30 dezembro, 2022

Votos para 2023

                                                                             Foto Filipe Miguel 


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis 


29 dezembro, 2022

𝑨𝒔 𝑫𝒐𝒆𝒏ç𝒂𝒔 𝒅𝒐 𝑩𝒓𝒂𝒔𝒊𝒍, de Valter Hugo Mãe

 


Autor: Valter Hugo Mãe
Título: As Doenças do Brasil
N.º de páginas: 273
Editora: Porto Editora
Edição: Setembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3320)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


VHM refere na sua epígrafe que retirou o título As doenças do Brasil de um excerto do “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, de Padre António Vieira (“Esta foi a origem do pecado original e esta é a causa causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde.”).

Neste longo poema, como o próprio autor o classificou nas notas de autor, VHM transporta-nos para a comunidade imaginária dos abaetés, como povo originário do Brasil, relata-nos a sua cultura, língua, educação, crenças e costumes e dá-nos a conhecer o passado colonial dos brancos e o seu impacto no presente.
Transparecem neste texto a emotividade e a sensibilidade do autor quer através da escrita poética quer através da caracterização do povo indígena. Abaeté significa “pessoa gentil” e é gentileza, cumplicidade, piedade, generosidade, mas também ingenuidade que encontramos no “povo dos três mares”. Também percebemos como a questão racial, o domínio do homem branco sobre os povos indígenas e negros perturba o autor (“O negro era um animal domesticado pelo branco.”). A referência à língua branca que fede e apodrece na boca é uma constante:
“E seu bafo fedeu muito entre todos. (…) é a língua branca. A língua e o fedor da língua branca, a palavra que apodrece na boca e apodrece a boca.” (p. 105)

A acção centra-se no caso de um jovem abaeté, Honra, que vive o drama de ser o fruto da violação de Boa de Espanto, uma “feminina”, por um homem branco. Honra não se conforma, vive revoltado e promete matar o branco, o inimigo. Honra, o guerreiro feio, sente-se indigno, ferido de morte e não aceita ter herdado a cor do homem branco, da “fera branca”.
“ sagrado Pai Todo, sou branco. Sei agora e não sei como não o via mesmo que vendo. Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. Sou uma possessão. Um espírito baixado sobre minha dignidade abaeté. Sou um bicho como nenhum outro da mata. Um inimigo menos semelhante. Um excremento do branco no ventre de minha mãe. Sou a morte, sagrado Pai Todo.” (p. 33)

Honra, bem aceite pelo seu povo e educado segundo os preceitos abaeté, só começou a aceitar a sua condição quando encontrou, na mata, um negro a quem deram o nome de Meio da Noite, ainda mais desafortunado e a quem se afeiçoou, primeiro porque recebeu ordem de lhe dar uma “educação abaeté” e depois porque nasceu entre os dois “feios” uma enorme cumplicidade que não vou desvendar.
“Um pouco depois, no silêncio profundo da maloca, comovido, Meio da Noite pressentiu que Honra não dormia e isso lho perguntou. O guerreiro branco respondeu:
penso. Não consigo parar de pensar.
E o negro entoou:
sagrado Honra, se entendi o que aconteceu, se por sorte me salvaram, quero que saibas que estou grato. Sou grato. Fujo sozinho mas sou testemunha de milhares. Ei vi milhares. A minha vida é a prova de que existiram, existem, e a minha voz será sempre uma pertença deles também.
O branco perguntou:
o que significas com isso.
E o negro respondeu:
obrigado, sagrado Honra. A minha vida dignifica meu pai, minha mãe, meus avós, meus irmãos, meus povos.
Honra perguntou:
estás a chorar, animal negro.
E o negro entoou:
sim.
Então, Honra chorou também. As feras eram incapazes de chorar. No sol seguinte, até estupefacto, o guerreiro branco foi declarar ao pajé que o negro era alguém. Entoou:
é alguém sagrado Pai Todo, intuí seu espírito. Eu intuí. (pág. 118).

