17 março, 2024

Nuno Júdice (1949 - 2024)

 



Plano


Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”


___________

Elegia com uma variação romântica


As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem
as camas desfeitas, empilham camisas e calças,
abotoam os cintos do infinito, prendem os laços
da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam
agulhas no buraco da vida, cosem as feridas
do amor que não tiveram, cantam devagar
a canção da idade fria. Dispo essas mulheres
no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras
do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo
os pontos que acabaram de coser. O seu sexo -
seco pelos ventos de uma inquietação nocturna
- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março
enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes,
as mulheres loucas abrem a porta da varanda,
respiram o perfume das trepadeiras brancas
da primavera, desmaiam com o sol.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”



16 março, 2024

𝑨 𝑩𝒐𝒏𝒆𝒄𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒑𝒊𝒅𝒂, de Paulo M. Morais

 


Autor: Paulo M. Morais
Título: A Boneca Despida
N.º de páginas: 380
Editora: Casa das Letras
Edição: Maio 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3479)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐






11 março, 2024

Vencedores dos Óscares 2024




Os Óscares foram entregues na noite de 10 para 11 de março, numa cerimónia realizada no Dolby Theatre, em Los Angeles. 
“Oppenheimer” que era o mais nomeado dos filmes, com 13 nomeações obteve  no final,   sete estatuetas: Melhor Filme, Melhor Realização (Christopher Nolan, Melhor Ator (Cillian Murphy), Melhor Ator Secundário (Robert Downey Jr.), Melhor Banda Sonora Original, Melhor Fotografia e Melhor Montagem.  



 
OPPENHEIMER - Novo Trailer (Universal Studios) – HD



Premiados:

Melhor Filme — "Oppenheimer", Emma Thomas, Charles Roven e Christopher Nolan (produtores)

Melhor Realização — "Oppenheimer", de Christopher Nolan

Melhor Atriz — Emma Stone ("Pobres criaturas")

Melhor Ator — Cillian Murphy ("Oppenheimer")

Melhor Atriz Secundária — Da’Vine Joy Randolph ("Os excluídos")

Melhor Ator Secundário — Robert Downey Jr. ("Oppenheimer")

Melhor Filme Internacional — "A zona de interesse", de Jonathan Glazer (Reino Unido)

Melhor Curta-Metragem — "A incrível história de Henry Sugar", de Wes Anderson

Melhor Longa-Metragem de Animação — "O rapaz e a garça", de Hayao Miyazaki

Melhor Curta-Metragem de Animação — "War is over", de Dave Mullins e Sean Lennon

Melhor Documentário — "20 days in Mariupol", de Mstyslav Chernov

Melhor Curta-Metragem Documental — "The last repair shop", de Kris Bowers e Ben Proudfoot

Melhor Argumento Original — "Anatomia de uma queda", de Justine Triet e Arthur Harari

Melhor Argumento Adaptado — "American fiction", de Cord Jefferson e Percival Everett

Melhor Banda Sonora Original — "Oppenheimer", de Ludwig Göransson

Melhor Canção Original — "What was I made for?", de Billie Eilish e Finneas O'Connell, para "Barbie"

Melhor Design de Produção — "Pobres criaturas", James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek

Melhor Montagem — "Oppenheimer", Jennifer Lame

Melhor Fotografia — "Oppenheimer", Hoyte Van Hoytema

Melhores Efeitos Visuais — "Godzilla minus one", Takashi Yamazaki, Kiyoko Shibuya, Masaki Takahashi e Tatsuji Nojima

Melhor Som — "A zona de interesse", Tarn Willers e Johnnie Burn

Melhor Caracterização — "Pobres criaturas", Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston

Melhor Guarda-Roupa — "Pobres criaturas", Holly Waddington




10 março, 2024

Apresentação do livro Súbito, de Ana Zorrinho

                                                                            Foto de Paulo Pereira

Cumprimento todos os presentes.

Quero agradecer o convite formulado pela Ana Zorrinho para estar ao seu lado nesta iniciativa de partilhar palavras poéticas.

Quero congratular a Liliana Rodrigues e os elementos da sua equipa por nos proporcionarem este momento e este espaço maravilhoso. É tão bom falar de poesia num ambiente de fotografias de mulheres com livros.

É um prazer enorme assinalar o Dia Internacional da Mulher partilhando convosco as palavras escritas e ditas pela Ana Zorrinho. Ela sabe que é verdade.


Este dia, 8 de março  de 2024, é duplamente importante porque celebramos os 50 anos do dia “em que emergimos da noite e do silêncio” como o imortalizou Sophia de Mello Breyner no seu poema 25 de Abril 

      Esta é a madrugada que eu esperava
     O dia inicial inteiro e limpo
     Onde emergimos da noite e do silêncio
     E livres habitamos a substância do tempo


e porque estamos a dois dias de exercer um acto cívico e democrático (direito conquistado pelas mulheres).

