29 abril, 2020

Um Poema de Al Berto





6

embebedavas-te
na travessia daquele verão bebias muito vinho
na vertigem de fogosos corpos pouco sabias
acerca do ciúme e da traição

confiavas demasiado em ti eras alto e magro
nunca traficaras armas em Harrar
tinhas o peito cansado o andar lento
e jamais pernoitaras sob o céu de Alexandria

escuta
a partir de hoje abandono-te para sempre
ao silêncio de quem escreve versos
em Portugal
tens trinta e sete anos como Rimbaud
talvez seja tempo de começares a morrer

Al Berto

Poème d' Arthur Rimbaud






Jadis, si je me souviens bien, ma vie était un festin où s’ouvraient tous les coeurs, où tous les vins coulaient.
Un soir, j’ai assis la Beauté sur mes genoux. - Et je l’ai trouvée amère. - Et je l’ai injuriée.
Je me suis armé contre la justice.
Je me suis enfui. Ô sorcières, ô misère, ô haine, c’est à vous que mon trésor a été confié !
Je parvins à faire s’évanouir dans mon esprit toute l’espérance humaine. Sur toute joie pour l’étrangler j’ai fait le bond sourd de la bête féroce.
J’ai appelé les bourreaux pour, en périssant, mordre la crosse de leurs fusils. J’ai appelé les fléaux, pour m’étouffer avec le sable, le sang. Le malheur a été mon dieu. Je me suis allongé dans la boue. Je me suis séché à l’air du crime. Et j’ai joué de bons tours à la folie.
Et le printemps m’a apporté l’affreux rire de l’idiot.
Or, tout dernièrement m’étant trouvé sur le point de faire le dernier couac ! j’ai songé à rechercher la clef du festin ancien, où je reprendrais peut-être appétit.
La charité est cette clef. — Cette inspiration prouve que j’ai rêvé !
« Tu resteras hyène, etc…, » se récrie le démon qui me couronna de si aimables pavots. « Gagne la mort avec tous tes appétits, et ton égoïsme et tous les péchés capitaux. »
Ah ! j’en ai trop pris : — Mais, cher Satan, je vous en conjure, une prunelle moins irritée ! et en attendant les quelques petites lâchetés en retard, vous qui aimez dans l’écrivain l’absence des facultés descriptives ou instructives, je vous détache ces quelques hideux feuillets de mon carnet de damné.

Une saison en Enfer


28 abril, 2020

Rimbaud, o Viajante e o seu Inferno, de Ana Cristina Silva


OPINIÃO


Trata-se de um romance biográfico sobre um dos grandes poetas franceses do séc. XIX e um dos meus preferidos. Arthur Rimbaud influenciou a literatura moderna, apesar de em vida ter sido ostracizado pelos seus pares. 
“ Escrevia e era como se pudessem dizer de mim: «Ele é as próprias palavras. Não há dúvida de que é um sensualista. Sente a poesia como um corpo, cujas sensações só geram felicidade» ”. O poeta proferiu este desejo aquando da escrita do seu poema O barco bêbado /Le bateau ivre.

“As palavras sempre revolveram a cabeça de Arthur como bichos inquietos“. É assim que a autora inicia este seu livro. Cada capítulo é iniciado, em jeito de introdução, pelo narrador logo seguido do testemunho, na primeira pessoa, de algumas figuras que mais influenciaram a vida do poeta. Esta estrutura confere um certo dinamismo à narrativa, já que cada um, incluindo Rimbaud, apresenta o seu relato sobre os factos. A primeira voz é a da mãe, figura severa, fria, sempre aos gritos com o marido e os filhos. Entre ela e o filho vai estabelecer-se uma relação de ódio-amor constante. 

“Os gritos de Madame Rimbaud ocupavam toda a casa e eram sempre excessivos. Os ruídos da infância de Arthur foram os da gritaria da mãe”.

O carácter irascível, insolente e inconstante do poeta é muito influenciado pelo comportamento da mãe. Para se libertar dela e da vida burguesa que têm, o poeta transforma-se num viajante em constante busca de reconhecimento e de fortuna. As fugas constantes de casa para ficar “mais longe de sua mãe” proporcionaram-lhe muitos conhecimentos, adquiridos nos vários países para onde viajava, mas também o levaram ao inferno. A mãe em constante angústia refere que “Gostaria de arranjar maneira de quebrar o encanto das viagens que parecem despertar nele paixões nunca aplacadas”. Rimbaud não suportava o tédio e quando se cansava de um lugar ou de uma pessoa, partia. “Percorria o mundo com a mesma sofreguidão com que um homem sequioso bebe água”. Passou fome, viveu ao relento, adoeceu, palmilhou quilómetros, foi sustentado por amigos, pelo amante, o poeta Paul Verlaine, e quando estes lhe faltavam, recorria à mãe numa tentativa de sobrevivência.

Ana Cristina Silva agarra bem o leitor. A sua escrita poética transmite a dor, a inquietação e o desequilíbrio vividos pelo prodigioso poeta que bem cedo renunciou à escrita. “ A minha reputação era a de uma criatura maldita. Decidi e foi uma decisão definitiva. Passaria a habitar no silêncio e excluiria a poesia da minha alma”.



