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05 março, 2025

𝑵𝒂𝒔 𝑻𝒖𝒂𝒔 𝑴ã𝒐𝒔, de Inês Pedrosa

 


Autora: Inês Pedrosa
Título: Nas Tuas Mãos
N.º de páginas: 227
Editora: D. Quixote
Edição (7.ª): Março 2003
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1664)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Nas Tuas Mãos integra três partes, com dez textos cada, que nos confrontam com três vidas, três mulheres, três gerações. Três perspectivas autobiográficas – Jenny, a aristocrata; Camila, a fotojornalista e Natália, a arquitecta - que começam na década de trinta sob o regime conservador, opressivo, patriarcal e bafiento de Salazar e findam nos anos noventa.

Cada uma das partes é introduzida por uma epígrafe que exalta a força da amizade, do amor. Contudo, na minha opinião, é a terceira, de Vergílio Ferreira “Não sei fingir que amo pouco quando em mim ama tudo” que melhor colige os sentimentos e os comportamentos das três mulheres.

Jenny, mãe e avó, num diário intimista e confessional, em diálogo com o falecido marido, lega-nos os seus segredos de um casamento de fachada, a sua força para combater as traições do homem que ama, decepções de amizade, mudanças sociais. Camila selecciona dez fotografias para, a partir delas, recordar e nos descrever uma época turbulenta de desencontros e perdas, de perseguição e tortura da ditadura, de dedicação às lutas revolucionárias, de envolvimento, como repórter, na guerra colonial de Moçambique, na busca de uma terapia para a solidão e o luto. Mas é no ato obsessivo de fotografar que ela resgata a verdade, a sua verdade. Natália, concebida em Moçambique, personifica a actualidade e é nas cartas que escreveu à avó Jenny, que a vamos descobrir. Nelas, ela revela o seu sucesso profissional, o seu distanciamento com a mãe, a procura da sua história, do seu pai, o (des)encontro com o amor e, sobretudo, a sua admiração pela avó. Natália descobre-se e define-se através das vidas misteriosas e independentes das suas antecessoras. E acaba por concluir que, apesar de tudo, constituem três gerações de solidão que se continuam.

Numa escrita muito poética e comovente, a autora apresenta-nos três vozes que vagueiam desiludidas num mundo agitado e perdidas no campo amoroso; que partilham a extravagância da classe alta em Lisboa; o idealismo das lutas dos anos sessenta e a impaciência e o desalento da década de oitenta/noventa.

Gosto sobremaneira da voz de Jenny. É um discurso intimista que revela uma mulher de olhar triste e doce, que assiste à paixão do marido por Pedro; que apaixonada vive louca e dolorosamente só numa casa enorme. É a voz que silencia a homossexualidade do marido, inaceitável na época; que denuncia a sua intimidade, que reflecte sobre a sua longa vida que acaba melancolicamente num reconhecimento de desistência, de “desaparecimento dos sonhos.”

Para concluir, Nas Tuas Mãos é uma obra sobre o íntimo de três mulheres, mas também sobre a transformação de uma sociedade. Através do olhar de cada uma são-nos apresentados fragmentos de um país que vive uma crise de identidade cultural, social e política.




01 novembro, 2009

O muro do fundamentalismo por Inês Pedrosa


«Caim», de José Saramago, é um romance, isto é: uma ficção literária. É, além disso, um bom romance, isto é: uma narrativa de grande beleza que rasga o tecido dos saberes sossegados e ergue um vendaval de perguntas.


