31 agosto, 2023

A tua nudez ...

 

                                                                    Foto minha (GR)


Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste

Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas

Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes

Quis a tua nudez 
Não quis que te despisses


David Mourão-Ferreira in 366 Poemas que Falam de AMOR



30 agosto, 2023

𝑶 𝑨𝒄𝒐𝒏𝒕𝒆𝒄𝒊𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐, de Annie Ernaux



Autora: Annie Ernaux
Título: O Acontecimento
Tradutora; Maria Etelvina Santos
N.º de páginas: 87
Editora: Livros do Brasil
Edição: Setembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3401)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É o quarto livro que leio da vencedora do Prémio Nobel da Literatura 2022. Todos autobiográficos e escritos com enorme lucidez e acutilância. Mas este supera em tudo as leituras anteriores.

Annie Ernaux mergulha nas memórias dos seus 23 anos e, com recurso a uma agenda e a um diário íntimo, transforma em trama literária o aborto clandestino que então viveu. Sem pudor, ela narra todos os acontecimentos ocorridos a partir do momento em que decide rasgar o certificado de gravidez passado pelo médico. Contudo, a decisão de o fazer não foi fácil nem imediata, “Há anos que giro à volta deste acontecimento da minha vida. (…) Comecei esta narrativa há uma semana, não tendo a mínima certeza de vir a prossegui-la.” (p. 18). Ao longo da leitura, percebemos e aceitamos as suas hesitações, mas desejamos ansiosamente que a termine para que possamos, com ela, enfrentar o acontecimento e para que o seu desejo se concretize, como referiu numa das epígrafes, “que o acontecimento se transforme em escrita. E que a escrita seja acontecimento.” (cita Michel Leiris).

Ela também tem consciência de que este relato, directo e cru, tão característico da sua escrita, pode não agradar a todos. Na página 41, ela regista essa advertência, mas decide continuar pois o mais importante é revelar a “realidade das mulheres”, a “experiência vivida de uma ponta a outra através do corpo” e manifestar a sua oposição à “dominação masculina do mundo”.

Trata-se de um testemunho corajoso e doloroso que levanta questões “acerca da vida e da morte, do tempo, da moral e da interdição, da lei” (pp.83-84),da vergonha, do pecado e que revela a experiência dramática vivida por muitas mulheres, a caminhada solitária, a incerteza.

“Caminhava pelas ruas com o segredo da noite de 20 para 21 de janeiro no meu corpo, como uma coisa sagrada. Não sabia se tinha estado no auge do horror ou da beleza. Sentia orgulho. (…) Foi, sem dúvida, algo desse orgulho que me fez escrever esta narrativa. (p.80).

E eu como leitora e mulher sinto e partilho esse enorme orgulho.


29 agosto, 2023

Despedida

 

                                       Kai Samuels-Davis | The Hand  

 

Despedida


Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.

Cecília Meireles


28 agosto, 2023

Deslumbres!





Bazar


Panos flutuantes de todas as cores
às portas do vento, no umbral da tarde.

E olhos negros.

Jardins bordados: roupas, sandálias
como escrínios de seda para alfanjes.

E negros olhos.

Molhos de penas de pavão. Colares de nardo
 a morrerem do próprio perfume
entre tufos de fios de ouro.

E os delicadíssimos dedos.

Pratos de doces verdes cor-de-rosa:
pistache, coco, amêndoa, gulab.

Lábios de veludo.

Caixas, bandejas, aguamanil, sineta,
e o mundo do bídri: noite de chumbo e lua.

E olhos negros. E negros olhos. 

Pingentes, borlas, ébano e laca,
feltros vermelhos, pulseiras de mica,
filigranas de marfim e ar.

E os dedos delicadíssimos.

Cestos cheios de grãos. Frigideiras enormes.
Grandes colheres. Muita fumaça. Muitos pastéis.

Lábios de veludo.

Corolas de turbantes. Brinquedos. Tapetes.
O homem que cose à máquina, o que lê as Escrituras.

Olhos negros.

