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18 junho, 2025

Faz 15 anos (18.06.2010)

 



Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago


06 outubro, 2024

Quantos anos tenho? | José Saramago (?)




Quantos anos eu tenho?
O que importa isso?

Tenho a idade que escolho e que sinto!
A idade em que posso gritar sem temor o que penso,
fazer o que desejo sem receio de errar,
pois trago comigo a experiência dos anos vividos
e a força inabalável das minhas convicções.
Não importa quantos anos tenho,
não quero saber disso!
Alguns dizem que estou velho,
outros afirmam que estou no auge.
Mas não são os números que definem a minha vida,
não é o que dizem,
mas sim o que o meu coração sente
e o que a minha mente dita.

Tenho os anos suficientes para gritar minhas verdades,
fazer o que quero,
reconhecer velhos erros,
corrigir rotas e valorizar vitórias.
Já não preciso ouvir:
“Você é jovem demais, não vai conseguir”,
ou “Você está velho demais, o seu tempo já passou”.

Tenho a idade em que as coisas são vistas com serenidade,
mas com o desejo incessante de continuar crescendo.
Tenho os anos em que os sonhos
podem ser tocados com os dedos,
e as ilusões se transformam em esperança.

Tenho os anos em que o amor,
às vezes, é uma chama ardente,
ansiosa para se consumir no fogo de uma paixão.
Outras vezes, é um porto de paz,
como o pôr do sol que se reflete nas águas tranquilas do mar.
Quantos anos eu tenho?
Não preciso contar,
pois os desejos que alcancei,
os triunfos que obtive,
e as lágrimas que derramei pelas ilusões perdidas,
valem mais do que qualquer número.
O que importa se fiz cinquenta, sessenta ou mais?
O que realmente importa é a idade que sinto,
a força que tenho para viver sem medo,
seguir meu caminho com a experiência adquirida
e o vigor dos meus sonhos.

Quantos anos eu tenho?
Isso não importa!

Tenho os anos suficientes para não temer mais nada,
e para fazer o que quero e sinto.
A idade? Não importa quantos anos ainda tenho,
porque aprendi a valorizar o essencial
e a carregar comigo apenas o que realmente importa!




25 abril, 2024

𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: A Noite
N.º de páginas: 124
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Junho 2006
Classificação: Teatro
N.º de Registo: (2642)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



50 anos depois do “dia inicial inteiro e limpo”, li A Noite, de Saramago. Uma peça de teatro que se foca precisamente na noite que antecede à madrugada tão esperada por muitos. Na redacção de um jornal em Lisboa, onde decorre a ação, alguns jornalistas e tipógrafos emergiram do silêncio e puderam enfim manifestar-se e noticiar a verdade tão desejada. Outros, os do poder decisório, os que impunham notícias e artigos de conveniência, os que manipulavam a informação, e os lambe-botas que pretendiam aceder ao poder ficaram desconcertados, incrédulos, acreditando que seria um “outro 16 de Março”, duvidaram do boato que então surgiu de que a revolução já estava na rua.

Num texto organizado em dois actos, Saramago recorre a dezoito personagens envolvidas na produção do jornal que deverá sair na manhã seguinte, para desvendar a censura, o medo, a manipulação, mas também a esperança e o sonho de um novo dia.
Numa escrita clara e concisa com diálogos muito bem estruturados, pela voz de Manuel Torres, redactor de província, que luta pela verdade informativa em confronto com Valadares, chef da redacção, submisso ao poder, à ditadura, o autor traz à reflexão o impacto que a informação tem na sociedade. Os princípios de “objectividade, de ideal, de isenção, de respeito pelo público” tão defendidos hipocritamente por Valadares, estão quebrados quando os jornalistas se limitam ”a assinar um jornal que já vem feito dos coronéis da censura.” (p. 67)

Saramago é implacável, como sempre, e recorrendo à ironia, a sua arma poderosa, na minha opinião, desmonta os vários interesses que existem naquela redacção. No final do primeiro acto, Torres numa acesa discussão com o seu chefe tem uma tirada reveladora sobre a ética e a verdade no jornalismo.

