29 julho, 2022

𝑺𝒊𝒓𝒂, de María Dueñas

 



Autora: Maria Dueñas
Título: Sira
Tradutora: Carla Ribeiro
N.º de páginas: 606
Editora: Porto Editora
Edição: Outubro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3335)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Sira sendo a continuação de O Tempo Entre Costuras, não requer, contudo, a leitura obrigatória do seu precedente porque a autora, nos momentos essenciais, contextualiza a narrativa. Porém, a compreensão do seu enredo torna-se mais aliciante se os lermos pela ordem de publicação.

Tal como o primeiro, temos uma narrativa arrebatadora, cheia de peripécias e reviravoltas que ocorre numa determinada época e em vários espaços e contextos. A protagonista, deste segundo livro, amadureceu e tornou-se, ainda mais, numa mulher do mundo, inteligente e glamorosa. Tendo, no início, uma vida tranquila, casada com o homem que ama e que lhe garante algum desafogo económico e uma convivência social acima da média, Sira, anseia ter um papel mais activo e não depender exclusivamente do marido. Após dez anos de agitação e de uma vida altamente atribulada, este recente conforto, sufoca-a.
É o destino que vai decidir por ela e a vai de novo catapultar para um recomeço, para uma vida de encontros e desencontros, alegrias e desgostos, experiências inauditas, desafios constantes enriquecedores e perigosos.

A escrita flui naturalmente e fornece-nos informação rigorosa e descrições associadas à época, a personagens e a lugares reais, nomeadamente, sobre o Império Britânico no período do pós-guerra em Londres e em Jerusalém; sobre o Franquismo e a visita de Eva Perón a Espanha e sobre Tânger. O livro dividido em quatro partes, coloca Sira na Palestina, na Grã-Bretanha, Espanha e Marrocos, respectivamente.
Sira, neste livro, reinventa-se e torna-se numa mulher ainda mais forte e corajosa que se mantém fiel às suas amizades mais sinceras (recuperamos muitas personagens do primeiro livro), não perdendo nunca o seu carisma e a sua independência.

Recomendo muito a leitura dos dois livros. As muitas páginas de ambos lêem-se num ápice. Factos históricos e ficção enleiam-se na perfeição. É um prazer acompanhar os pensamentos e as decisões de Sira.
Ser-nos-á possível ansiar por uma Sira ainda mais completa e cativante, num próximo livro?



24 julho, 2022

𝑻𝒂𝒃𝒂𝒄𝒂𝒓𝒊𝒂 | 𝑻𝒉𝒆 𝑻𝒐𝒃𝒂𝒄𝒄𝒐 𝑺𝒉𝒐𝒑, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

 



Autor: Frenando Pessoa | Álvaro de Campos
Título: Tabacaria | The Tobacco Shop
Tradutor para inglês: Richard Zenith
Ilustrador: Pedro Sousa Pereira
N.º de páginas: 68
Editora: Clube de Autor
Edição: Novembro 2013
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (BE)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Volto sempre a Fernando Pessoa com enorme prazer. Desta vez, pelas palavras e desenhos de Álvaro de Campos e Pedro Sousa Pereira, respectivamente.

Trata-se de uma edição lindíssima do poema “Tabacaria”. Em versão bilíngue, traduzido para o inglês por Richard Zenith, especialista de Fernando Pessoa.
Este livro de capa dura é uma verdadeira obra-prima. Para além do poema fabuloso, um dos meus preferidos, conta com a beleza das ilustrações que traduzem o sentido das palavras e com o entendimento e a paixão de Zenith tão bem explanados no posfácio.

