30 agosto, 2020

Ernesto M. de Melo e Castro (1932-2020)

                                           
                                                        foto retirada da internet

Objecto-Casa


O objecto deste poema é aquela casa em frente
             6 meses
             3 meses
             um telhado para colocar.

O objecto são umas quatro paredes
            lentas
            penosas
            6 meses ou mais – quem sabe?

           Pelas quartas-feiras
           Uma carga de tijolo,
uma caixa grande de vidros de cor,
três centos de pregos,
para um homem lentamente habitar.

O objecto deste poema
          é a lentidão sagrada do construir
          da casa sita em frente da minha janela.

O objecto é o mistério da renovação do tempo.

O objecto é a quase realização
          um telhado para colocar
          6 meses
          3 homens
          uma habitação para cá do infinito.


E. M. de Melo e Castro

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No álbum “Mar Virtual”,  Eugénia Melo e Castro homenageia o seu pai, Ernesto M. de Melo e Castro, poeta e ensaista reconhecido pela sua vasta poesia experimental. 
Eugénia seleccionou e musicou 14 poemas, acompanhada ao piano por Emílio Mendonça. 

Pode ouvir as músicas, aqui:  
https://www.onerpm.com.br/disco/album?album_number=4136496932&pagin=1   

ou aqui (Spotify) https://open.spotify.com/album/6Y1Ly9ikzC9fhXTYpDhKot

Abaixo coloco a foto do poema "Soneto Soma 14X" para ler e ouvir em simultâneo.



                                  







Série televisiva os "Herdeiros de Saramago"

 

                                          créditos da foto: facebook Herdeiros de Saramago

Esta série televisiva (RTP Play), assinada por Carlos Vaz Marques e Graça Castanheira, é composta por 11 episódios documentais sobre outros tantos escritores de língua portuguesa distinguidos com o Prémio José Saramago.
A estreia estava marcada na RTP para junho, mas acabou por ser adiada para novembro, pensada agora para coincidir com o aniversário de nascimento de José Saramago.

Segundo Carlos Vaz Marques, a série pretende mostrar facetas dos autores premiados que serão “uma revelação mesmo para quem lê há muito os livros que escrevem”.
O autor referiu ainda que faltam, por exemplo, documentários sobre os artistas portugueses enquanto se encontram no auge do seu processo criativo, e, consequentemente, faltarão bons documentos visuais no futuro. 

“A escassez de imagens dos nossos arquivos audiovisuais que documentem a vida e o pensamento de grandes nomes da cultura portuguesa é confrangedora”, notou, afirmando ter sido esse o motivo que o lançou neste projeto, para o qual pesou o facto de ser jornalista e de estar há muito ligado ao mundo dos livros, tornando-se-lhe evidente a falta de documentos audiovisuais no âmbito literário.

Notícia completa in Observador

Galardoados com o Prémio Saramago:

1999 - Natureza Morta, Paulo José Miranda - Portugal
2001 - Nenhum Olhar, José Luís Peixoto - Portugal
2003 - Sinfonia em Branco, Adriana Lisboa - Brasil
2005 - Jerusalém, Gonçalo M. Tavares -  Portugal
2007- O Remorso de Baltazar Serapião, Valter Hugo Mãe -  Portugal
2009 - As Três Vidas, João Tordo -  Portugal
2011 - Os Malaquias, Andréa del Fuego -  Brasil 
2013 - Os Transparentes, Ondjaki -  Angola
2015 - As Primeiras Coisas, Bruno Vieira Amaral -  Portugal
2017 - A Resistência, Julián Fuks -  Brasil
2019 - Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral - Portugal


27 agosto, 2020

O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça, de Ana Margarida de Carvalho

 



OPINIÃO


Ana Margarida de Carvalho presenteia-nos, uma vez mais, com uma escrita cuidada, complexa e perturbadora. É com mestria que vai entrelaçando histórias, diálogos, personagens, que por vezes confundem o leitor. Porém, à medida que se avança na narrativa, como um “carreiro de formigas”, lentamente, esta vai-se perfilando e completando. A imagem da formiga é uma constante ao longo do enredo e acompanha um dos protagonistas, Simão. “Quanto a mim, cumpro o que me destinou este livro, continuo andarilho, vou de abalada, batendo a sola, acompanhando o carreiro de formigas que dão voltas ao mundo,” (p. 254) 

Estamos nos finais dos anos 30, durante a Guerra Civil Espanhola. Entre “dois entardeceres”, numa paisagem agreste da raia alentejana, os habitantes de duas aldeias, debatem-se com problemas de sobrevivência, de miséria e de ódio. É neste espaço fictício que vamos mergulhar no íntimo dos personagens, carregar as suas emoções e viver momentos trágicos e dolorosos. “É nestas paragens que vagueia a alma,” (p.107) 

Lençol de Telhados e Nadepiori, as duas aldeias, apresentam características completamente diferentes quer ao nível da geografia, do clima e do comportamento dos seus habitantes. 