23 abril, 2020

História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar, de Luís Sepúlveda


OPINIÃO

E porque hoje se celebra o Dia Mundial do Livro, nada melhor do que reler um pequeno livro maravilhoso que encanta pequenos e mais crescidos. Com esta leitura homenageio também o autor que nos deixou há bem poucos dias.

A fábula do Gato grande, preto e gordo, Zorbas, e da linda e jovem Gaivota, Ditosa, contém uma bela lição de amizade e de solidariedade, para além de focar problemas ambientais provocados pela incúria humana. 
Com estes dois seres diferentes, juntos por uma promessa que o Gato teima em honrar, o leitor emociona-se e deixa-se conduzir pela simplicidade e beleza das palavras, mas que carregam uma fortíssima moral. 

“Tu és uma gaivota. Nisso o chimpanzé tem razão, mas só nisso. Todos nós gostamos de ti, Ditosa. E gostamos de ti porque és uma gaivota, uma linda gaivota. Não te contradissemos quando te ouvimos grasnar que és um gato, porque nos lisonjeia que queiras ser como nós; mas és diferente, e gostamos de sejas diferente. Não pudemos ajudar a tua mãe, mas a ti sim. Protegemos-te desde que saíste da casca. Demos-te todo o nosso carinho sem nunca pensarmos em fazer de ti um gato. Queremos-te gaivota. Sentimos que também gostas de nós, que somos teus amigos, a tua família, e é bom que saibas que contigo aprendemos uma coisa que nos enche de orgulho: aprendemos a apreciar, a respeitar e a gostar de um ser diferente. É muito fácil aceitar e gostar dos que são iguais a nós, mas fazê-lo com alguém diferente é muito difícil, e tu ajudaste-nos a consegui-lo. És uma gaivota e tens de seguir o teu destino de gaivota. Tens de voar. Quando o conseguires, Ditosa, garanto-te que serás feliz, e então os teus sentimentos para connosco e os nossos para contigo serão mais intensos e mais belos, porque será a amizade entre seres totalmente diferentes.
(…)
A jovem gaivota e o gato grande, preto e gordo começaram a andar. Ele lambia-lhe a cabeça com ternura e ela cobriu-lhe o dorso com uma das suas asas estendidas.” (pp. 92 e 93)

Recomendo! Leiam!

Os Transparentes, de Ondjaki


OPINIÃO


Começo por afirmar que adoro os livros de Ondjaki. É um maravilhoso contador de estórias. E neste, tudo é encantador e comovente: a escrita poética, os nomes das personagens, o vocabulário tão particular, a mensagem…
“- não te assustes - murmurou o VendedorDeConchas abraçando-a devagarinho -, eu sou o mar a chegar perto de uma concha…
- não me assustei – sorriu Amarelinha -, estou a olhar a lua”

Este livro, como muitos dos que já publicou, tem como cenário Luanda e apresenta uma panóplia de personagens-tipo fantásticas que abarcam todas as classes sociais. 
Ondjaki revela-nos uma Luanda actual, mas muito degradada, corrupta e sobretudo desumana. A sua visão crítica desta cidade em transformação é-nos revelada de forma precisa e irónica, claro, mas também humorística. Há descrições sublimes.
“- mas quem manda em tudo isto?
- gente muito superior
- superior… como deus?
- não. Superior mesmo! Aqui em Angola há pessoas que estão a mandar mais que deus.”

É através dos modos de vida, dos dramas e sobretudo dos diálogos fabulosos das personagens que vivem no prédio, do LargoDaMaianga, que percebemos a agitação que assola o povo africano, a corrupção que reina na capital e por inerência no país, a miséria e a fome de muitos, mas também a dignidade de um povo que luta, a solidariedade dos vizinhos…

“- a verdade é ainda mais triste, Baba: não somos transparentes por não comer… nós somos transparentes porque somos pobres.” 

“era um prédio, talvez um mundo,
para haver um mundo basta haver pessoas e emoções. as emoções, chovendo eternamente no corpo das pessoas, desaguam em sonhos. as pessoas talvez não sejam mais do que sonhos ambulante de emoções derretidas no sangue contido pelas peles dos nossos corpos tão humanos. A esse mundo pode chamar-se”vida”.
nós somos a continuidade do que nos cabe ser. a espécie avança, mata progride, desencanta, permanece. a humanidade está feia – de aspeto sofrido e cheiro fétido, mas permanece
porque tem bom fundo. 

É isto! Leiam!

12 abril, 2020

La Peste, de Albert Camus


OPINIÃO

Li este livro há muitos anos como leitura obrigatória. Não tinha maturidade suficiente para alcançar a dimensão da mensagem. Sabia que lhe daria uma segunda oportunidade, e esse momento chegou, estabelecendo um paralelismo entre a peste que na narrativa assolou Oran (Orão), em 1940, e o Covid 19 que vivemos presentemente. A situação é bem diferente em termos de conhecimentos científicos, de condições sanitárias, de comunicação, entre muitos outros aspectos, mas em termos comportamentais há muitas semelhanças como, por exemplo, a ligeireza como se abordou, no início, a doença, negando os riscos de contaminação exponencial, o incumprimento das normas, as tentativas de saída da cidade, a evolução da inquietação, do medo, das mortes. 