Portais encarnados, cor de mostarda, verdes.
Velhos ourives. Ai, Golconda!
E uma voz bordando músicas trêmulas.

Negros olhos.

Bigodes. Balanças. Barros, alumínios
Muitas bicicletas: porém o passo rítmico das mulheres majestosas.

Aromas de fruta, incenso, flor, óleo fervente.

Sedas voando, pelo céu.

E os nossos olhos. Os nossos ouvidos. Nossas mãos.
(objetos banais)


Cecília Meireles, Poemas Escritos na Índia



21 agosto, 2023

𝑬𝒔𝒔𝒂 𝑮𝒆𝒏𝒕𝒆, de Chico Buarque

 


Autor: Chico Buarque
Título: Essa gente
N.º de páginas: 195
Editora: Companhia das Letras
Edição: Dezembro 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3462)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A leitura de Essa Gente flui agradavelmente porque se estrutura com pequenos capítulos – entradas de diário e de cartas – e com uma escrita simples, o que conferem um certo dinamismo à narrativa. Chico Buarque é, contudo, incisivo na crítica social do seu país, à política de Bolsonaro (as datas conferem este facto). Com subtileza e sentido de humor cria uma personagem, Manuel Duarte, escritor que sofre de “síndroma de Bartleby na Literatura”, isto é, “doença” que atinge certos criadores que, apesar de revelarem uma consciência literária muito exigente, os impede de escrever momentaneamente ou para o resto da vida. Enrique Vila-Matas explora muitíssimo bem este assunto no seu livro Bartleby & Companhia.

Voltando ao livro em análise, o autor situa a acção no Rio de Janeiro e oferece-nos um enredo fascinante que põe a nu quer a decadência da personagem quer a do país.

Chico já nos habituou à crítica social e política, as suas canções interventivas há muito que o fazem, pelo que não estranhamos o conteúdo. Também não posso concluir que este livro se cinge à crítica social, é-o efectivamente, mas é, na minha opinião, um hino às relações humanas, aos comportamentos das pessoas. Aliás, o título transparece isso mesmo. Há todo um desfilar de personagens tipificadas que se movem nas várias camadas sociais do Rio, que se relacionam com Duarte e as suas ex-mulheres e que denunciam as crises amorosas, financeiras e criativas de um escritor que não consegue escrever o romance que lhe garantirá a manutenção do seu prestígio e da sua conta bancária.

O leitor terá de intuir nas entrelinhas (como numa partitura?) porque os factos são narrados com muita delicadeza e subtileza, não há juízos de valor e apesar de se focar num tempo actual, é, porém, muito revelador da essência social do país, desde há muito. Quem não ouviu falar das favelas, do contrabando, da violência, do racismo, da corrupção? Da crescente e assumida estratificação social? Da vida de gente pobre, invisível, que tudo faz para sobreviver? “É isso o Brasil” a alma de Essa Gente, como é referido por mais de uma vez no livro.

Recomendo a leitura por tudo o que já referi, mas sobretudo porque penso que se trata de uma consciencialização contra a ignorância, a corrupção e a violência; de um apelo à luta pela liberdade, pela igualdade de direitos e deveres. Em suma, o desejo de um futuro melhor, de um país mais moderno e democrático.



20 agosto, 2023

Ausência !

 



Ausência


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces⁣
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.⁣
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida⁣
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.⁣
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.⁣
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados⁣
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada⁣
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.⁣
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.⁣
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.⁣
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.⁣
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.⁣
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.⁣
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.⁣
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.⁣
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.⁣
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.⁣
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.⁣


Vinicius de Moraes, Antologia Poética


18 agosto, 2023

Il pleure dans mon coeur

 


                                      Henri Cartier-Bresson | Pluie | Paris



Il pleure dans mon cœur
Comme il pleut sur la ville;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon cœur?


Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits!
Pour un cœur qui s’ennuie,
Ô le chant de la pluie!


Il pleure sans raison
Dans ce cœur qui s’écœure.
Quoi ! nulle trahison?…
Ce deuil est sans raison.