No lançamento deste romance, no «Escritaria» de Penafiel, evocando o Padre António Vieira, Saramago recordava essa coisa só aparentemente simples: escrever é «conhecer o sítio das palavras». A sua disposição exacta na frase. Escrever é escolher, e a escolha pressupõe conhecimento das múltiplas possibilidades em jogo. Saramago debruçou-se sobre a Bíblia, o livro que determinou e determina ainda a visão do mundo que nos enforma, e interrogou as escolhas de deus – assim, com a mesma letra minúscula que usa para cada membro da humanidade por ele criada, porque é preciso abandonarmos a maiúscula da reverência quando queremos interrogar genuinamente. E viu-se mergulhado num dilúvio de vozes escandalizadas – algumas, poucas, de forma transparente, e a maior parte delas disfarçando o escândalo nas trincheiras da análise intelectual de segundo ou terceiro grau. Explicam-nos essas vozes doutas, esforçando-se por conter a ira nos infolios da erudição (às vezes mal; salta-lhes o tom), que a Bíblia não pode ser lida de forma literal: tudo o que lá está é para ser interpretado, deduz-se que pelos doutores que reclamam a interpretação. Talvez por isso, de facto, a Igreja Católica nunca tenha feito grande esforço para publicitar o Velho Testamento, antes pelo contrário: nos meus dez anos de catequese consecutiva só me mandavam ler o Novo Testamento, e por partes. Quando, em 1991, Saramago publicou « O Evangelho Segundo Jesus Cristo», a polémica foi alta, mas o escândalo circunscreveu-se às instâncias religiosas propriamente ditas – e a um patético senhor do PSD, então com poder bastante para impedir que a obra fosse considerada num prémio europeu. Agora apareceu outro senhor do PSD, felizmente sem poder, a pôr-se em bicos dos pés para aproveitar a onda.
O escritor leu e releu a Bíblia e verificou uma evidência: que ela é um «manual de maus costumes, um catálogo de crueldades». Aliás, Saramago não foi, nem pretende ser, a primeira alma a ter feito essa verificação: sim, a Bíblia é também, entre outras coisas, esse catálogo. Há cerca de dois anos, Christopher Hitchens publicou « Deus não é Grande – como as religiões envenenam tudo» e Fernando Savater publicou «A Vida Eterna», dois excelentes livros sobre a questão da maldade divina – ou de como os homens inventaram deus para se matarem uns aos outros. Na época, não vi nenhum dos que agora se assanham contra Saramago contestar as teorias idênticas de Hitchens ou Savater. É curioso que um romance, mesmo antes de ser lido, cause um terramoto que nenhum destes ensaios causou.

Uma vez um padre irritou-se comigo porque eu me recusei a ler, num casamento, aquela célebre carta de São Paulo que começa por dizer que o homem é a cabeça da mulher como Cristo a cabeça da Igreja, e exigi ler um texto do Génesis que a ele lhe parecia «muito carnal». Necessitado de exegese e enquadramento, portanto. Sucede que numa sociedade laica e livre ninguém tem que se fixar às leituras alheias. A acusação, repetida por intelectuais ( e aparentados) de diversos quadrantes, de que, ao escolher a letra da Bíblia, Saramago manifesta um espírito fundamentalista igual ao dos que, em nome da sua Bíblia ( no caso, o Corão, que aliás tem muitos enredos e personagens em comum com a Bíblia), se explodem a si mesmos e aos outros, não tem razão de ser. Há uma diferença radical entre escrever e matar, perguntar e bombardear, exercer a liberdade e proibi-la. Estas mistificações têm um objectivo: o de rasurar como terroristas, loucos ou ignorantes os que pensam de maneira diferente. Isso, sim, é fundamentalismo. Verifico, com preocupação, que esse fundamentalismo permanece muito aceso em Portugal.

Saramago tem o direito de ler na Bíblia o que lá está escrito. Cada palavra existe na frase para dizer alguma coisa – é aquela palavra e não outra que lá está. Todo o livro digno desse nome traça um pacto sagrado com a justeza de cada palavra. Escreveu Walter Benjamin: « A arte de narrar tende a acabar porque o lado épico da verdade – a sabedoria – está a morrer». A obra de Saramago prova que esta morte não está iminente.

E conseguiu já um feito notável: trazer para o horário nobre da televisão o debate sobre os fundamentos da nossa civilização, o sentido da vida e da morte – em vez da politiquice e do futebol que são os únicos debates constantes neste nosso mundo de crentes.

Inês Pedrosa

Artigo publicado na revista "Única" do jornal Expresso, a 31 de Outubro de 2009