Camus escreveu este livro nos anos 40 (publicado em 1947), durante a Segunda Guerra Mundial, pelo que a narrativa é uma alegoria à ocupação alemã. Os franceses ocupados foram subjugados, perseguidos, torturados, mortos e muitos viveram escondidos e exilados na expectativa de uma reviravolta libertadora. Ele próprio colaborou na Resistência francesa, em luta contra os opressores nazis. 
Neste romance de enorme profundidade, o narrador é claro e objectivo, por vezes, distante e frio. A cidade assolada pela peste é descrita de forma soberba. O medo dos habitantes confinados, o sofrimentos dos doentes, o envolvimento dos que se encontram na linha da frente (destaco o médico Bernard Rieux), os riscos que correm na luta diária e desigual, o racionamento de bens alimentares e, por fim, a morte. Mas temos também momentos de grande solidariedade, de altruísmo e de amizade. Gosto sobretudo da forma como ele expõe o carácter humano. Há personagens magníficas (para além do já citado médico, há Tarrou, Cottard, Rambert, Grand e o padre Paneloux). 

No final da “crónica”, o narrador afirma que a peste não acaba, não morre, apenas se esconde para reaparecer um dia. Transpondo esta conclusão para os dias de hoje, poder-se-á questionar “o que é que vai mudar na nossa vida, na nossa sociedade depois desta epidemia? “ 

É de facto impressionante como esta obra é intemporal. Passados cerca de 75 anos, o mundo está a viver uma situação quase idêntica, isto é, uma sociedade confinada, a sofrer com o medo do futuro e a chorar as perdas humanas. É necessário chegar a uma situação extrema para reflectirmos sobre a vida, sobre as relações humanas, sobre os laços familiares.






08 abril, 2020

Escapadela em tempo de quarentena


Do mar, da minha varanda, vou matando saudades,
mas do Vasco, o tal da Gama, não me chegam novidades!
Será que está bem? Será que foi infectado pelo covid 19?
Ele que permanece na rua, diariamente, mas também sujeito ao cerco.
Decido sair...
Uma visita curta, breve, urgente.
Distam-nos cinco minutos, talvez um pouco mais, 
porque decido diminuir o passo para alongar o tempo...
Ah! Lá está ele! No seu pedestal, imune aos tempos,
observando o mar calmo, azul, cintilante,
cortado por uma linha vermelha intensa, 
tão intensa que até as nuvens brancas se perfilaram. 
Visão sublime!  
Que sortudo o Vasco! Eu também!



                                                                 fotos minhas



                                                                Fotos minhas

04 abril, 2020

Um poema de Al Berto

                                                                    moosegazette.net



Sida

aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar


Al Berto, in horto de incêndio

03 abril, 2020

Serotonina, de Michel Houellebecq




OPINIÃO


Em Serotonina, o protagonista Florent-Claude Labrouste, de 46, engenheiro agrónomo está completamente deprimido e desiludido com a vida e com tudo o que acontece no seu mundo.
“Seria eu capaz de ser feliz na solidão? Não acreditava nisso. Seria capaz de ser feliz no geral? É o tipo de perguntas que, creio, devem evitar fazer-se.” ( p.73)
Num texto irónico e provocador o autor narra, na primeira pessoa, o fracasso sexual e profissional de Florent, bem como os temas sociais e económicos que agitam a sociedade francesa.

Florent refugia-se nos anti-depressivos e no álcool numa tentativa de ultrapassar as suas angústias existenciais. “A minha reflexão ganhou profundidade pouco a pouco graças ao calvados, que é um álcool poderoso, profundo e injustamente ignorado”(p.61.

Numa tentativa de mudança radical de vida, ele rompe com Yuzu, a mulher com quem vivia, abandona o emprego, vende a casa e instala-se num hotel, mas a situação vai-se agravando e o novo comprimido Captorix que liberta serotonina ajuda-o a ultrapassar as suas crises, mas não só não lhe resolve o problema da solidão como elimina a sua libido.
“É um pequeno comprimido branco, oval, divisível. (…)
Mostrou-se logo de uma eficácia surpreendente permitindo aos doentes integrar com uma facilidade renovada os ritos maiores de uma vida normal… Os efeitos secundário indesejáveis mais frequentes observados do Captorix são as náuseas, a diminuição da libido e a impotência.
Nunca tinha tido náuseas.” (pp. 9 e 10)
Florent ilustra a decadência humana, a desumanização da sociedade, o medo do futuro.



01 abril, 2020

A despedida de Uderzo (1927-2020)

O mundo da ilustração despede-se de Uderzo

Vários ilustradores à volta do mundo estão a homenagear, alguns com desenhos inéditos, a vida e a obra do pai de Astérix, que morreu esta terça-feira, aos 92 anos.


VER GALERIA: https://www.publico.pt/2020/03/24/fotogaleria/mundo-ilustracao-despedese-uderzo-400824