C’est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon cœur a tant de peine!


Paul Verlaine



17 agosto, 2023

Abraços


                                                
                             Alfred Eisenstaedt | Couple ao bord de la Seine | Paris | 1963




Sei –
Que outros abraços te apertam
E outras bocas vão beijar
O teu saboroso corpo
Onde mora o meu destino;
Mas, não me zango nem fujo
Nunca mais de te falar –
Como se em ti desconhecesse
O vício de atraiçoar...

Nesta vida transitória,
Afinal, - o que sou eu?
- A força de um pensamento que diz aquilo que diz
E o resumo de uma história
Que ninguém compreendeu.


António Botto



15 agosto, 2023

 


Autor: Julian Barnes
Título: O Sentido do Fim
Tradutora: Helena Cardoso
N.º de páginas: 152
Editora: Quetzal Editores
Edição (7.ª): Maio 2012
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3383)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Eram muitas as expectativas, pois foi-me recomendado por gente que aprecia bons livros. Não desiludiu. Pelo contrário, O Sentido do Fim deixou marcas e vontade de ler outros. Já tinha lido O Papagaio de Flaubert, também muito bom, mas este supera-o pelas reflexões que incute e no vazio que deixa no leitor.

O protagonista, Tony Webster, já aposentado, recebe uma missiva que, ao lê-la, vai desencadear um rememorar de todo o seu passado. O tempo da sua juventude com colegas, amigos e namoradas; o casamento, o divórcio,… É o balanço de toda uma vida e que no final não se revela nada positivo.

O teor da carta vai revelar-se surpreendente e enigmático. À medida que vai desvendando o mistério da carta e que não vou revelar, as memórias adensam-se e percebe que cometeu erros que já não consegue nem poderá emendar.
“Se já não posso ter a certeza dos factos reais, posso ao menos ser fiel às impressões que esses factos deixaram. É o melhor que consigo fazer.” (p. 12)
É na condução da apresentação das situações e da reflexão que cada uma espoleta no protagonista, que Julian Barnes, é exímio.

Escrito na primeira pessoa, e com recurso a uma analepse de mais de 40 anos, esta narrativa prende e inquieta o leitor desde o início. A escrita, sublime, sensível e profunda, que tão bem patenteia o estado de espírito e o pensamento do protagonista, vai impor-se ao leitor que a lê avidamente numa ânsia pela descoberta do final como para libertar o protagonista da agitação e da dúvida que o consomem.

Barnes dá-nos uma lição brutal sobre a importância do tempo que tece falhas na memória à medida que o homem envelhece. Na narrativa, ele desenvolve o tema da morte, foca-se nas circunstâncias e naquilo que ficou na memória do protagonista, para o (nos) levar a concluir que a “vida não é só adição e subtração. Também há acumulação, multiplicação da perda, do fracasso” (p. 108) e remorso.

Recomendo vivamente a leitura deste livro. Para convencer os ainda renitentes transcrevo um excerto, que considero sublime, e que sintetiza o entendimento de Barnes sobre a irreversibilidade do tempo ao longo da vida: “Vivemos no tempo – ele contém-nos e molda-nos – mas nunca senti que o compreendesse muito bem. E não me refiro a teorias sobre o modo como cede, recua e dá meia volta, ou poderá existir algures em versões paralelas. Não, falo do tempo comum, quotidiano, que os relógios de pulso e de parede nos garantem passar regularmente. Existe algo mais plausível do que um ponteiro de segundos? E todavia basta a menor dor ou prazer para nos ensinar a maleabilidade do tempo. Há emoções que o aceleram, há outras que o abrandam. Às vezes parece desaparecer – até ao ponto em que desaparece mesmo, para nunca mais voltar. (p. 12)

 


14 agosto, 2023

Naufrágio

Foto minha (GR)


Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles

13 agosto, 2023

Amizade




 