“(…) Não torne a cantar-me as loas da objectividade, e da neutralidade, que é outra palavra que você usa muito. Digo-lhe eu que não há objectividade. Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são seleccionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E as notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? (…) Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos Para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. (…)” (pp. 60 e 61)

Hoje, passados 45 anos sobre a escrita deste texto (1979), receio que pouco se tenha alterado. O texto de Saramago continua actualíssimo, apenas mudaram os contextos. Continuamos mergulhados no caos da (des)informação porque o poder é quem mais ordena. Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades.

Recomendo muito a leitura deste livro de apenas 124 páginas, mas que diz tanto!



18 novembro, 2023

𝑶 𝑺𝒊𝒍ê𝒏𝒄𝒊𝒐 𝒅𝒂 Á𝒈𝒖𝒂, de José Saramago e Yolanda Mosquera

 



Autor: José Saramago
Título: O Silêncio da Água
Ilustradora: Yolanda Mosquera
N.º de páginas: 
Editora: Porto Editora
Edição: Maio 2022
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (3476)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A história narrada em O Silêncio da Água é um episódio extraído do livro As Pequena Memórias, de Saramago. Acontece à beira do rio Almonda, rio que banha a Azinhaga, local de boas memórias, onde o autor passou grande tempo da sua infância e juventude.

As ilustrações maravilhosas de Yolanda Mosquera complementam a mensagem simples e sensível do texto. As páginas coloridas vão muito além do diálogo directo com as palavras, já que os pormenores inseridos criam um outro enredo imagético que sugere momentos de felicidade e de descoberta vividos pelo menino. A frase mais expressiva do conto vem revelar isso mesmo, o despertar para novas vivências, novas sensações.

"Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei.
Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci".



13 agosto, 2023

𝑨 𝑰𝒏𝒕𝒖𝒊çã𝒐 𝒅𝒂 𝑰𝒍𝒉𝒂 - 𝑶𝒔 𝒅𝒊𝒂𝒔 𝒅𝒆 𝑱𝒐𝒔é 𝑺𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒈𝒐 𝒆𝒎 𝑳𝒂𝒏𝒛𝒂𝒓𝒐𝒕𝒆, de Pilar Del Río

 


Autora: Pilar Del Río
Título: A Intuição da Ilha. Os Dias de José Saramago em Lanzarote
Tradutor: Sérgio Machado Letria
N.º de páginas: 372
Editora: Porto editora
Edição: Agosto 2022
Classificação: Crónicas, Memórias
N.º de Registo: (3393)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Casa. Uma Ilha – Lanzarote. Um homem, escritor – José Saramago. Uma mulher, Pilar. Livros. Amigos. Três Cães. Estes são os ingredientes principais deste livro de memórias, de testemunhos, de celebração dos dias vividos na Ilha.

“Pilar del Río dá forma cintilante à épica quotidiana de Saramago em Lanzarote, enquanto compõe um hino à cultura da hospitalidade praticada em sua casa, onde o partilhar se cinzelou com os carateres de uma lei”, lê-se no prefácio de Fernando Gómez Aguilera. Esse espírito de partilha, de hospitalidade estende-se ao leitor. Ao longo do livro, este vive em comunhão com os habitantes da casa, participa nos momentos de intimidade, de emoção, de trabalho e de convívio com os amigos, visitantes, jornalistas, viaja com o escritor pelo mundo, pelos livros, pela arte.

É um privilégio conhecer o espaço mágico que acolheu Saramago. Trata-se de um lugar de beleza natural, de bem-estar, propício à escrita, à leitura, ao amor e à amizade; um lugar de inspiração, de acolhimento, de conversas, de cidadania; um lugar de encontros literários e artísticos, de afectos, de desabafos; um lugar de encontros familiares, festivos, de alegrias; um lugar de passeios, de descoberta a dois ou com amigos; um lugar de homenagem e de reconhecimento; um lugar de chegadas e partidas.

São dezoito anos fecundos que Pilar del Río nos descreve num registo simples, sensível, sem sentimentalismo piegas da vida em comum com José Saramago. Pilar cinge-se ao importante da vida do autor, cita pormenores dos livros escritos, divulga episódios deliciosos que enobrecem ainda mais Saramago e que revelam o seu carácter de bom anfitrião, de defensor de causas, de cidadão do mundo, de pensador crítico e lúcido.