Em conclusão, a narrativa poética criada pelo autor não foge muito à realidade histórica. O “colector de palavras” concebeu um poema a partir do seu fascínio pelos povos originários, escrito com o assombro e a violência de uma realidade que pretende manter viva, como lhe disse o cacique dos Anacés: “vá, e diga ao seu povo branco que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para os receber como amigos. Ensine ao seu povo que somos amigos.” (p. 266). E VHM cumpriu na perfeição.
Recomendo vivamente!



Fundão II

 









20 dezembro, 2022

𝑶 𝒆𝒏𝒊𝒈𝒎𝒂 𝒅𝒂𝒔 𝒄𝒂𝒓𝒕𝒂𝒔 𝒂𝒏ó𝒏𝒊𝒎𝒂𝒔, de Agatha Christie

 

Autora: Agatha Christie
Título: O enigma das cartas anónimas
Tradutora: Arminda Pereira
N.º de páginas: 191
Editora: ASA
Edição: Novembro 2001
Classificação: Policial
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐



Neste policial, Agatha Christie transporta-nos para a pequena aldeia de Lymstock, lugar aparentemente sossegado, mas que ao longo da narrativa se vai tornando num local de intrigas, de mexericos, de segredos, de cartas anónimas e de mortes. Jerry, o narrador, vai relatando os acontecimentos e vai acompanhando a investigação dos mistérios que ocorrem na pacata aldeia.
Sempre gostei da escrita de Agatha Christie, da forma como desenvolve a sua narrativa com personagens fabulosas e cenários enigmáticos; da apresentação dos crimes e da (des)construção da investigação que no final surpreende sempre o leitor.
Contudo, neste livro, o aparecimento tardio de Miss Marple, tornou o processo da investigação menos cativante. A perspicácia e a astucia da eterna bisbilhoteira que mexe e remexe nos casos não foram, na minha opinião, devidamente exploradas. O final é-nos revelado de forma vaga. Percebemos como Miss Marple desvendou o mistério, mas faltou o entusiasmo da investigação.



19 dezembro, 2022

𝑻𝒓𝒊𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂, de Jon Fosse

Autor: Jon Fosse
Título: trilogia
Tradutora: Liliete Martins
N.º de páginas: 204
Editora: Cavalo de ferro
Edição (3.ª): Fevereiro 2022
Classificação: Novelas
N.º de Registo: (3357)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Trilogia requer, de início, um enorme esforço de concentração para aceitar a escrita de Jon Fosse e não desistir. Quase sem sinais de pontuação e com repetições exaustivas de frases, de falas, de verbos introdutores de discurso (“diz ele”), o texto torna-se, por vezes, insólito. Mas o que se estranha, no início, após algumas páginas, acaba por se entranhar e apreciar. E a partir daí, o leitor não mais quer parar. É a escrita simples e a melodia das frases provocada pelas repetições e pelas pausas inerentes ao diálogo que cativam e agarram o leitor.

Composto por três novelas, e apesar da distância temporal entre elas, as personagens mantêm-se sobretudo através da evocação constante e repetitiva de lugares, de pessoas e de acções. O passado, o presente e o futuro enleiam-se e tropeçam em enredos impossíveis, em ilusões, em sonhos, em memórias.
A primeira novela inicia com um jovem casal que, obrigado a sair da sua aldeia, vagueia ao frio e à chuva, na escuridão de uma cidade à procura de um abrigo. Ao longo desta trilogia, percorremos os mesmos caminhos de Asle e Alida, compreendemos a dificuldade de sobrevivência numa sociedade hostil, o desamparo de ser rejeitado e incompreendido por todos, e aplaudimos o amor existente entre os dois jovens que acaba por justificar os erros cometidos. Afinal, se segundo a sinopse, estamos perante uma “parábola de inspiração bíblica sobre o amor, o crime, o castigo e a redenção”, então tudo fará sentido num mundo dividido entre o Bem e o Mal.
Destaco a terceira novela pela beleza e sensibilidade da escrita na descrição das emoções de Alida. O seu amor por Ales mantém-se imutável e eterno mesmo para além da morte.
“ (…) e Alida acredita que ela e Asle ainda são um casal de namorados e estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida e olha na direção do mar e do céu, e vê Asle, vê que o céu é Asle, e sente o vento, e o vento é Asle, ele está ali, ele é o vento, mesmo que ele não exista, ainda continua ali presente, (…)” p. 183