𝑨 𝑰𝒏𝒕𝒖𝒊çã𝒐 𝒅𝒂 𝑰𝒍𝒉𝒂 - 𝑶𝒔 𝒅𝒊𝒂𝒔 𝒅𝒆 𝑱𝒐𝒔é 𝑺𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒈𝒐 𝒆𝒎 𝑳𝒂𝒏𝒛𝒂𝒓𝒐𝒕𝒆, de Pilar Del Río

 


Autora: Pilar Del Río
Título: A Intuição da Ilha. Os Dias de José Saramago em Lanzarote
Tradutor: Sérgio Machado Letria
N.º de páginas: 372
Editora: Porto editora
Edição: Agosto 2022
Classificação: Crónicas, Memórias
N.º de Registo: (3393)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Casa. Uma Ilha – Lanzarote. Um homem, escritor – José Saramago. Uma mulher, Pilar. Livros. Amigos. Três Cães. Estes são os ingredientes principais deste livro de memórias, de testemunhos, de celebração dos dias vividos na Ilha.

“Pilar del Río dá forma cintilante à épica quotidiana de Saramago em Lanzarote, enquanto compõe um hino à cultura da hospitalidade praticada em sua casa, onde o partilhar se cinzelou com os carateres de uma lei”, lê-se no prefácio de Fernando Gómez Aguilera. Esse espírito de partilha, de hospitalidade estende-se ao leitor. Ao longo do livro, este vive em comunhão com os habitantes da casa, participa nos momentos de intimidade, de emoção, de trabalho e de convívio com os amigos, visitantes, jornalistas, viaja com o escritor pelo mundo, pelos livros, pela arte.

É um privilégio conhecer o espaço mágico que acolheu Saramago. Trata-se de um lugar de beleza natural, de bem-estar, propício à escrita, à leitura, ao amor e à amizade; um lugar de inspiração, de acolhimento, de conversas, de cidadania; um lugar de encontros literários e artísticos, de afectos, de desabafos; um lugar de encontros familiares, festivos, de alegrias; um lugar de passeios, de descoberta a dois ou com amigos; um lugar de homenagem e de reconhecimento; um lugar de chegadas e partidas.

São dezoito anos fecundos que Pilar del Río nos descreve num registo simples, sensível, sem sentimentalismo piegas da vida em comum com José Saramago. Pilar cinge-se ao importante da vida do autor, cita pormenores dos livros escritos, divulga episódios deliciosos que enobrecem ainda mais Saramago e que revelam o seu carácter de bom anfitrião, de defensor de causas, de cidadão do mundo, de pensador crítico e lúcido.

Não vou divulgar muito mais, pois não pretendo retirar o prazer da descoberta inerente à leitura destes textos. Posso, contudo, garantir que quem gosta de Saramago passará a apreciá-lo ainda mais e, provavelmente, que quem ainda não o lê, poderá, quem sabe, por esta via, entusiasmar-se com algum dos livros citados.
O título, bem escolhido, sugere a empatia sentida, desde o primeiro momento, por Saramago ao visitar a ilha. Tal como o homem de O Conto da Ilha Desconhecida, que queria um barco para descobrir a “ilha por vezes habitada que somos, a ilha que se encontra a si mesma na busca”, também Saramago precisou de encontrar a ilha que lhe trouxesse sossego e inspiração para “chegar ao lugar aonde nos esperam”.

A Intuição da Ilha apresenta também ilustrações de Juan José Cuadrado e inclui, em apêndice, fotografias do arquivo da Fundação José Saramago e a Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos, redigida na Cidade do México em 2017.




12 agosto, 2023

Ausência !



                                    
                                                        “Nu couché” | Pierre Auguste Renoir



Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira, Poesia Reunida


11 agosto, 2023

Ode ao Vinho



Foto GR - Degustação de vinhos da Adega do Mar | Joaquim Parrinha | Sines




Mas tu, vinho da vida, não és
somente amor,
escaldante beijo
ou coração queimado,
és também
amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
Amo, quando se fala
à mesa, da luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que o Outono trabalhou
até encher de vinho as vasilhas
e que o músculo homem aprenda,
no cerimonial do seu negócio,
a recordar a terra e os seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.