Não vou divulgar muito mais, pois não pretendo retirar o prazer da descoberta inerente à leitura destes textos. Posso, contudo, garantir que quem gosta de Saramago passará a apreciá-lo ainda mais e, provavelmente, que quem ainda não o lê, poderá, quem sabe, por esta via, entusiasmar-se com algum dos livros citados.
O título, bem escolhido, sugere a empatia sentida, desde o primeiro momento, por Saramago ao visitar a ilha. Tal como o homem de O Conto da Ilha Desconhecida, que queria um barco para descobrir a “ilha por vezes habitada que somos, a ilha que se encontra a si mesma na busca”, também Saramago precisou de encontrar a ilha que lhe trouxesse sossego e inspiração para “chegar ao lugar aonde nos esperam”.

A Intuição da Ilha apresenta também ilustrações de Juan José Cuadrado e inclui, em apêndice, fotografias do arquivo da Fundação José Saramago e a Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos, redigida na Cidade do México em 2017.




16 novembro, 2022

14 abril, 2022

Um poema | José Saramago




Química

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

 José Saramago, in Os Poemas Possíveis


22 janeiro, 2022

𝑶 𝑪𝒐𝒏𝒕𝒐 𝒅𝒂 𝑰𝒍𝒉𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒄𝒐𝒏𝒉𝒆𝒄𝒊𝒅𝒂, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: O conto da ilha desconhecida
N.º de páginas: 39
Editora: Caminho
Edição (3.ª): dezembro 2007
Classificação: Conto
N.º de Registo: (2643)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Já li, reli e voltei a ler este pequeno conto de Saramago, mas nunca escrevi sobre ele. Por motivos profissionais tornou-se uma leitura obrigatória e quase anual. Mas sempre que o leio, é com um prazer redobrado que acompanho o pedido do homem “dá-me uma barco” e a decisão da mulher da limpeza em acompanhá-lo à procura da ilha desconhecida. Não vou desvendar a história que narrada sublimemente nos leva a questionar sobre a nossa existência, que nos faz olhar para dentro.
A ilha desconhecida mais não é do que uma alegoria à busca interior e ao conhecimento de si próprio “(…) mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, (…) Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós,” (pp. 27 e 28)
Não desistir dos seus sonhos é outra mensagem que se retira deste pequeno texto, ou será que é a mesma? E que afinal está tudo interligado. Concretizar os sonhos mais não é do que lutar por algo que se deseja, desvendar o que nos vai na alma e, no caso, o desejo material do homem era na verdade a descoberta do seu íntimo, do seu auto-conhecimento. Não sabendo como resolver essa premissa, por si só, transferiu-a para a descoberta de uma ilha desconhecida.
“Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar” (p. 23)

Numa mescla de fantasia e filosofia com pinceladas de ironia, Saramago propõe-nos uma auto-reflexão e mostra-nos um caminho para a resolução das muitas dificuldades que nos vão surgindo pela vida.
Trata-se, afinal, de um conto com múltiplas viagens… a viagem de cada leitor.
Recomendo muito este conto, sobretudo para quem se quer iniciar no vasto mundo saramaguiano. Sendo um texto curto permite ao leitor abordar e adaptar-se ao estilo muito próprio do autor com pontuação reduzida, diálogos não assinalados e um ritmo peculiar. (Lê-lo em voz alta, facilita)


08 janeiro, 2022

𝑶 𝑵𝒆𝒕𝒐 𝒅𝒐 𝑯𝒐𝒎𝒆𝒎 𝒎𝒂𝒊𝒔 𝑺á𝒃𝒊𝒐 - 𝑼𝒎𝒂 𝑩𝒊𝒐𝒈𝒓𝒂𝒇𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑱𝒐𝒔é 𝑺𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒈𝒐, de Tomás Guerrero

 

Autor: Tomás Guerrero
Título: O Neto do Homem mais Sábio
Tradutor: João Miguel Lameiras
N.º de páginas: 144
Editora: Levoir
Edição: 2020
Classificação: Novela Gráfica
N.º de Registo: (3340)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Considero esta novela gráfica uma belíssima homenagem a José Saramago, mas também a Fernando Pessoa, por via do seu heterónimo Ricardo Reis.