A autora revela engenho e inteligência na condução da intriga, no desenrolar da acção e, sobretudo, na selecção das palavras que tão bem traduzem os estados de alma e os gestos dos protagonistas. Ao longo de seis extensos capítulos, o leitor deixa-se inebriar pelas descrições, pelos diálogos cruzados, pelas frases longas, apenas separadas por vírgulas, quase diria que cada capítulo é constituído de uma só frase, o ponto final apenas surge para encerrar o capítulo. Tal como um carreiro de formigas…

“(…) que este é o livro de uma caminhada,
sem pausas?
sem pausas, sempre a caminhar, sempre em andamento, sem descanso, sem repouso, nem alívio,
como a vida?
como a vida, essa ratoeira de homens,
escuta, que disso percebo eu, esta história, este livro, estas linhas, carreiros de formigas, com intermitências, mas sempre seguindo o seu curso, o fim da última linha pegando no princípio da seguinte e assim por diante…” (p. 40) 


20 agosto, 2020

O tempo entre costuras, de María Dueñas

 




OPINIÃO

As 620 páginas deste livro foram lidas num ápice, não conseguimos despegar do enredo protagonizado por Sira Quiroga, uma jovem costureira de Madrid. Estamos na década de 1930, assistimos à guerra civil espanhola (1936-39), e acompanhamos a aliança de Franco e do seu governo com os alemães durante a segunda guerra mundial (1939-45). Ao longo da narrativa, envolvemo-nos nas intrigas, peripécias e reviravoltas da vida da narradora, Sira, em Madrid, em Tânger, Tétuan (Marrocos), de novo Madrid e numa incursão de poucos dias a Lisboa.

A autora tece a sua narrativa com mestria, cruza a vida pessoal de Sira com a história política do país, e constrói magistralmente encontros e desencontros, reviravoltas constantes sem nunca perder o fio à meada, abandonando personagens secundárias nos momentos certos, pois o importante é mesmo acompanhar a evolução do carácter da personagem principal que vai crescer no meio de paixões, amizades, traições, guerras, espionagem e muito, muito glamour sem no entanto perder a sua essência, o seu objetivo e o seu patriotismo. 

Sira que muito jovem se deixou arrastar por uma paixão louca, vai viver a traição, a desilusão e o sofrimento. “Um dos efeitos da paixão louca e obcecada é que anula os sentidos para perceber o que acontece a sua volta”. Porém, aproveitando as oportunidades que lhe vão surgindo, vai lutar pela sua sobrevivência e pela da sua mãe, mas também pelos seus ideais e pelo seu país. No final, temos uma Sira reconstruída, confiante, extremamente elegante e com uma forte personalidade.

Como a trama é tão atrativa e empolgante, foi realizada uma mini-série com o mesmo nome que vou tentar ver a fim de averiguar se é fiel ao romance. Recomendo muito.

 


16 agosto, 2020

Eusébio Macário, de Camilo Castelo Branco



OPINIÃO

Para além da escrita magistral, gostei sobretudo do tom sarcástico e divertido. Camilo Castelo Branco, neste livro, ataca fortemente a estética naturalista/realista que tentava impor-se na época e critica a ascensão oportunista da família Macário bem como os novos-ricos vindos do Brasil. 

A narrativa situa-se sobretudo no meio rural minhoto. Aí vive Eusébio Macário, um boticário viúvo, com a sua filha Custódia “rapariga pimpona, de muito seio e braços grossos, roliços, com pregas de carnação mole nos cotovelos e uma penugem de frutas mimosas que lhe punha umas tonalidades cupidíneas, irritantes” e com o filho José Macário, o Fístula, que estudou para padre em Braga, mas investiu sobretudo numa vida boémia, “em orgias de frigideiras”; o padre Justino “um patusco com chalaça”; Felícia, a amante do padre “uma mulheraça frescalhona, de uma coloração sanguínea, anafada, ancas salientes, de trinta e cinco anos, muito lavada, a cheirar às frescuras do linho perfumado de alfazema”; Bento, o mano de Felícia, regressado do Brasil, comendador e rico, gordo e ignorante, recebido na povoação com grandes honras. 

Ao longo da narrativa, o autor apresenta-nos uma família interesseira, hipócrita, que se move por valores imorais para ascender na vida e assim alcançar um novo estatuto social. Para além de satirizar os costumes da época, o autor aproveita para parodiar também os novos valores do realismo: longas e por vezes exaustivas descrições (das ervas, das flores, das doenças, das mezinhas e remédios…); descrição das personagens, traços físicos e psicológicos; riqueza lexical, vasta adjectivação, regionalismos entre outros aspectos. 

Agora resta-me ler A Corja para saber o que vai acontecer à família Macário. 