Pablo Neruda



10 agosto, 2023

𝑨 𝑴𝒐𝒓𝒕𝒆 𝒅𝒆 𝑰𝒗𝒂𝒏 𝑰𝒍𝒊𝒄𝒉, de Tolstoi

 


Autor: Tolstoi
Título: A Morte de Ivan Ilich
Tradutor: João Maia
N.º de páginas: 72
Editora: Editorial Verbo - Livros RTP
Edição: s/data
Classificação: Novela
N.º de Registo: (2841)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Genial. Tolstoi narra de forma exímia a dor, o sofrimento, a morte. 
A Morte de Ivan Ilich convoca o leitor à reflexão sobre a condição humana perante a fragilidade e a finitude do ser humano. É perante a proximidade da morte que o protagonista se questiona sobre a vida, os sentimentos, os valores, os afectos. É brutal a sua interpelação interior e a incompreensão perante a certeza da morte. O leitor embarca no sofrimento e na angústia e sente dó porque é impotente perante tanta dor. Mas o que mais incomoda não é tanto a dor física, porque não é sentida, mas a dor psicológica, existencial na qual o leitor se revê e associa à sua própria existência.

“Mas que estou eu para aqui a arengar? Qual o fim da existência? Não pode ser. É impossível que a vida seja tão absurda e repulsiva. E se o é, para que morrer, e morrer entre sofrimentos? Aqui há qualquer coisa que não carbura.
Acaso a minha vida não foi como devia ser?” (p. 65). 

Ivan arrepende-se da vida que levou, uma vida de falsidade, de aparência, de repulsa, de desilusão. E é neste estado de arrependimento que culpabiliza a família e os médicos que não o compreendem. 
Tolstoi explora a capacidade de cada um perante a iminência da morte: a negação total do doente que acredita e quer viver “ Sim, quero viver, quero viver. (…) Não, não é isso. Tudo o que foi, tudo o que é a tua vida não passa de mentira. É um engano que te não deixa ver nem a vida nem a morte.” (p.71); 
a incompreensão e a ausência de cuidados e de acompanhamento dos mais próximos; 
o incómodo causado pelo doente junto dos que anseiam uma existência sossegada, sem percalços “- Que culpa temos nós? – disse Lisa à mãe. – Como se tivéssemos sido nós a adoentá-lo! – Tenho dó do papá, mas porque teima em nos aborrecer.” (p. 69).

É um livro fabuloso se tivermos em conta a época em que foi escrito (1886). Na Rússia e noutros países, a morte era um assunto tabu que não devia ser questionado. Tolstoi com a sua obra, e muito em particular nesta, expôs as contradições sociais, a hipocrisia da sociedade, a estratificação de classes, o pensamento religioso e político vigente. Com subtileza revela o carácter mesquinho, desventurado e interesseiro dos homens e mulheres do século XIX. Ou será de todos os tempos?

Obra intemporal, de teor claramente reflexivo sobre a solidão, o sofrimento, a luta interior de negação da doença terminal e, posteriormente, de aceitação da morte. Nela, Tolstoi realça o sentido da vida através da exaltação de uma existência simples e autêntica, em oposição ao fingimento, ao oportunismo e ao materialismo. E destaca, no final, a importância da compaixão como valor essencial à superação da dor e à aceitação da morte. 
Pessoalmente, concluo que esta leitura é um convite à reflexão da nossa própria existência, à valorização das coisas boas da vida e à compreensão da inevitabilidade da morte.



Silêncios!




Afã

Eu só quero que me fales
De cantigas e de vinho
Deixa lá e não te rales
Deus perdoa o descaminho!

Deixa essa gente vã
Com promessas e intrigas.
Elas não interessam nada
Pois o meu maior afã
É beber minha golada
De vinho na tarde vã
Ao som de belas cantigas

_________________


A noite lavava as sombras
das suas pálpebras com a aurora.
ligeira corria a brisa.
e bebemos! um vinho velho cor de rubi,
denso de aroma e de corpo suave.


Al-Mutamid.



