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04 agosto, 2025

𝑨 𝑷𝒆𝒅𝒊𝒂𝒕𝒓𝒂, de Andréa Del Fuego

 


Título: A Pediatra
N.º de páginas: 203
Editora: Companhia das Letras
Edição (3.ª): Abril 2025
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3716)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐





A Pediatra é um romance que se destaca pela abordagem provocadora e intensa que desafia o convencional sobre a maternidade e o papel da mulher na medicina e no casamento.

Ao construir uma protagonista segura e desconcertante que rejeita os papéis tradicionais atribuídos às mulheres, sobretudo o da maternidade, a autora tece uma crítica às estruturas sociais que ditam os padrões aceitáveis de uma sociedade ainda patriarcal.

Cecília, sem problemas financeiros e habituada a um conforto aburguesado, acaba com um casamento sem afecto, vive uma sexualidade plena e evita compromissos emocionais; como pediatra neonatalogista mantém um consultório com sucesso, faz parcerias com uma colega obstetra no hospital, apesar de afirmar que “detesta crianças”.

Cecília revela-se competente e pragmática, mas afasta qualquer vínculo afectivo sendo julgada, pelos seus pares, como uma pessoa fria e cínica. “O afeto é uma doença contagiosa. Prefiro manter distância.”
O romance centra-se em duas visões da prática médica: a de Cecília, racional e distante, e a de um novo pediatra adepto de práticas alternativas e acolhedoras.
A chegada deste causa-lhe alguma instabilidade profissional, na medida em que perde pacientes, mas não altera em nada a sua postura e as suas convicções.

Na minha opinião, Cecília usa a rejeição à maternidade como uma armadura. Ela constrói uma vida onde a racionalidade e o auto-domínio são os seus pontos fortes. A frieza com que trata os pacientes, mães e crianças, e a distância emocional que mantém com os seus próximos, parecem esconder algo mais vulnerável. Isto fica claro quando ela se envolve com Bruninho, o filho do amante. A sua relação com a criança escapa ao seu controle e surge uma empatia inesperada, mas não resolvida. Ela não sabe reagir com os sentimentos que a invadem e que escapam à sua lógica fria e insensível. Pelo que a sua aversão é uma defesa, mas não uma essência.

Cecília, provavelmente, não odeia as crianças — talvez ela odeie os papéis que lhe são impostos como mulher. A maternidade é encarada por Cecília como uma vontade pessoal, sem imposição. Nem toda a mulher quer ser mãe.

A narrativa feita na primeira pessoa, com um ritmo acelerado e cínico, pretende, da mesma forma, afastar o leitor emocionalmente, o que reforça a ideia de que há algo reprimido. Ao longo do romance, vamos detectando camadas complexas que causam algum desconforto:
Cecília é uma mulher, médica, bem-sucedida, mas sem qualquer traço de empatia ou de afecto; ela desmonta o arquétipo da mulher cuidadora, recusando o papel de mãe, de esposa, de profissional; ela promove uma sexualidade livre, crua e sem culpa, o que contraria a moral tradicional e a sua atitude final é completamente desconcertante.

Será que é Cecília que está errada ou é a sociedade com as suas imposições?
Convido-vos a descobrir esta personagem tão segura quanto frágil, tão detestável quanto sedutora.



08 julho, 2025

𝑶 𝑬𝒙é𝒓𝒄𝒊𝒕𝒐 𝑰𝒍𝒖𝒎𝒊𝒏𝒂𝒅𝒐, de David Toscana

 

Autor: David Toscana
Título: O Exército Iluminado
Tradutora: Helena Pitta
N.º de páginas: 180
Editora: Parsifal
Edição: Outubro 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3718)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Em O Exército Iluminado, David Toscana, pelo viés de uma visão quixotesca, tece uma metáfora do patriotismo, do nacionalismo ferido.
É uma narrativa ousada e provocadora plena de ironia e emoção que transforma os fracassos em heroísmo e o absurdo em beleza.