12 dezembro, 2022

𝑶 𝑪𝒐𝒏𝒗𝒊𝒅𝒂𝒅𝒐𝒓 𝒅𝒆 𝑷𝒊𝒓𝒊𝒍𝒂𝒎𝒑𝒐𝒔, de Ondjaki

 

Autor: Ondjaki
Título: O Convidador de Pirilampos
Ilustrador: António Jorge Gonçalves
N.º de páginas: 72
Editora: Caminho
Edição: Janeiro 2017
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (2999)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A conjugação da escrita poética e criativa de Ondjaki e a beleza do traço e das cores de António Jorge Gonçalves torna este livro numa autêntica maravilha.
“Em noites de lua nova, quando o céu finge estar só vestido de nudez, brilham penduradas as estrelas, pequenas e belas.
E na Floresta Grande?
Bem, na Floresta Grande brilham os pirilampos cintilantes.”

É a segunda obra que leio resultando do trabalho colaborativo destes dois criadores. E é engraçado que neste livro encontrei ecos do primeiro - Uma Escuridão Bonita - (livro encantador e que também recomendo), quer através da escuridão, da noite, quer mesmo pela referência ao título numa fala do menino dirigida ao avô “ – Avô, deixa te mostrar como uma escuridão pode ficar bem bonita.”

A história centra-se num menino muito curioso que tem medo do escuro e que gosta de ler o brilho dos pirilampos e de comunicar com eles, que gosta de passear na Floresta, de “cientistar” e de conversar com o seu avô sobre os seus inventos e “cientistações”.
“- Pensei que todos os pirilampos pudessem brilhar, mas nunca soube que eles comunicavam.
- Ah, mas é porque eu já cientistei os pirilampos muitas vezes.
- Já quê?
- Já cientistei… Cientistar é o que nós, os cientistas e inventores, fazemos.
Cientistamos as coisas, os animais, e alguns até cientistam o mundo. Não sabias, avô?
Não, mas gosto de aprender.”

A cumplicidade entre o avô e o menino permite criar uma bonita e educativa história de descobertas da natureza e da ciência e abordar temas como a liberdade, a confiança, a superação do medo e a sabedoria dos idosos na voz dos pirivelhos (“pirilampos apagados”) que contam histórias aos pirilampos.
“ Temos de voltar. O brilho dos pirilampos não vem da força dos corpos. Vem da força das estórias. E são os pirivelhos que as contam.”

Adorei. Recomendo.

11 dezembro, 2022

𝑽𝒊𝒔𝒕𝒂 𝑪𝒉𝒊𝒏𝒆𝒔𝒂, de Tatiana Salem Levy

 

Autora: Tatiana Salem Levy
Título: Vista Chinesa
N.º de páginas: 122
Editora: 20|20 - Elsinore
Edição: Agosto 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3334)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Que livro! Que história! Que coragem! A da escritora, Tatiana Salem Levy, que narra a história de uma amiga muito próxima, vítima de violação. A da amiga, Joana Jabace, que ousou relatar, descrever o sucedido, o horror; que permitiu que as feridas ainda tão vivas na sua mente, no seu corpo fossem de novo e, mais uma vez, abertas; que fez questão de revelar a sua identidade.

A autora sublinha, no final, que se trata de um romance baseado numa história real. Este facto não suaviza a leitura, apenas nos dá a possibilidade de imaginar que o acto de violação, o crime, porque se trata de um crime, não tenha sido tão cruel, tão violento e que as marcas corporais e psicológicas não sejam tão profundas e traumatizantes. Pura ilusão! Percebemos, de imediato, que a personagem está marcada para a vida.
“(…) aquela terça-feira na mata ficou cravada não só na alma, como eu achei que fosse acontecer. Ficou impressa no corpo. Está tudo escrito na minha pele, sei que está, tudo o que aconteceu, até os detalhes que eu disse que tinha contado para a polícia, mas não contei, porque nunca se conta tudo, há sempre uma parte que falta.” (p. 51)