Tomás Guerrero foi feliz ao pegar na frase, ​“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, proferida por Saramago no discurso em Estocolmo, aquando da atribuição do Prémio Nobel em 1998, referindo-se ao seu avô Jerónimo Melrinho.
A tarefa de narrar em banda desenhada a vida e obra de Saramago é arriscada, mas Guerrero foi genial ao colocar os “defuntos” Jerónimo Melrinho (avó de Saramago) e Ricardo Reis, inspirando-se na obra O Ano da Morte de Ricardo Reis, em conversa animada sobre Saramago e, assim, vão guiando o leitor ao longo das páginas que o mesmo é dizer, ao longo da vida do biografado.

Esta narração a duas vozes, iniciada em Estocolmo, em 1998, vai instruindo o leitor com informações biográficas desde a infância na Azinhaga até aos últimos dias em Lanzarote, com citações muito bem enquadradas nas ilustrações, que considero magníficas, e ainda com a divulgação das obras publicadas.

A representação da história através das ilustrações, dos desenhos sai fora do comum, não temos as convencionais vinhetas tornando-o mais próximo de um livro ilustrado do que propriamente de uma banda desenhada. Como referiu Valter Hugo Mãe no prefácio “ as suas pranchas são riquíssimas, equilibradas, surpreendentes. Sem exageros, mantendo até uma estranha atmosfera da mesma humilde personalidade de Saramago.” Poder-se-á referir que por vezes os desenhos nada acrescentam ao texto em termos de informação, são naturalmente um complemento, tornam-no mais belo, mais poético.
Outra característica facilitadora da leitura do texto é a cor diferente atribuída a cada uma das duas vozes, permitindo a sua identificação imediata.

Apesar de gostar muitos da ilustração, é sobretudo o texto que mais aprecio, a conversa mantida por Jerónimo Melrinho, o homem mais sábio, que não sabia ler, e Ricardo Reis traduz a visão que Saramago tinha de si próprio, dos seus familiares e do mundo.

Recorrendo de novo ao prefácio escrito por Valter Hugo Mãe, subscrevo a sua opinião que a expressa de forma notável: “ Este livro é brilhante. É íntimo, delicado, brilhante. Com ele, Saramago continua a nascer”.


06 janeiro, 2022

𝑶𝒃𝒋𝒆𝒄𝒕𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒔𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: Objecto Quase
N.º de páginas: 142
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Novembro 1998
Classificação: Contos
N.º de Registo: (2673)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Objecto Quase integra seis contos breves onde as personagens são, na sua maioria, “coisificadas”, ou melhor dizendo, os objectos são humanizados. Esta característica é evidente nos contos “Cadeira” e “Embargo”. Outros há em que a fantasia, o surreal, o absurdo tomam conta da história e deparamo-nos com uma “animalização” do homem. Em todos, é evidente o tom sarcástico e a crítica à sociedade capitalista, à necessidade do ser humano em possuir bens e à sua dependência.
Ao longo dos seis contos, o autor conduz-nos por caminhos diversos, e que recorrendo a situações surreais, retrata o pessimismo, a depressão, a dependência e a imperfeição do ser humano.
A escrita destes seis contos revela o poder de observação, a capacidade de esmiuçar factos, o sentido crítico e bem-humorado do autor. Os seus textos, apesar de curtos, são autênticos trabalhos literários: descrições detalhadas; metáforas espantosas; histórias criativas repletas de ironia e de intensidade.

Por exemplo, no primeiro conto, “Cadeira”, fica-se pela descrição detalhada e irónica da cadeira que foi atacada pelo bicho da madeira e que vai destruindo o interior da perna que fará cair o homem que nela se senta. Facilmente percebemos que o episódio relata a queda de Salazar. Trata-se se uma alegoria ao fim da ditadura e do sistema vigente. A cadeira representa o poder. Se esta se torna decrépita, insegura, então o poder está decadente e deve ser substituído. É notável a descrição do momento em que o homem se sentou na cadeira, se recostou e finalmente caiu. Por vezes, parece que o narrador se desvia do assunto, tecendo outras histórias, outros factos, mas se o faz é para tornar mais intensa e credível a descrição sem nunca perder o fio condutor da narrativa em curso.