Ignacio Matus, protagonista e motor da narrativa, é um professor ressentido e obcecado por perdas importantes: do território do Texas para os Estados Unidos e pela medalha de bronze de maratonista que alega ter-lhe sido roubada por um atleta norte-americano, Clarence DeMar, nas Olimpíadas de Paris, em 1924.
Matus é expulso da escola onde lecciona, por insistir, junto dos seus alunos, naquilo que ele considera a “vergonha nacional”. Inconformado, decide formar um exército – o Exército Iluminado - de crianças com deficiência para recuperar o território perdido no século XIX.

Toscana cria uma utopia, e como tal, recorre a uma trama inusitada, absurda, misturando delírio com idealismo, trágico com cómico e humor negro e brinda-nos com uma narrativa magnífica recheada de personagens carismáticas. Tomemos, por exemplo, “o gordo Comodoro”, que apesar da sua condição física e das suas evidentes limitações, é retratado com afeto e humor.

Assim, Toscana transforma personagens marginalizadas, com limitações graves, em heróis, em símbolos de resistência. É a celebração dos fragilizados que se tornam iluminados.

O Exército Iluminado é, por isso, um livro fabuloso pela sua imprevisibilidade e ao mesmo tempo pela total falta de senso do protagonista que acredita ganhar uma guerra com estas cinco crianças. A missão de recuperar o Texas é absurda, mas é através desta metáfora que o autor estabelece uma relação directa com os delírios de D. Quixote.
Toscana constrói uma trama carregada de ironia para nos falar de uma realidade que marcou um país, da história mexicana. Cria uma narrativa original e sensível. De forma comovente, mas não lamecha, mescla a dimensão histórica com a efabulação para explorar a complexidade do ser humano. Ao estruturar a narrativa de forma fragmentada, como se revisitasse memórias soltas, permite que passado, presente e futuro coabitem naturalmente com as vivências das suas personagens, estabelecendo uma relação entre a vida e a história; o presente e o passado, ou melhor, a fragilidade da vida retratada nestes anti-heróis e a força da memória de um homem patriota.

Toscana conduz o leitor para um universo de realismo mágico, bem nos trilhos de um Gabriel Garcia Márquez ou de um Juan Rulfo. O leitor, facilmente, seduzido deixa-se comover pela escrita poética e crua com que narra os acontecimentos insólitos vividos pelas crianças e deixa-se, sobretudo, invadir ora pela tristeza ora pela esperança e determinação. Tudo isto é um convite à reflexão. David Toscana eleva a sua narrativa a um patamar tão quixotesco que nos impele a questionar o sentido da vida e a natureza da violência num mundo tão caótico.

Foi uma bela descoberta. Mais um autor a acrescentar à já longa lista de autores sul-americanos.


30 maio, 2025

𝑨 𝑳𝒆𝒃𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑽𝒂𝒕𝒂𝒏𝒆𝒏, de Arto Paasilinna

 



Autor: Arto Paasilinna
Título: A Lebre de Vatanen
Tradutor: Carlos Correia Monteiro de Oliveira
N.º de páginas: 143
Editora: Relógio d'Água
Edição: Setembro 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3696)





OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A leitura de A Lebre de Vatanen foi-me proposta pelo clube de leitura – Era uma Voz, de Afonso Cruz. Não conhecia o autor, mas criei grandes espectativas porque, nas várias livrarias (sempre esgotado) a que me dirigi para o adquirir, só me falaram muito bem do autor e dos seus livros.

Parti, assim, à descoberta de Paasilinna com imensa curiosidade. Confesso que fui, de imediato, conquistada. Primeiro, pela escrita e, depois, pela história de Vatanen, o jornalista protagonista que vive em Helsínquia.