Não vou esmiuçar o sentido do poema. Cada um terá o seu. Prefiro recomendar a sua leitura e de preferência nesta edição para quem não é viciado neste género literário.
Os desenhos e a explicação de Zenith completam e explicam os diversos e contraditórios estados de alma do sujeito poético que da janela do seu quarto observa e analisa a tabacaria, a rua, a vida, mergulhando numa rotina movida pela solidão, angústia e pessimismo. A negação do “eu” é uma constante ao longo do poema que inicia com os tão conhecidos quatro versos

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”


𝑪𝒊𝒔𝒏𝒆𝒔 𝑺𝒆𝒍𝒗𝒂𝒈𝒆𝒏𝒔- 𝑻ê𝒔 𝑭𝒊𝒍𝒉𝒂𝒔 𝒅𝒂 𝑪𝒉𝒊𝒏𝒂, de Jung Chang

 



Autora: Jung Chang
Título: Cisnes Selvagens - Três Filhas da China
Tradutor: Mário Dias Correia
N.º de páginas: 517
Editora: Quetzal Editores
Edição: 1995
Classificação: Romance histórico
N.º de Registo: 542

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Cisnes Selvagens- Tês Filhas da China é um belíssimo romance histórico sobre os grandes acontecimentos da China do século XX. Jung Chang mergulha nas suas memórias para nos relatar os tumultos políticos da ocupação japonesa até às políticas de Mao Zedong (Mao Tsé-Tun) vividos por três gerações de mulheres: a sua avó, a sua mãe e ela própria.
É através das perpectivas e vivências destas três mulheres que mergulhamos nesta aventura épica. A autora narra tradições, acontecimentos, reformas e transformações do seu país e da sua família ao longo de três gerações. De forma intimista, tomamos conhecimento das várias provações a que os pais foram submetidos para aderirem ao partido, sobretudo a mãe, dos momentos dolorosos vividos em família causados pelos “valores do partido” que se sobrepunham aos valores familiares.
São dilacerantes os relatos de episódios de extrema dureza que desvelam a angústia, o sofrimento e a incompreensão da mãe perante o alheamento e ausência do pai que sacrificava a sua vida pessoal e familiar em prol de uma causa.
É pela escrita que a autora tenta libertar-se dos traumas atrozes vividos na família, na escola, na sociedade. Bem cedo compreende que a sua família, que de início tinha privilégios devido à posição do pai, é também marcada pelo infortúnio, pela denúncia, pela perseguição, pela violência, pela tortura, pelas lutas constantes de um poder autocrático. Apesar de tudo e de todos, Jung Chang e os seus irmãos cresceram cercados de amor pelos seus pais e avó materna, mesmo estando muitas vezes separados.
Este facto bem como a coragem e a integridade dos seus pais vão facultar-lhe forças e discernimento para, silenciosamente, começar a duvidar da doutrina de Mao e tomar consciência das desigualdades sociais “O que fora que transformara as pessoas em monstros? Foi neste período que a minha devoção a Mao começou a esmorecer.” (p. 357)
É muito interessante acompanhar o seu confronto interior, as suas dúvidas, as emoções ao “desafiar abertamente Mao no tribunal do meu espírito.” (p. 483)

Recomendo muito. Ninguém sai incólume desta leitura que para além de nos permitir conhecer uma parte da História da China, nomeadamente, a destruição de um país e o aniquilamento de uma população causados pelo poder totalitário, faculta-nos, sobretudo, o testemunho visceral e intimista de uma mulher que se foca nas lutas travadas quer pela sua avó quer pela sua mãe. Destas quinhentas e poucas páginas, destaco como aspectos essenciais a compreensão da posição da mulher na sociedade chinesa; o auto conhecimento da própria autora; a esperança e as oportunidades necessárias para um futuro melhor.
“Tinha conhecido o privilégio e as denúncias, a coragem e o medo, tinha visto a bondade e a lealdade bem como as profundezas mais negras da alma humana. No meio do sofrimento, das ruínas e da morte, tinha sobretudo conhecido o amor e a indestrutível capacidade humana de sobreviver e procurar a felicidade. (…) Lancei um último olhar à minha vida passada e depois voltei-me para o futuro. Estava ansiosa por abraçar o mundo.” (p. 514)



21 julho, 2022

Há dias assim... de desassossego



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(...)

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

(...)

Fiz de mim o que não soube.
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara.
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho.
Já tinha envelhecido.
(...)