Gostei de todos os contos, mas a minha preferência recai em “Coisas”, o quarto conto. Classificá-lo-ia como uma distopia. As pessoas são hierarquizadas por ordem alfabética (têm a letra desenhada na mão), de acordo com a sua posição social. Tudo é absurdo, as coisas começam a ter reacções humanas, começam a tomar consciência da sua situação: objectos (portas, jarros, marcos do correio, degraus,…) desaparecem misteriosamente, paredes e prédios desabam, relógios deixam de funcionar, sofás têm febre, pessoas ficam nuas, cidades inteiras desaparecem …
Saramago põe em destaque a paranoia individual, mas sobretudo a colectiva, ele anula toda a materialidade e põe a nu o homem para o confrontar com a sua existência, com a sociedade em que se insere e vive de acordo com o que lhe é ditado. O homem torna-se objecto perante a inoperância e tirania do poder. O conto termina com uma réstia de esperança, de mudança porque, afinal, há sempre alguém que luta pela diferença.

Nestes textos, como em toda a obra, Saramago é exímio na crítica social.


03 dezembro, 2021

𝑨 𝒗𝒊𝒂𝒈𝒆𝒎 𝒅𝒐 𝑬𝒍𝒆𝒇𝒂𝒏𝒕𝒆, de José Saramago

 

Autor: José Saramago
Título: A Viagem do Elefante
N.º de páginas: 258
Editora: Caminho
Edição: Outubro 2008
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2481)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É uma releitura e como todas as releituras que faço, fico sempre mais satisfeita. A minha disponibilidade para a narrativa, visto que já conheço a trama, é mais centrada nos pormenores quer da escrita quer do carácter das personagens quer ainda das descrições.

O livro narra a viagem de um elefante, Salomão, vindo da Índia, mas que estava há dois anos em Lisboa e que foi oferecido pelo rei D. João III ao arquiduque da Áustria Maximiliano II (seu primo). É, portanto, essa viagem de Lisboa a Viena que o elefante e o seu cornaca, Subhro, terão de fazer acompanhados por um séquito bem específico e que garantirá que tudo corra como planeado.
Segundo o próprio autor, este livro é uma metáfora da vida humana. O facto de Saramago ter estado doente aquando da sua escrita (que esteve em risco de ser concluído) pode ter tido alguma influência na descrição da “viagem” do elefante que afinal acaba por ter o mesmo fim que a do ser humano, isto é, a morte, porque todos morremos, de forma diferente, é um facto, mas no fundo a passagem pela vida é isso mesmo e “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (epígrafe do livro).
A escrita é poética, fácil, prazerosa, repleta de considerações bem-humoradas sobre os comportamentos humanos e a sociedade da época (século XVI). Apesar de ser um livro com uma temática mais leve, a ironia e o sentido crítico de Saramago mantêm-se. A longa viagem mais não é do que a sua visão atenta sobre o homem, os representantes da igreja, a burocracia da administração, do Estado, a corrupção, a ignorância mas também a simplicidade e a sabedoria do povo.
“… uma boa coisa que a ignorância tem é defender-nos dos falsos saberes” (p.121) e “ … não há dúvida de que as melhores lições nos vêm sempre das pessoas simples.” (p. 144)
A genialidade da escrita e o sarcasmo sempre presentes são razões muito válidas para continuar a ler Saramago. Um dos meus autores preferidos.