09 agosto, 2023

Mário Cesariny (09 | 08 | 1923)

                                                                         Foto GR


Onde um braço teu me procura.


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny, in Pena Capital


08 agosto, 2023

𝑴𝒊𝒔𝒆𝒓𝒊𝒄ó𝒓𝒅𝒊𝒂, de Lídia Jorge

 

Autora: Lídia Jorge
Título: Misericórdia
N.º de páginas: 457
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3404)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Um dos significados da palavra misericórdia é “comiseração, piedade”. Sendo este o título atribuído ao novo romance de Lídia Jorge, a pedido da mãe, Maria dos Remédios, poder-se- ia pensar que a história narrada iria fluir nesse sentido. Apraz-me referir que isso não acontece. Misericórdia induz à reflexão da condição humana, focando-se “no esplendor da vida, e na crença de valores” como referiu a autora numa das muitas entrevistas que deu, aquando do lançamento do livro.
A história narrada na primeira pessoa é dura, deixa marcas profundas, mas em nenhum momento o leitor sente dó ou piedade, pelo contrário sente admiração e respeito pela força emanada da protagonista, Maria Alberti, que luta até ao fim pela vida.

Num registo sensível, afável, esperançoso e irónico, Lídia Jorge ficciona a estadia de sua mãe num lar da Santa Casa da Misericórdia. Num tempo coincidente com o covid-19, a autora ficou impedida de visitar a mãe nos últimos dias de vida. É por isso, imagino, com grande dor e revolta interior que escreve este romance maravilhoso, como uma urgência, com a “possibilidade de chegar ao lugar aonde nos esperam” (Saramago), com a certeza de cumprir um desejo, um reconhecimento.

Trata-se de um testemunho de tudo o que ocorre de bom e menos bom no lar Hotel Paraíso, onde residem setenta pessoas, onde circulam cuidadores atenciosos, carinhosos, zelosos e outros menos sensíveis que apenas cumprem as suas tarefas, o seu horário. Onde cada um envelhece à sua maneira. Onde cada quarto encerra uma história de vida carregada de ambição, de esperança e tantas vezes de contradição.

“Antes, quando a minha pele era clara e moça, qualquer gota de lágrima que me saltasse dos olhos era visível à distância. Agora, a minha pele criou sinais, curvas e valados, de tal forma que desde que não soluce, ninguém nota que me escorrem lágrimas. Comi-as com o pão.” (p. 156)

O relato de essência biográfica é-nos narrado por Maria Alberti que por via dos sonhos, das memórias, dos pensamentos, das emoções mistura episódios divertidos, ridículos, tristes, cruéis, pujantes, sensíveis; conta histórias de revolta, de amor, de amizade, de perda. Mas é sobretudo no embate que trava com a “noite” que a tentou levar por várias vezes, que a protagonista de forma inteligente e terna mantém a clarividência sobre a proximidade da morte. “(…) vamos morrer (…) Morrer é isso mesmo, é a verdade e a mentira já serem coisas iguais. E aqui esse princípio pratica-se diariamente.” (p. 105)

Todos conhecemos histórias vividas em lares. Todos sabemos como é difícil o quotidiano nestes espaços. O facto de Lídia Jorge ter recriado os últimos dias da sua mãe e de ter “viajado” pela sua mente sem que o leitor consiga destrinçar o real do imaginado, causa um efeito avassalador. O que é real? O que é ficção? Temos conhecimento de factos, mas foi assim que aconteceu tal como nos é narrado? Não sabemos, nem a própria autora terá a certeza de tudo, por isso criou um imaginário, teceu uma história verosímil para si e para o leitor. A isto chama-se literatura, essa maravilha.

Recomendo muito esta “viagem” pelo mundo da velhice e da solidão; pelo mundo fechado das pessoas idosas, na sua relação com os cuidadores, com os voluntários, com a família. É uma viagem tremenda que nos faz reflectir sobre os nossos sentimentos, sobre a esperança e sobre a beleza de pequenas acções. E, de forma mais generalizada, sobre a Humanidade.