24 setembro, 2023

𝑱𝒖𝒏𝒕𝒐 𝒂𝒐 𝑴𝒂𝒓, de Abdulrazak Gurnah

 


Autor: Abdulrazak Gurnah
Título: Junto ao Mar
Tradutora: Eugénia Antunes
N.º de páginas: 293
Editora: Cavalo de Ferro
Edição: Setembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3423)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Junto ao Mar é o primeiro livro que leio de Abdulrazak Gurnah. Versa sobre questões actuais como a imigração de refugiados. A sua escrita, de teor auto-biográfica, dá voz às pessoas, foca-se na identidade e no destino de cada uma. Saleh Omar, o protagonista, chega a Inglaterra como refugiado oriundo da ilha de Zanzibar e ao requerer asilo político tem de enfrentar várias barreiras: a da língua (já que afirma não falar inglês), a do controlo de passaportes, a dos serviços sociais e a incompreensão e a rejeição de muitos.
“As pessoas como o senhor vêm para aqui em catadupa sem a mínia noção dos danos que provocam. Não pertencem aqui, não valorizam as mesmas coisas que nós, não pagaram por elas ao longo de gerações, e nós não vos queremos aqui.” (p. 22)

É um romance magnífico que aborda a problemática da emigração, como já referi, mas é também, e sobretudo, a revisitação a um passado histórico doloroso, a uma história de ajuste de contas entre duas famílias, a histórias “que estão sempre a escorregar-nos por entre os dedos, a mudar de forma, a contorcer-se para se escapulirem.” (p. 157).
À medida que o protagonista narra a sua vida, assimilamos a sua viagem interior de busca de identidade, a sua reflexão sobre valores como a ambição, a traição, a dignidade, a honra, o perdão e a amizade.
Numa clara alusão ao Bartleby, de Melville, o protagonista refere em várias situações e com interlocutores diferentes “Preferia não o fazer”, passando ao leitor a ideia de que pretende expiar os seus erros, redimir-se de todo o seu passado.

Recomendo. Eu, prometo ler outros do autor já que as suas temáticas me interessam.


18 setembro, 2023

É um adeus ...



                                                                                                                       ©  Bettina Baldassari

É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...

Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
sem lágrimas,
sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?

Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidade
Da nossa lucidez desencantada.

Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,E mais nada.

Agora,
o remédio é partir discretamente,
sem palavras,
sem lágrimas,
sem gestos.
De que servem lamentos e protestos,



Miguel Torga

















































O burro, o tigre e o leão

 

                                              (c) https://www.correiodamadeira.com/2022/04/nao-discuta-com-burros.html


Um burro diz a um tigre que a erva é azul!
"Não" retorque o tigre, "é verde"!

A troca de ideias fica azeda e resolvem recorrer ao Rei Leão para arbitrar a disputa. Bem antes de chegarem à clareira onde o leão descansava, o burro põe-se a gritar - " Vossa Majestade, a erva é azul, não é azul, a erva, Majestade?"
O leão responde-lhe:
- Sim, a erva é azul!

Diz então o burro: "Majestade, o tigre não está de acordo comigo e isso aborrece-me, que castigo lhe darás?"
- O tigre será punido com cinco anos de silêncio, diz então o leão, Rei da Selva.

O burro regozija e, saltando de contentamento, continua o seu caminho repetindo incansavelmente: " a erva é azul, a erva é azul..."

O tigre aceita a punição, mas pergunta ao leão: "Vossa Alteza porque me pune? Não é verde a erva, afinal?"
Diz-lhe o leão:
- Efetivamente é verde, a erva. "Porque me punis então?" pergunta o tigre.

Explica o leão:
- Isso não tem nada a ver com a questão de saber se a erva é azul ou verde. A tua punição deve-se ao facto de uma criatura corajosa e inteligente como tu tenha perdido o seu tempo a discutir com um louco fanático que não se ajusta à realidade ou à verdade, mas somente à vitória das suas crenças e ilusões. Nunca percas tempo com argumentos que não fazem sentido nenhum. Há pessoas que, quais que sejam as provas que lhes apresentemos, não têm a capacidade de entender o que lhes é dito. E outras há que, cegas pelo ego, pelo ódio e pelo ressentimento, não desejam senão uma coisa: ter razão, mesmo sem a ter.

Ora, quando a ignorância grita, a inteligência cala-se, remata o leão, Rei da Selva.