13 agosto, 2021

𝑳𝒆𝒗𝒂𝒏𝒕𝒂𝒅𝒐 𝒅𝒐 𝑪𝒉ã𝒐, de José Saramago

 



Autor: José Saramago
Título: Levantado do Chão
N.º de páginas: 366
Editora: Caminho
Edição 14ª: Fevereiro 1999
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1039)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em A estátua e a pedra - o autor explica-se, texto que José Saramago apresentou numa conferência em Turim e que foi mais tarde publicado em livro, é-nos dito pelo próprio que Levantado do Chão (1980) é o primeiro livro do ciclo da estátua tendo o segundo ciclo, o da pedra, iniciado com  Ensaio sobre a Cegueira (p. 45).
Para que possamos entender esta metáfora, transcrevo a explicação do próprio autor: “(…) começou outro período da minha vida de escritor, no qual desenvolvi novos trabalhos com novos horizontes literários, dispondo portanto de elementos de juízo suficientes para afirmar com plena convicção que houve uma mudança importante no meu ofício de escrever. Não falo de qualidade, falo de perspectiva. É como se desde o Manual de Pintura e Caligrafia até a O Evangelho segundo Jesus Cristo, durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. (…) Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com o Ensaio sobre a Cegueira.” (pp. 33 e 34)

Partindo desta explicação, entende-se melhor a importância da obra Levantado do Chão, já com o estilo que se tornará muito próprio de Saramago. A história situa-se no Alentejo, descreve a vida de três gerações da família Mau-Tempo, desde os finais dos século dezanove até à Revolução de Abril de 1974 e relata a vida duríssima do campo, a miséria do povo, o poder dos latifundiários, da guarda republicana, a hipocrisia da igreja e as lutas camponesas para conseguir trabalho, redução de horário e um pagamento mais justo, a perseguição aos comunistas e a violência praticada quer nos postos da guarda quer nas prisões.
É um livro brilhante. Saramago de forma muito crítica retrata uma época política difícil, mas é nas pessoas, no seu quotidiano, nas suas lutas, nas suas dificuldades que ele centra toda a acção. E ao acompanharmos a família Mau-Tempo, vamos percebendo a evolução política e social do país, vamos entendendo a luta duríssima dos camponeses pelos seus direitos por uma vida mais digna e justa.

Saramago apresenta-nos uma escrita crítica, sensível, poética e perturbadora. Por exemplo, quando descreve um dos momentos mais cruéis, de tortura, recorre à metáfora do carreiro de formigas que surpreende, perturba e, simultaneamente, encanta o leitor.



30 novembro, 2020

Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, de José Saramago

 


OPINIÃO


Saramago escreveu este texto a pedido do compositor Azio Corghi para ser adaptado à ópera. À medida que o autor ia escrevendo a peça teatral o compositor ia construindo o libreto. (O posfácio “Génese de um libreto”, esclarece como o projecto foi sendo construindo: troca de correspondência (email) com as diversas ideias e sugestões dos dois criadores.) 
Neste texto, Saramago altera o mito de Don Juan (já muito abordado por vários autores), isto é, em vez de o condenar aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, decide absolvê-lo e mostrar que ele é que foi seduzido. Estamos, evidentemente, perante uma paródia, tal como o original espanhol.
Ao longo das cinco cenas de um único acto, desfilam as personagens que vão mostrar o propósito do autor. Quem é o Don Giovanni de Saramago, um sedutor, ou um seduzido? Temos, então o próprio dissoluto Don Giovanni e o seu criado Leporello, a estátua do comendador, as mulheres que o tentam seduzir: a nobre Dona Ana, a burguesa Dona Elvira e a camponesa Zerlina e ainda os traídos Don Octávio e Masetto. Em poucas páginas, e à boa maneira saramaguiana, se satirizam os valores e comportamentos de uma sociedade hipócrita.

18 novembro, 2020

Saramago esculpido por Vhils

 

Vhils (Alexandre Farto) esculpiu rosto de José Saramago num pontão, junto ao mar, na Lourinhã, no dia em que o escritor faria 98 anos.

A servir de legenda, está uma citação do romance de Saramago, A Jangada de Pedra:

Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que para mais não lhes chegam as forças, bem melhor seria vivermos em terra de tufões.




30 agosto, 2020

Série televisiva os "Herdeiros de Saramago"

 

                                          créditos da foto: facebook Herdeiros de Saramago

Esta série televisiva (RTP Play), assinada por Carlos Vaz Marques e Graça Castanheira, é composta por 11 episódios documentais sobre outros tantos escritores de língua portuguesa distinguidos com o Prémio José Saramago.
A estreia estava marcada na RTP para junho, mas acabou por ser adiada para novembro, pensada agora para coincidir com o aniversário de nascimento de José Saramago.