Não vou esmiuçar os motivos que o levam a mudar radicalmente de vida. Aconselho que desfrutem da leitura do livro e o descubram por iniciativa própria. Apenas, posso indicar que a partir de certo dia, ele e uma lebre iniciam uma “viagem” por terras finlandesas e com uma incursão na União Soviética, país fronteiriço. São múltiplas as peripécias que ambos vivem, na floresta, nos lugarejos, nas montanhas. São múltiplas as tarefas temporárias que Vatanen vai ter de desempenhar para poder sobreviver. É riquíssima a transformação, sobretudo interior, da personagem. Nem tudo é fácil.

A narrativa contém umas pinceladas de realidade. Por exemplo, Kekkonen foi presidente da Finlândia, durante 26 anos consecutivos, de 1956 a 1982; as localidades citadas; o nome do protagonista “Vatanen” é o nome de um famosíssimo piloto de rali. Poder-se-á intuir que a atribuição deste nome ao  foi intencional, se tivermos em conta algumas aventuras (risco e audácia) descritas e, de certa forma, como uma homenagem ao piloto. (especulação minha)

Na escrita simples e fluída transparecem a beleza da natureza e o rigor do clima nórdicos, mas também a integridade e a audácia de Vatanen. A sintonia entre escrita, natureza e protagonista resulta numa narrativa brilhante e encantadora. Ao longo das páginas e das aventuras somos convidados a questionar-nos sobre as nossas opções de vida; nomeadamente, o respeito pelo outro, pela liberdade individual, mas também, o sentido de responsabilidade para com a natureza, os animais; a solidariedade e a empatia.

Paasilinna, recorrendo, a histórias curtas, umas divertidas, outras mais absurdas, faz uma sátira à vida moderna, à monotonia da rotina das cidades, ao cumprimento de horários, às responsabilidades de um emprego e de uma família, em suma, a tudo aquilo que o acorrenta e sufoca. Em contrapartida, e com sentido de humor, apresenta-nos o renascimento de um homem que, na companhia de uma lebre, descobre um país de contrastes cultural e ambiental, descobre a mesquinhez humana, o desapego do homem para com a natureza, mas também a amizade, a empatia, a solidariedade. As aventuras de Vatanen transformam-se numa viagem de auto-conhecimento, de conquista de liberdade, de amadurecimento.

É um livro que nos faz reflectir sobre o sentido da vida. O que importa realmente. No epílogo, o autor refere-se a Vatanen da seguinte forma: “ a história pessoal de Vatanen e a sua maneira de agir revelam-no como um revolucionário, um ser autenticamente subversivo, e é aí que reside o segredo da sua grandeza.” (p. 142.
Recomendo.



12 abril, 2025

𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂 𝒅𝒂 𝑪𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆 𝒅𝒆 𝑲., de Agota Kristof

 


Autora: Agota Kristof
Título: Trilogia da Cidade de K. 
O Caderno Grande | A Prova | A Terceira Mentira
Tradutor: António Gonçalves
N.º de páginas: 393
Editora: Relógio D'Água
Edição: Março 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3283)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Agota Kristof escreveu O Caderno Grande, A Prova e A Terceira Mentira, entre 1986 e 1991. Em Portugal, estes três livros foram publicados num só volume intitulado Trilogia da cidade de K..
Kristof revela-nos uma história intensa e perturbadora. Há marcas de uma guerra que ocorre num país nunca nomeado, possivelmente na Hungria. No primeiro livro, também não temos indicação do nome das personagens, apenas sabemos que são dois meninos gémeos de nove anos. Com o desenvolvimento da narrativa, os gémeos vão entrando na adolescência e na vida adulta.

Num ambiente de guerra, há naturalmente privações, separações, exílio, sofrimento, mortes. E é pelo olhar inocente e cruel dos gémeos que vamos acompanhar muitas peripécias de luta pela sobrevivência que vão travar com a avó, conhecida na povoação pela “bruxa”, que os maltrata física e psicologicamente e os priva da escola e do conforto de um lar. Inteligentes, aprendem, com persistência, estratégias de enfrentar todas as crueldades a que são sujeitos. Acabam por criar situações absurdas e chocantes, não muito próprias para crianças.