Tabacaria, Álvaro de Campos| Fernando Pessoa




11 julho, 2022

𝑴𝒐𝒓𝒓𝒆𝒓 𝑺𝒐𝒛𝒊𝒏𝒉𝒐 𝒆𝒎 𝑩𝒆𝒓𝒍𝒊𝒎, de Hans Fallada

 


Autor: Hans Fallada
Título: Morrer Sozinho em Berlim
Tradutor: Carlos Leite
N.º de páginas: 502
Editora: Relógio d'Água
Edição: Novembro 2016
Classificação: Romance
N.º de Registo: 3112


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Pouco tenho lido sobre a resistência alemã na ditadura nazista. Segundo o posfácio do editor português, esta narrativa “reporta-se aos acontecimentos reais, mas contém já interpretações, cria episódios ficcionados e novas personagens.”
Assim, é a partir da história real do casal Otto e Elise Hampel (Otto e Anna Quangel no romance) que o autor descreve a luta contra o regime de Hitler, dos horrores da vida alemã, sobretudo a berlinense, ao longo da segunda guerra mundial. Uma vida de medo, de desconfiança, de delação, de cobardia, de vícios, de tirania, de tortura.
“(…) É de tal maneira desgastante ter de prestar atenção todo o tempo, este medo que nunca acaba…” (p. 134).

Não vou revelar nada do enredo. É importante que o leitor vá mergulhando docemente na narrativa e que dela emirja, de vez em quando, para respirar e ganhar fôlego.
Hans Fallada constrói a sua narrativa de forma sublime e num estilo corrosivo. As suas personagens complexas e magnificamente construídas, revelam muito do carácter e do estatuto de cada figura-tipo da sociedade representada no romance. As duas personagens principais (o casal Quangel) são-nos apresentadas num crescendo, os meros operários exemplares e, por isso, insignificantes vão empreender uma campanha de resistência à propaganda nazista, primeiro na clandestinidade, de forma ingénua e aparentemente inofensiva, e depois na prisão pacífica e corajosamente.
“ (…) este terceiro Reich guardava surpresas sempre novas para os seus detratores mais acérrimos, a sua perversão transcendia a própria perversidade.”

A revelação de um país antissemita, cruel, delator, corrupto onde impera o medo, a violência, a morte é-nos feita de forma clara e objectiva. Tudo é dito, nada é evitado ou amenizado e o leitor não sai ileso de tão dolorosa e emotiva exposição.
“Camaradagem, rodadas de brindes, descontração, alegria, o repouso bem merecido depois de tanto trabalho a torturar os semelhantes e a conduzi-los ao cadafalso.” (p. 199)

Contudo, nem tudo é crueldade e, ao longo da narrativa, vamos mesmo assim descortinando actos de bravura, de solidariedade e de esperança.

Recomendo vivamente.




10 julho, 2022

𝑨 𝑪𝒐𝒏𝒕𝒓𝒂𝒅𝒊çã𝒐 𝑯𝒖𝒎𝒂𝒏𝒂, de Afonso Cruz

 


Autor: Afonso Cruz
Título: A Contradição Humana
N.º de páginas: 36
Editora: Caminho
Edição: Setembro 2010
Classificação: Infantil/Juvenil
N.º de Registo: (empréstimo)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Pequena pérola da literatura infantil portuguesa para ser lida por “humanos” de todas as idades.
Neste livro, Afonso Cruz apresenta-nos as observações e reflexões de uma criança curiosa e atenta às contradições do ser humano.
Numa simbiose toda ela contraditória de texto e ilustração, o autor, em tons de vermelho, preto e branco usa letras de tamanhos e tipos diferentes e desenhos expressivos para realçar a contradição humana.

Nenhum leitor fica imune à ironia e subtileza presentes nas narrativas (textual e imagética) que conduzem o leitor à constatação imediata das várias contradições. O autor desconstrói através do humor e de jogos de palavras a ideia inicial para no final a tornar menos óbvia.

Livro divertido e sério que parte do absurdo para nos fazer sorrir mas também reflectir.
Alguns exemplos:
- “À minha frente estava um casal de namorados, aos beijinhos. Eram 2 mas só tinham uma sombra (de tão agarrados que eles estavam)”
- “A minha tia gosta muito de pássaros mas prende-os em gaiolas. É uma pena."
- “Apesar de comer tanto açúcar, é uma pessoa amarga”