Segundo Carlos Vaz Marques, a série pretende mostrar facetas dos autores premiados que serão “uma revelação mesmo para quem lê há muito os livros que escrevem”.
O autor referiu ainda que faltam, por exemplo, documentários sobre os artistas portugueses enquanto se encontram no auge do seu processo criativo, e, consequentemente, faltarão bons documentos visuais no futuro. 

“A escassez de imagens dos nossos arquivos audiovisuais que documentem a vida e o pensamento de grandes nomes da cultura portuguesa é confrangedora”, notou, afirmando ter sido esse o motivo que o lançou neste projeto, para o qual pesou o facto de ser jornalista e de estar há muito ligado ao mundo dos livros, tornando-se-lhe evidente a falta de documentos audiovisuais no âmbito literário.

Notícia completa in Observador


05 janeiro, 2020

Deste Mundo e do Outro, de José Saramago


OPINIÃO




Temos 60 crónicas publicadas em 1968 e 69 no jornal A Capital. Não podemos esquecer que nesta época tudo era dito com meias palavras, nas entrelinhas “E eu, rapazinho que vivia apertado na pele que lhe coubera, lançava o bafo às vidraças e traçava desenhos incompreensíveis, com a vaga inquietação de quem adivinha que há nas coisas sentidos ocultos que só ocultamente podem ser entendidos.” (p. 32).

Saramago, a certa altura, numa crónica intitulada Viagens na minha terra, revisita à obra de Almeida Garrett, apresenta a seguinte questão: “Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos? São o que podem ser.” (p. 50). 

Considero que estes textos são precisamente testemunhos, reflexões, uns mais irónicos que outros, do autor sobre pessoas importantes da sua vida (avô e avó maternos), sobre escritores que o marcaram, sobre aspectos da sua infância (a casa onde viveu), factos do dia-a-dia (cidade, amola-tesouras, praia, férias, etc), acontecimentos importantes (a ida à lua). Os textos estão tão bem escritos que alguns são autênticos contos. Ele próprio refere “Amigos, esta história é verdadeira. Todas as minhas histórias são verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla.” (p. 59.) 

Outro aspecto que me agradou bastante é a cumplicidade estabelecida entre autor e leitor, há uma constante interpelação ao leitor “perdoará o leitor que eu me deixe escorregar pelo declive das utopias” (p. 77); “Dê-me a sua mão, leitor. Sente-se aqui, a meu lado, e escute a história simples do coração dos homens.” (p. 109); “Deu-me para aqui hoje, leitor. Tenha paciência e vire a página.” (p. 129); e por aí adiante. São múltiplos os exemplos e dou por mim a sorrir, pois adoro esta cumplicidade é como se eu fosse personagem dos textos de Saramago e isso é um tremendo privilégio. 



21 setembro, 2019

A maior flor do mundo, de José Saramago


SINOPSE

E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?

OPINIÃO

A maior flor do mundo é uma linda história para crianças e adultos. Neste primeiro conto infantil, Saramago integra a história como personagem, interagindo com o leitor, colocando questões sobre a sua capacidade de escrever histórias para crianças e propondo mesmo que sejam estas a reescrever a história.

Claro que nesta simples e curta história há um ensinamento. Outra coisa não se esperaria do autor. Através de uma coisa muito simples como regar uma flor que, no entanto, exigiu esforço por parte da criança, se demonstram valores como a esperança, a perseverança e o amor.


