitzgerald

 

Autora: Penelope Fitzgerald
Título: A Livraria
Tradutora: Eugénia Antunes
N.º de páginas: 188
Editora: Clube de Autor
Edição: Outubro 2016
Classificação: Romance
N.º de Registo: ( )



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Tenho por regra nunca ler um livro depois de ter visto a adaptação cinematográfica. Mas como gostei tanto do filme e as críticas ao livro eram tão positivas que decidi lê-lo. Foi um erro tremendo porque parti para a leitura com grandes expectativas.

Não posso dizer que foi uma desilusão. Não foi. Só que não desfrutei do suspense da narrativa, pois já conhecia a trama. A adaptação é mais ou menos fiel ao livro, tendo até, na minha opinião, melhorado alguns aspectos ao incluir mais referências a livros e um final mais forte, mais esperançoso, já que o do livro é muito triste.

A narrativa é clara, precisa e delicada, com pinceladas de ironia bem ao estilo do humor britânico e carregada de melancolia e de crítica social. Num lugar retrógrado, onde predomina a ignorância, o egoísmo e a bajulação, manter uma livraria, acto altamente corajoso por parte da protagonista (Florence Green) não é tarefa fácil. E quando pensamos que tudo vai correr bem, sobretudo com a venda do famoso clássico Lolita, de Nabokov, eis que surgem alguns reveses, fruto da inveja e maldade de alguns habitantes.

Recomendo a leitura e o filme. Penso que se completam, mas aconselho primeiro a leitura do livro.




19 março, 2023

Dia do Pai

 




Súplica


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada

Miguel Torga


18 março, 2023

Silêncios!

 

                                                       
                                                                            foto minha


Reflexos


Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.


Ana Luísa Amaral



17 março, 2023

Silêncios!

 

"quem me dera que a chuva viesse e nos diluísse um ao outro, 
e pela noite corrêssemos como um regato 
em direcção ao mar."


Al Berto


                          

13 março, 2023

Amigo, de Alexandre O'Neil



                                        Amizade - https://marcosmucheroni.pro.br/blog/?p=23008#.ZA8smnbP3MU



Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'




12 março, 2023

𝑶 𝑳𝒖𝒈𝒂𝒓 𝒅𝒂𝒔 Á𝒓𝒗𝒐𝒓𝒆𝒔 𝑻𝒓𝒊𝒔𝒕𝒆𝒔, de Lénia Rufino

 


Autora: Lénia Rufino
Título: O Lugar das Árvores Tristes
N.º de páginas: 223
Editora: Manuscrito
Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Dois momentos (1968 e 1992), uma mesma história familiar, um lugarejo no Alentejo, uma mentalidade retrógrada e beata, uma inocência roubada violentamente, um padre execrável e dominador, uma guarda incompetente e submissa. Estes são os ingredientes que Lénia Rufino usou na construção do seu enredo perturbador e comovente.

A narrativa inicia em 1992 no “lugar das árvores tristes” onde Isabel, uma das filhas de Lurdes, a protagonista, gostava de andar “por entre as sepulturas, a limpar aqui e ali o pó das inscrições das pedras tumulares…”. Isabel, menina curiosa gosta de saber a razão da morte das pessoas que se encontram sepultadas para alimentar a sua imaginação, cedo, vai perceber que há muita história mal contada e que todos, incluindo a mãe, tentam fugir ao assunto. Não obtendo respostas satisfatórias e credíveis, decide investigar nos arrumos da mãe. Aí descobre um diário que nos relata toda a história de Lurdes, que não vou narrar… apenas posso referir que se trata de uma família destroçada, maniatada pelo poder de um padre execrável e que vive num lugar onde reinam a coscuvilhice e os boatos e o medo de desobedecer ao padre e à guarda.

Trata-se de uma história credível e recorrente do nosso país. Bem escrita, mas que soube a pouco já que o final fica em aberto. Penso que o leitor teria gostado de saber o fim desta história. Fica a impressão de injustiça perante tanta maldade e impunidade, mas resta-nos também a esperança de um reencontro tão desejado.

Ninguém fica indiferente à história de Lurdes, pelo que na minha leitura final, atribuí-lhe um desfecho feliz. 



08 março, 2023

Dia Internacional da Mulher. Hoje e todos os outros dias!

 



Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso


Maria Teresa Horta

______________

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…


Florbela Espanca

________________


Eu te dou a Prova
De que sempre amei —
Até amar — eu quase
Não vivi —

Também te demonstro
Que sempre amarei —
O amor é vida — e a vida
É Imortal —

Meu Bem — se duvidas —
Então não terei
Nada para mostrar-te —
Só a Paixão —

Emily Dickinson



07 março, 2023

O Teu Sorriso...

 Amo a violência 

com que o teu sorriso

 destrói a minha rotina. 


in Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez



05 março, 2023

Um poema de Fernando Pessoa

 




LISBON REVISITED
(1923)


Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!



Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa