31 julho, 2020

Adoração, de Cristina Drios




OPINIÃO

É o primeiro livro que leio da autora e gostei bastante. Trata-se de uma trama diferente, muito bem estruturada e concebida já que nela se cruzam dois tempos,  o passado e o presente. A acção ocorre em Palermo e inicia com um crime perpetrado pela Máfia. Poder-se-á pensar que estamos perante um policial, mas não. 

A autora, ao longo da narrativa, vai conduzindo o leitor através dos meandros da intriga, apresentando-lhe Antónia Rei, narrando-lhe detalhes da vida de Caravaggio, revelando-lhe aspetos da investigação de Salvatore Amato, criando suspense à volta dos personagens e de uma obra de Michelangelo Merisi, o Caravaggio. 

«A tela Natividade com S. Francisco e S. Lourenço, ou A Adoração, pintada em 1609 por Michelangelo Merisi, o Caravaggio, foi roubada do Oratório de São Lourenço, em Palermo, a 17 de Outubro de 1969 e continua desaparecida.” 

É uma história maravilhosa, cheia de segredos e mistérios que muito nos diz sobre Caravaggio e a sua arte. 

“Um brigão, um arruaceiro, um desalmado sedutor que nada, excepto a sua paleta, domava. Eis o homem; um cão desaçaimado a ladrar na noite escura. Cedo na sua vida, viu-se homicida. E soube-se foragido.
A irascibilidade perdoa-se aos génios. (…) Caravaggio o génio da pintura dos corpos e das sombras, foi perdoado. “ (p. 94)

Numa escrita cuidada e límpida, dificilmente separamos a realidade da ficção. Tal como na obra de Caravaggio, há um constante jogo de luzes e sombras, de espelhos, um cruzamento de esperança, de dor, de morte e de desencontros. 
Recomendo vivamente.



27 julho, 2020

O Desfile de Primavera, de Richard Yates


OPINIÃO

Neste romance, Yates logo no início, dá o mote em relação ao destino das protagonistas da narrativa. “Nenhuma das irmãs Grimes estava destinada a ser feliz”. 

E assim acontece, de facto. Apesar de muito diferentes e de terem tomado opções de vida antagónicas, o augúrio cumpre-se. Resta ao leitor descobrir as razões que tornam infelizes Sarah e Emily. A primeira, a mais velha, casou, teve filhos e assumiu o casamento como um acto “sagrado” pelo que suportou tudo... Emily, a mais nova e mais independente, opta por uma vida inconstante quer nas relações amorosas quer nos empregos. Admirada pela família, é considerada “a personificação da mulher liberta”. Mas esta liberdade vai transformá-la numa mulher infeliz e egoísta. Apesar da existência de um amor familiar, por vezes mais aparente do que efectivo, as mulheres da família, incluindo a mãe, divorciada há muito, caem no vício do álcool. Se assinalam um evento, uma festa, um encontro, celebram com álcool! Se fracassam ou se algo corre menos bem, mergulham no álcool! 

“Com a mãe em coma a uns trinta quilómetros, as duas abraçaram-se embriagadas e choraram pela perda do pai.” (p. 150) 

Assim, de forma sucinta e clara, o autor narra-nos a vida desta família, com destaque para a de Emily, e mostra-nos o essencial para compreendermos o destino das personagens. Sem contemplação assistimos à degradação das irmãs. Yates não poupa o leitor, apresenta descrições detalhadas de momentos de amor ilusório e transitório, de vivências emotivas e sofridas, mas, no final, o que prevalece é a melancolia e a solidão a que são votadas as personagens. 

“Tenho quase cinquenta anos e nunca compreendi nada em toda a minha vida” - termina Emily (p. 245).


23 julho, 2020

Folhas de viagem, de Blaise Cendrars



OPINIÃO



Feuilles de Route/ Folhas de Viagem é um diário de bordo, em forma de poema. Em janeiro de 1924, o autor é convidado para ir ao Brasil. Embarca no Havre, a bordo do Formose, e chega ao Rio de Janeiro, em fevereiro do mesmo ano. Ao longo da viagem, vai registando as suas impressões… São 40 os poemas, nesta edição em bilingue (francês e português). Eis dois excertos:

SUR LES CÔTES DU PORTUGAL 
Du Havre nous n’avons fait que suivre les côtes comme les navigateurs anciens
Au large du Portugal la mer est couverte de barques et de chalutiers de pêche 

Elle est d’un bleu constant et d’une transparence pélagique
Il fait beau et chaud
Le soleil tape en plein
(…) 

SAINT-PAUL
J’adore cette ville
Saint-Paul est selon mon cœur
Ici nulle tradition
Aucun préjugé
ni ancien ni moderne
(…) 

E termina desta forma: 

POURQUOI J’ÉCRIS?
Parce que… 

Para mim, simples leitora, esta resposta agrada-me, não preciso de saber por que escreve, basta-me apreciar o que escreve tão bem! 



22 julho, 2020

Duas Histórias de Praga, de Rilke



OPINIÃO

Estas duas histórias, escritas pelo autor quando tinha 24 anos, retratam o ambiente político agitado pelo confronto nacionalista, no final do século XIX, em Praga. Na altura, era habitada por cento e quarenta mil checos e vinte e sete mil alemães.
“Foi ali [no Café Nacional, por poetas e pintores, actores e estudantes] que Wanda ouviu falar das questões da “nação” e que tomou, pela primeira vez, conhecimento das suas aflições e dificuldades e das suas aspirações secretas e profundas” (p.101)
Os protagonistas são jovens estudantes que vivem a ocupação alemã e por conseguinte acompanham os ideais revolucionários da época. 
As duas histórias apresentam a mesma temática e algumas personagens em comum. No segundo conto 
Gostei de ler e de conhecer o testemunho do autor sobre esta época conturbada da sua cidade natal.


19 julho, 2020

Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, de Gao Xingjian,



OPINIÃO



Pequeno livro de escrita simples e subtil, composto por seis contos, sendo que o último – Instantâneos - consiste numa seleção de apontamentos, observações, descrições, … 

Os cinco primeiros contos abordam situações comuns que refletem não só o modo de pensar da sociedade oriental, mas também o da ocidental. Temos temas como a felicidade de um jovem casal em lua-de-mel; a brevidade da vida retratada num acidente mortal com as habituais e múltiplas opiniões da multidão “entendida”, situação depressa resolvida e esquecida; a indiferença perante as dificuldades do outro, um jovem quase morre afogado e ninguém se apercebe; o desinteresse e a dor causada pela ausência do outro, uma rapariga chora num parque enquanto espera, em vão, que o outro chegue; o encontro e a lembrança de um amor passado e que já não faz sentido; a saudade de uma infância feliz rememorada na procura dos lugares onde viveu com o avô e a dor sentida ao descobrir que desapareceram e foram substituídos por uma cidade de betão. 
É no último conto que deu título ao livro (o meu preferido) que o autor melhor explana a sua escrita poética e melancólica, porque sendo mais extenso, tem espaço para criar uma história mais comovente, mais emotiva. Ao contrário das primeiras narrativas, que sendo mais curtas, nem tudo é dito, cabe ao leitor ler nas entrelinhas e captar a profundidade da mensagem.



17 julho, 2020

A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf


OPINIÃO

Foi uma viagem maravilhosa através da Suécia e na companhia de um grupo muito simpático de patos bravos, de um ganso branco e de Nils. O jovem Nils, é-nos apresentado como um jovem rebelde e cruel para os animais da casa, até que um dia, algo lhe acontece e Nils inicia uma viagem muito particular que o levará até à Lapónia. Para o nosso jovem protagonista será uma viagem de aprendizagem e de ensinamentos que o transformará completamente. Nils aprende a conhecer o seu país, a sua história e geografia, apreende valores como a liberdade, a solidariedade, a humildade e o respeito pelo outro e pela natureza. 
Através de uma história cativante, a autora revela-nos muito do seu país, das suas tradições e crenças, mas o mais importante são os ensinamentos e valores transmitidos.





11 julho, 2020

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis


OPINIÃO


Livro maravilhosamente bem escrito. Capítulos curtos. Enredo interessante e fora do comum já que o narrador conta a sua vida como defunto. Através das suas memórias póstumas, o protagonista, Brás Cubas, tece fortes críticas à sociedade burguesa da época. O facto de estar morto permite-lhe abordar os assuntos sem rodeios. E informa o leitor, interpelando-o directamente, disso mesmo. 

“Talvez espante o leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a fraqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião. O contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade!” (pp. 83 e 84) 

Através de uma ironia fina e de um sentido de humor apurado, Brás Cubas põe em evidência a hipocrisia dos homens e da religião, dos valores familiares e políticos, da escravatura. Ele próprio, que se considera medíocre, inútil e fútil, aceita as condições vigentes, o que lhe permite abordar os assuntos com propriedade. É falando dele que ridiculariza os outros. 

No último capítulo, ao qual atribuiu o título “Das Negativas”, ele define-se desta forma: “ Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. (…) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. (p. 314). Porém, viveu uma grande história de amor (que ocupa grande parte da narrativa), cimentada no adultério. Percebemos, ao longo do livro, que Brás Cubas é um fraco que se deixa arrastar pelas ocasiões, que não luta pelos seus interesses. Senão vejamos: “Não a vi partir; mas à hora marcada, senti alguma cousa que não era dor nem prazer, uma cousa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico.” (p. 245) 

Recomendo vivamente este livro. Confesso que eu própria já o devia ter lido. É incompreensível que um livro desta qualidade tenha ficado tanto tempo na estante. Contrario a consideração do narrador, no capítulo “O Senão do Livro”, ao referir que o seu livro é “enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica” (p. 172). Pelo contrário é muito vivo e satírico com laivos de humor cirúrgicos. 

Termino com esta citação que vem no seguimento da anterior e que para mim revela a genialidade do autor.
(…) vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…” (p. 172)



04 julho, 2020

No vazio da Onda- Trio e Quarteto, de R. L. Stevenson


OPINIÃO


Esta narrativa que se divide em duas partes tem tanto de cómico como de trágico. A acção inicia em Papeete, na ilha de Taiti, continua em viagem pelo mar (primeira parte) e vai terminar na “Ilha nova” (segunda parte), uma ilha perlífera.
A história incide no fracasso, no desencanto da vida, na redenção. Os protagonistas são três homens com características comportamentais bem diferentes e que por razões também diversas se encontram em Papeete, a viver miseravelmente na rua. Com identidades falsas, os três embarcam, literalmente, numa aventura que não terá um final feliz para todos. 

É um livro de leitura agradável que nos faz reflectir sobre o carácter das pessoas e as opções de vida.