Tatiana Salem Levy não foge à cruel realidade. Apresenta-nos um testemunho intenso, duríssimo de uma luta individual pela superação de um acto horrível, pela aceitação de um corpo mutilado, pelas vivências inerentes à investigação policial, pela dolorosa integração na família e na sociedade.
A narração, sob forma de carta que a protagonista escreve aos filhos, não é linear, ocorre por camadas, por memórias, por fragmentos, por momentos do presente, por expectativas de um futuro melhor.
“Pensando melhor, não é bem uma carta. É mais um testemunho. Um testemunho, não. O testamento que eu não quero deixar para vocês.” (p. 43)

A autora foca-se nos detalhes. Cirurgicamente, narra o indizível; descreve a dor como se fosse sua, visceral; explora o corpo magoado e mutilado; desmonta a consciência traumatizada; enfrenta a luta pela superação do medo, do mal, da escuridão, mas também da vida, do seu amor de mulher e de mãe de dois filhos, da esperança.
“Cada vez que alguém acreditava ter encontrado a minha salvação, eu podia ver o sorriso nos seus olhos. E era essa aminha meta, esse o sentido que não me deixava afundar no sofá.” (p. 55)

O leitor, sem fôlego, sente a dor, a revolta, a rejeição do corpo, vive as agressões, as angústias, participa nos depoimentos, no reconhecimento do agressor, nas sessões de terapia e acompanha a recuperação lenta, muito lenta.
O leitor horrorizado pela maldade humana deixa-se envolver nos detalhes da história, deixa de respirar e dilacerado anseia pela superação, pela recuperação desta mulher, de todas as mulheres vítimas de violação.

LEIAM! Merece ser lido!



10 dezembro, 2022

Saber o que és

 

Foto minha


Saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;

e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;

tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,

e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.

Nuno Júdice


04 dezembro, 2022

𝑼𝒎𝒂 𝑪𝒂𝒔𝒂 𝒏𝒐 𝑭𝒊𝒎 𝒅𝒐 𝑴𝒖𝒏𝒅𝒐, de Michael Cunningham

 

Autor: Michael Cunningham
Título: Uma Casa no Fim do Mundo
Tradutor: Rui Pires Cabral
N.º de páginas: 363
Editora: Gradiva
Edição (4.ª): Outubro 2003
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3326)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Publicada em 1990, a narrativa situa-se nas décadas de 1960 a 1980. Com imensas referências musicais e cinematográficas, retrata as relações complexas de três amigos que tentam viver juntos, formando uma família pouco convencional. A narrativa foca-se nos problemas da vida familiar, nas dúvidas dos jovens, da vida adulta, no envelhecimento e na perda, mas também na amizade, no amor e ainda no desenvolvimento da SIDA na comunidade homossexual.

Narrada a quatro vozes, de forma alternada, a narrativa desenrola-se à volta das vidas de Jonathan e Bobby, amigos de infância, inseparáveis, que desenvolvem uma relação obsessiva apenas quebrada quando um deles vai para a universidade. Contudo, a relação é retomada mais tarde e alargada a Clare com quem formarão um singular triângulo amoroso.

“Bobby e eu [Clare], Jonathan e eu, o nosso amor e amizade misturados, a desequilibrada família que tínhamos tentado construir – tudo isso me parecera no dia anterior mais um disparatado episódio da minha vida.” (p.251)

Trata-se de um livro forte, sensível, inquietante, muito bem escrito. O autor escreve sem pressa, com precisão e com afeição, preocupado em dar resposta às fragilidades, às incertezas, às inquietações que assolam as personagens ao longo da narrativa e que, provavelmente serão as suas, já que o romance está na primeira pessoa. Fica claro que este livro se centra muito nas opções de vida de cada um. Marcadas por alegrias, tristezas, angústias, decepções, fugas, todas deixam “pegadas” na complexa caminhada da vida e do relacionamento humano.

É uma leitura reveladora, intimista e emocionante. Gostei da abordagem ao tema, da forma como nos apresenta a fragilidade do ser humano, as suas dúvidas, os seus pensamentos, as suas contradições, necessidades e interesses. No livro, os quatro narradores têm tempo e espaço para exporem as suas histórias, as suas visões do mundo, as suas ambições e sonhos, ou então permanecerem inertes, mergulhados nos seus pensamentos, nos seus silêncios.