13 agosto, 2020

Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral

 




OPINIÃO

Neste romance, Afonso Reis Cabral “baralhou ficção” com uma história verídica que ocorreu em 2006, no Porto, e que foi bastante noticiada. Trata-se da história de Gisberta, cruelmente agredida e assassinada por um grupo de jovens. 

Confesso que iniciei a leitura com alguma apreensão pois conhecia o desfecho trágico, mas também com alguma curiosidade em perceber como o autor iria construir a sua narrativa sobre o caso. 

Na minha opinião, fê-lo muito bem, na medida em que soube suavizar a descrição dos actos violentos e dosear algumas emoções recorrendo a subentendidos e a uma escrita poética. 

“Engraçado como aos doze anos até circunstâncias de merda permitem camaradagem.” (pág. 201)
“E também omitiu que gostava de todas as histórias, não só dos contos da Gi, porque eram como desenhos com palavras.”(pág. 105) 

O autor, através de uma história (ou de várias) de amizade, vai narrando aspectos pessoais dos três miúdos, internados num lar e com um passado difícil. 

“Nós, os da Oficina, não conversávamos sobre o passado e não discutíamos o futuro, por isso surpreendeu-me ele [Samuel] anunciar que a conhecia, mas fiquei contente por não contar os pormenores ao Nélson, Só a mim. (…) O próprio acto de contar, esse sim, revelava uma vulnerabilidade que muitos poderiam entender como feminina – quer dizer, como fraqueza. Confiar em mim, pôs a nossa amizade à prova.” (p. 107) 

De forma alternada, vai-nos desvendando as suas histórias de vida e das pessoas com quem lidam, entre as quais a de Gisberta. É Rafa, um dos miúdos, que narra a história e que descobre Gi num edifício abandonado. A partir do momento em que partilha o seu segredo com os amigos Nelson e Samuel, a vida deles muda. Há momentos de amizade, de camaradagem, de solidariedade, de repulsa, de inveja, de insultos, de agressão, de crueldade. 

“Dali [do topo do torreão] veríamos as coisas de outra maneira, os problemas ficariam na cave. Os dela, a morte que a comia por dentro, que a obrigava a abdicar a cada dia; os meus, saber que a necessidade de a ajudar só fazia sentido por ambos não termos mais ninguém.” (p. 131). 

Afonso Reis Cabral põe em evidência os preconceitos de uma sociedade, a disfunção familiar e institucional, o abandono, a delinquência, a prostituição, a miséria e a sobrevivência. Trata-se de um mundo que ninguém quer ver e cada vez mais presente na nossa sociedade.

09 agosto, 2020

Manual para mulheres de limpeza, de Lucia Berlin



OPINIÃO


Manual para Mulheres de Limpeza é uma antologia que reúne 43 contos (short stories) dos muitos que escreveu.
As histórias baseiam-se na sua vida atribulada (viveu em vários países, teve vários casamentos, várias profissões, quatro filhos, problemas de saúde e alcoolismo). É precisamente, a fusão da realidade com a ficção que torna a sua escrita perturbadora. Dei por mim, a conferir a sua vida com a narrativa, a questionar-me se o narrado foi mesmo o vivido. No prefácio, Lydia Davis cita o filho de Lucia Berlin “As nossas histórias e memórias familiares foram lentamente moldadas, embelezadas e editadas, ao ponto de eu já não estar certo do que realmente aconteceu em todos os momentos.” 

Mas o importante é mesmo a sua escrita franca e, também, poética, “Uma iluminação indolente, como uma tarde mexicana no teu quarto. Consegui ver o sol na tua cara. “ (p.506), a forma como ela agarra o leitor e como o torna testemunha dos acontecimentos, sejam eles bons ou maus. Ela narra o quotidiano sem rodeios, ela transforma factos duríssimos, dolorosos em actos banais. Algumas histórias são difíceis pela brutalidade da sua descrição, outras são ternurentas, outras melancólicas, outras ainda plenas de humor. 


No último conto “Voltar a casa”, a narradora, sozinha, em casa, levanta uma série de questões “(…) Que outras coisas perdi? Quantas vezes na minha vida terei estado, por assim dizer, sentada no alpendre das traseiras, não no da frente? O que teria sido dito que não consegui ouvir? Que amor podia ter havido que eu não senti? 

São perguntas vãs. O único motivo por que vivi tanto tempo foi ter largado o passado. Fechar a porta à dor, ao arrependimento, ao remorso (…) Tudo o que de bom e de mau aconteceu na minha vida foi previsível e inevitável, especialmente as escolhas e as acções que garantiram que agora estou totalmente sozinha.” (pp. 508 e 509)

Realidade? Ficção? Realidade ficcionada? De tudo um pouco, certamente! O que importa, verdadeiramente, é que se trata de um livro extraordinário.