A narração no primeiro livro, Caderno Grande, é feita integralmente na primeira pessoa do plural “nós”. Como se de uma única pessoa se tratasse, ou como se os dois funcionassem em uníssimo, em franca harmonia. Nesse caderno decidem escrever, apenas, as descrições dos objectos, dos seres humanos e deles próprios e evitar a utilização de palavras que definem sentimentos, palavras subjectivas.

No segundo livro, A Prova, há uma separação voluntária dos gémeos, Klaus e Lukas (aqui já nomeados), ou Lucas e Claus. Klaus, agora com 15 anos, decide separar-se do irmão e atravessar a fronteira para o país vizinho. Lukas, num período de pós-guerra, ainda com insurreições, narra-nos as suas vivências, os seus relacionamentos. Há momentos e relações ambíguos, surgem novas personagens, novas histórias encaixadas.

No terceiro livro, A Terceira Mentira, passados trinta anos, reaparece Klaus com uma história construída com fragilidades e contradições, o que levanta muitas dúvidas ao leitor sobre a veracidade das histórias. As duas partes que o compõem são narradas por cada um dos gémeos e tudo muda, de novo. Afinal, é tudo mentira? A metáfora do jogo de espelhos encaixa na perfeição, a história vai alterando ao sabor do narrador.

À medida que avançamos na leitura dos três livros, intuímos que a autora baralha as informações. Tal como os nomes se confundem, (anagramas), as memórias de cada um também se revelam desfocadas e contraditórias. A ambiguidade vai num crescendo e duvidamos da existência de um dos gémeos. Ao intitular o último livro com A Terceira Mentira, a autora confirma, ou não, a realidade da história. Se, neste livro, estamos perante uma terceira mentira, significa que os dois anteriores também o são? Afinal, há dois gémeos? Há só um? E qual deles? Quem é o narrador? As personagens do primeiro livro existiram de facto como foi narrado ou desempenharam outros papéis? Podemos confiar num narrador infantil que viveu traumas de abandono? Estamos perante delírios de um idoso ou meros exercícios de escrita? Tantas dúvidas que nos assolam! Estas e outras tantas!

Penso que com esta questão, a autora pretende reflectir sobre a perda de identidade, a manipulação da verdade veiculada por regimes autoritários, a perda de memória marcada por circunstâncias de guerra, de sofrimento, de destruição, em suma na fragilidade da verdade.

Esta trilogia escrita numa linguagem simples, directa, seca e dura, com diálogos curtos, por vezes pincelados de humor negro, e muito objectivos, no início, vão ganhando subjectividade e emotividade, compõe uma obra fabulosa que muito deve à sua originalidade na criação de um imbróglio que baralha por completo o leitor. Esta abordagem, de frieza calculada, torna a narrativa ainda mais impactante. A eliminação de qualquer excesso emocional, transfere para o leitor a interpretação dos factos.
Realidade e Ficção mesclam-se na perfeição. A relação dos irmãos é um reflexo da dualidade (o tal jogo de espelhos) presente em toda a obra: realidade versus ficção, verdade versus mentira, identidade versus anonimato.
Agota Kristof que nasceu na Hungria tendo deixado o país na sequência da repressão soviética que se seguiu à Revolução Húngara de 1956, acaba por expor a sua própria experiência e constrói essa dinâmica de forma magistral, deixando o leitor imerso num universo de incertezas e emoções intensas.

Uma última questão que me surge enquanto finalizo este texto. No título Trilogia da Cidade de K., mantém-se a ambiguidade que já referi. Que pode significar K. ? São várias as possibilidades: Kristof?, Klaus?, Köszeg? a cidade onde a autora se encontra sepultada na Hungria? Outra possibilidade?

Convido-vos a embrenharem-se na leitura desta obra magnífica.