Fábula tunisina citada por Pedro Melvill Araújo, no seu artigo de opinião, no Diário de Notícias (22 setembro 2021)

https://www.dn.pt/opiniao/o-burro-o-tigre-e-o-leao-14147125.html




17 setembro, 2023

Tacteio em vão a claridade

 

                                                     © Nick Fedaeff - Girl and the Sea, 2014




Cego, tacteio em vão a claridade;
Louco, cuspo no rosto da razão;
E deambulo assim
Dentro de mim
Negação a negar a negação.


Miguel Torga




Chove

                                         

                                                 © Rui Palha - https://www.ruipalha.com/


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...


Fernando Pessoa, in Poesias.




16 setembro, 2023

𝑶 𝑻𝒂𝒎𝒂𝒏𝒉𝒐 𝒅𝒐 𝑴𝒖𝒏𝒅𝒐, de António Lobo Antunes

 


Autor: António Lobo Antunes
Título: O Tamanho Do Mundo
N.º de páginas: 284
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3405)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


“A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objectos aumentam nos naperons, inclinados para mim a escutarem (…)” é este o início do livro de ALA. Metáfora inquietante, porém objectiva, que acompanha de forma repetida (como um eco) o leitor ao longo da narrativa.

A história é narrada a quatro vozes, contudo é a voz da solidão que se impõe. O protagonista, homem doente de 77 anos vive os dias mergulhado nas suas memórias que começam a esvanecer-se. “porque a vida, já se sabe é madrasta, que coisa estranha a memória, ela de há tempos para cá ia jurar que a faltar-me, tantos espaços, de repente brancos, nada de modo que o passado se desequilibra” (p. 16).
A solidão é enorme e devastadora; a solidão é assombrada pela “dor escondida”, é medida pelos “estalos dos móveis” e pelo “pânico das ambulâncias na rua”; a solidão é “um cano que vibra no interior da parede”.
É notável a forma como nos apropriamos da narrativa e nos deixamos envolver pelos sons que medem tamanha solidão. O paradoxo só torna mais verosímil o silêncio, o vazio da casa, do quarto do hospital, do mundo.

ALA já nos habituou a uma prosa complexa escrita ao ritmo de ideias que se misturam e confundem, de um pensamento que surge, de uma pausa… Neste livro a complexidade revela-se no pendor repetitivo, exaustivo das frases, das ideias que nos enclausuram na vida, nas vidas das personagens. Não há fuga possível. E o tamanho do mundo torna-se cada vez mais pequeno, mais fechado, mais silencioso.

Recomendo a leitura.


Fernando Botero - 1932 | 1923

 

       

                   Dancers at the bar                                              Adán y Eva



Morreu hoje, aos 91 anos Fernando Botero, o artista plástico colombiano, conhecido mundialmente pelas suas figuras humanas redondas e volumosas.

Nascido em Medellín, na Colômbia, em 1932. Botero afirmou numa entrevista que "a arte deve dar prazer, uma certa tendência a um sentimento positivo".
tem obras espalhadas pelo mundo e em Lisboa, há uma escultura em bronze, intitulada "Maternidade", no topo do Parque Eduardo VII.



                                                                     Maternidade




Não te rendas


                                                                          Foto minha (GR)





Não te rendas, ainda estás a tempo
De alcançar e começar de novo,
Aceitar as tuas sombras,
Enterrar os teus medos,

Libertar o lastro,
Retomar o voo.

Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem
Perseguir os teus sonhos,
Destravar o tempo,
Remover os escombros,
e destapar o céu.

Não te rendas, por favor não cedas,
Mesmo que o frio queime,
Mesmo que o medo morda,
Mesmo que o sol se esconda,
E se cale o vento,

Ainda há fogo na tua alma
Ainda há vida nos teus sonhos.

Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o quiseste e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não há feridas que não cure o tempo.
Abrir as portas,
Tirar os ferrolhos,
Abandonar as muralhas que te protegeram,

Viver a vida e aceitar o repto,
Recuperar o riso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo,
Celebrar a vida e retomar os céus.

Não te rendas, por favor não cedas,
Mesmo que o frio queime,
Mesmo que o medo morda,
Mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
Ainda há fogo na tua alma,
Ainda há vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um começo novo,
Porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, porque eu te amo.

Mario Benedetti




15 setembro, 2023

Não digas nada!




© Fernando Pessoa' Portrait (1983) - Júlio Pomar (1926)



Não Digas Nada!