23 julho, 2019

História do Cerco de Lisboa de José Saramago



SINOPSE

«Há muito que Raimundo Silva não entrava no castelo. Decidiu-se a ir lá. O autor conta a história de um narrador que conta uma história, entre o real e o imaginário, o passado e o presente, o sim e o não. Num velho prédio do bairro do Castelo, a luta entre o campeão angélico e o campeão demoníaco. Raimundo Silva quer ver a cidade. Os telhados. O Arco Triunfal da Rua Augusta, as ruínas do Carmo. Sobe à muralha do lado de São Vicente. Olha o Campo de Santa Clara. Ali assentou arraiais D. Afonso Henriques e os seus soldados. Raimundo Silva "sabe por que se recusaram os cruzados a auxiliar os portugueses a cercar e a tomar a cidade, e vai voltar para casa para escrever a História do Cerco de Lisboa. Uma obra em que um revisor lisboeta introduz a palavra "não" num texto do século XII sobre a conquista de Lisboa aos mouros pelos cruzados.» (Diário de Notícias, 9 de outubro de 1998)


OPINIÃO

Neste romance de Saramago estamos perante um diálogo entre a história e a literatura, o que nos permite encarar os factos de uma forma mais atraente. Temos a história do Cerco de Lisboa levado a cabo por D. Afonso Henriques em 1147 contra os mouros que ocupavam Lisboa e a história de Raimundo Silva, revisor de uma editora lisboeta, escrevendo, por sua vez, a história do cerco. 

Durante a revisão da História do Cerco de Lisboa Raimundo Silva decide colocar a palavra NÃO numa página e alterar assim os factos da história do Cerco de Lisboa. 

“uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passo a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade,” (p. 50) 

A introdução desta simples palavra na história, vai causar primeiramente perturbações no seu comportamento e posteriormente alterações na sua vida. 

Mais uma vez estamos perante a mestria de Saramago na construção de personagens complexas. Ao atribuir a profissão de revisor a Raimundo, e ao escolher um romance histórico como o objecto revisado, Saramago coloca questões sobre a veracidade dos factos, sobre a aquisição e construção dos conhecimentos, sobre a objectividade/subjectividade do historiador. 

De forma irónica e numa escrita complexa, Saramago interliga os dois planos, isto é, as duas histórias que se vão desenrolando simultaneamente, a de 1147 e a actual, a de Raimundo Silva, a de 1980. Assim, Raimundo Silva ao escrever a sua versão da história, vai-se descobrindo a si próprio e vai projectando no passado a sua própria vida mesclando realidade e ficção.
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21 maio, 2018

Com o mar por meio. Uma amizade em cartas de Jorge Amado e José Saramago



Trata-se da troca de correspondência (entre 1992 e 1998) de dois grandes escritores de língua portuguesa, Jorge Amado e José Saramago. O facto de terem “o mar por meio”, não foi impedimento para que uma cumplicidade e sobretudo uma forte amizade se estabelecessem entre os dois e as suas respectivas companheiras, Zélia Gattai e Pilar del Rio. 

A leitura deste pequeno livro, permite ao leitor conhecer um pouco melhor a dimensão humana destes dois grandes vultos da nossa língua. Gostei muito.




12 março, 2018

Que Farei com Este Livro? de José Saramago




Bem ao estilo de Saramago, este livro é uma sátira à sociedade, aos vícios do reino no tempo das descobertas. 

Tendo a figura de Luís de Camões e a publicação do seu livro maior Os Lusíadas, após o regresso da Índia, como ponto fulcral deste texto dramático, Saramago põe em evidência a miséria mental da corte e dos poderosos que a integram, o oportunismo, as influências, e o poder da Inquisição. 

Luís de Camões obteve finalmente, e porque estava bem recomendado, o parecer positivo para requerer a licença de impressão do seu livro. Este foi-lhe lido pelo próprio Frei de Bartolomeu Ferreira (censor do Santo Ofício) que, de entre outros aspetos, nele refere: “ … e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.”. 

Se neste tempo, a arte e a genialidade não eram reconhecidas, ou apenas por uma minoria, o mesmo se passa nos nossos dias. E é esta a intenção principal de Saramago ao escrever este livro, ora vejamos: “ Não, minha mãe, não estou conformado. Vivo em Portugal. Sei o que a experiência me ensinou. Que assim como se diz que não há dinheiro que pague o talento e o engenho, também se deveria dizer que por isso mesmo ninguém os quer pagar. Enfim, não percamos nós o ânimo. Quando o meu livro estiver publicado, talvez que el-rei mande dar-me uma tença.”

A leitura desta peça poderá servir como contextualização à abordagem da obra Os Lusíadas, nos diferentes níveis de ensino.