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa, in Poesia (1930-1935)

13 setembro, 2023

100 Anos de Natália Correia

 


O Livro dos Amantes

 II 

Harmonioso vulto que em mim se dilui. 
Tu és o poema 
e és a origem donde ele flui. 
Intuito de ter. Intuito de amor 
não compreendido. 
Fica assim amor. Fica assim intuito. 
Prometido. 

Natália Correia




06 setembro, 2023

Leio o amor

 

                                       ©  Man Ray - Primacy of Matter over Thought (1929)





Leio o amor no livro
da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.


Nuno Júdice



03 setembro, 2023

𝑶 𝑷𝒓𝒐𝒇𝒆𝒔𝒔𝒐𝒓 𝒅𝒆 𝑫𝒆𝒔𝒆𝒋𝒐, de Philip Roth

 

Autor: Philip Roth
Título: O Professor de Desejo
Tradutor: Francisco Agarez
N.º de páginas: 301
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3247)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Philip Roth é um escritor marcante e de leitura obrigatória. Possuidor de uma verve irónica, bem-humorada e, simultaneamente, devastadora e comovente, impõe-nos uma narrativa mordaz e reveladora de um erotismo “devasso”.

Philip Roth cria em David Kepesh uma personagem hedónica e cínica, numa luta constante com os seus instintos mais primitivos. Mas não temam, não é esta a imagem que prevalece de Kepesh. A sua história não se cinge a paixões e sexo, a partir de um dado momento, inflecte numa reflexão e num questionamento sobre a sua vida, sobre as suas frustrações pessoais e relacionamentos inconcludentes e circunstanciais que o levam ao cadeirão do psicólogo.”Todas as noites dou voltas na cama com o pesadelo de não amar ninguém. (,,,) Quanto tempo faltará até me fartar de tanta inocência- até que a doce sensaboria de uma vida com Claire comece a enjoar, a saturar, e eu volte a sair por aí, chorando aquilo que perdi e procurando o meu caminho?”

Como já referi, não é um livro só sobre erotismo, é sobretudo, e na minha opinião, um livro maravilhoso sobre literatura. Kepesh, extraordinário professor universitário, especialista em Tchekov e Kafk, faz incursões literárias magníficas e relaciona o seu hedonismo problemático com algumas histórias destes autores.

É nesta relação que reside a mestria e a genialidade de Roth. Na narrativa, ele atribui a Kepesh o papel de doutorando que tem de redigir uma tese “sobre a desilusão romântica” e assim, aproveita certas personagens da literatura para justificar o seu comportamento movido pelo desejo.

Outro exemplo demonstrativo da sagacidade do autor é a redacção da comunicação que Kepesh prepara para o seu primeiro dia de aulas. Em vez de abordar as ideias gerais do curso de Literatura 341, propõe aos alunos falar de si, de factos íntimos, da sua história erótica, de “confessar o inconfessável – a história do desejo do professor”. Kepesh refere ainda na sua comunicação que adora ensinar literatura e que “Raramente me sinto tão bem como quando estou aqui com as minhas páginas de apontamentos, e com os meus textos anotados, e com pessoas como vocês. Para mim não há nada na vida que se compare com uma sala de aula. (…) E fora daqui não é provável que encontrem facilmente oportunidades de falar sem constrangimento sobre aquilo que foi para homens tão sintonizados com os combates da vida como foram Tolstoi, Mann e Flaubert. Talvez não saibam como é comovente ouvir-vos falar com convicção e sinceridade sobre solidão, doença, perda, sofrimento, desengano, esperança, paixão, amor, terror, corrupção, calamidade e morte…” (p. 215).

Fica clara a relação do comportamento do protagonista com as suas personagens literárias que tanto admira.

É um livro apaixonante. Recomendo.




01 setembro, 2023

O primeiro do último

 



Hoje, é o primeiro do 44.º ano.

Apresentei-me ao serviço;

preenchi papelada;

participei numa reunião (daquelas que causam urticária);

vi algumas caras novas, desinteressantes;

vi outras novas, mas já conhecidas e também desinteressantes;

saudei muitas  há muito conhecidas, cansadas, fingidas;

saudei outras tantas conhecidas, um pouco menos cansadas, menos fingidas;

abracei algumas, sorridentes; 

beijei poucas, sinceras, amigas;

senti a falta de uma jovem sorridente e bem disposta;

senti a ausência do sorriso, do olhar trocista e da elegância de uma figura esguia;

almocei em boa companhia, amiga; 

Conversámos... 

A rotina instalou-se, durará mais sete meses.

Tracei objectivos, simples, inequívocos,... 

"Nã te rales" tentarei que seja o meu lema!