 Acabámos de ouvir publicamente uma jovem, a Catarina, a tocar violino e uma mulher a ler a poesia que escreveu. 
Em 1943, no boletim mensal da Mocidade Portuguesa Feminina, publicava-se o seguinte texto (apud A Boneca Despida, Paulo M. Morais)

"Queridas raparigas! Sede boas, sensatas, alegres, dedicadas, esquecidas de vós mesmas e sereis mulheres superiores, sem pretender rivalizar em tolas superioridades com os homens, o que nada vos engrandece, antes diminui! Cada um deve ocupar o seu lugar - aquele que a Providência lhe marcou. E o vosso, como rainhas do lar, é o mais belo."

Este estatuto de "fada do lar" prolongou-se até 1974. A Ana Zorrinho nasceu em 1978. Já a madrugada era inteira e limpa. Este facto permitiu-lhe crescer em liberdade, frequentar a escola, ler, escrever, pensar, sorrir, sonhar e entender o mundo “como poder ser o lar que a palavra espera” como o escreveu e acabou de ler no prefácio de Súbito.

No seu primeiro livro Histórias de um tempo só, a Ana, sem o ter vivido, oferece-nos histórias desse tempo, sombrio, histórias de vida tecida, de momentos, de memórias. Micro histórias de gente trabalhadora, sofrida, enrugada, cansada, resignada. Dez textos de um tempo “frio, cortante”, ventoso, escuro, silencioso, sem palavras. Um tempo indiferente à dor, à violência, à solidão, à velhice, à morte…

(Leitura do texto "Maria". p. 13, por Sónia)

Quando em Julho na Festa do livro me vi com Súbito na mão, observei-o atentamente, (gostei da apresentação) folheei-o, li na diagonal alguns poemas, tentei perceber a razão do título e na contracapa procurei alguma informação extra, uma sinopse. Deparei-me com algo pouco comum: o significado da palavra Súbito. Fiquei a matutar…. E pensei: É natural, a Ana é assim mesmo, gosta de surpreender o leitor. Gosta de o conduzir na descoberta de sentidos, de emoções, convoca-o a participar ativamente, não lhe facilita a vida porque nem tudo é dito. O mais importante fica mesmo nas entrelinhas.

Era necessário, obviamente, ler os poemas.

Voltei ao início e li o primeiro poema “palavras” (p. 9). Este sugere, desde logo, uma leitura expressiva, sentida, impetuosa (súbita), silenciosa, … fui até ao fim do livro e descobri “palavra nascente” que nos remete para a importância do nascer, como um recomeço.
 
Leitura do poema (p. 73- Ana)

Na leitura e releitura dos restantes poemas deixei-me conduzir pelas palavras, pela escrita visual, sensível e sensual.

(Leitura do poema “lugar” p.11, por José)

Descobri um ritmo variável, vagaroso, torrencial, deslizante, reflexivo, súbito…. Gosto desta volubilidade.

 (leitura do poema “último poema” p. 67, por Paulo)

Este “último poema” sugere o fim da vida, mas é apenas o fim que conduzirá forçosamente ao recomeço. Esta circularidade da vida expressa nas Palavras contidas nos títulos e nos poemas, como já referi, torna-se mais consistente se tivermos em conta a existência de um fio condutor que é o Tempo. O Tempo surge na espera, na solidão, na brevidade da vida, na morte, na ausência, na verdade, na suspensão (“Oh ampulheta/Inclina-te um pouco/Suspende o cair do grão” (p. 45), na saudade, no mergulho, na esperança, no silêncio, no prazer, na cadência, no vazio da escrita pasmado em "vértice" (p. 51)
          
                            No extremo do vértice
                            Vejo plenamente o vazio a 360 graus
                            Flicto-me para o salto
                            Sobre o limite
                            da linha
                            Mergulho no nada
                            Desta página em branco
                            Afogo-me 
                            Nas palavras inexistentes


O drama do escritor perante a página em branco e nas palavras inexistentes, transborda para mim, leitora, em magia, deslumbramento. Não me canso de o ler. De os ler, todos.
Para concluir posso afirmar que a subjetividade presente na escrita da Ana exige do leitor uma participação efetiva, oferecendo-lhe múltiplas leituras. Súbito cumpre, deste modo, o propósito da poesia.

8 de Março de 2024 | 21h30 | Centro de Exposições
Centro de Artes de Sines

Graciosa Reis





05 março, 2024

Encontro com o autor Ondajki - Texto de apresentação


Foto GR

Ndalu Almeida, conhecido por Ondjaki é um poeta e escritor do mundo. Nasceu e estudou em Angola (5 julho de 1977), licenciou-se em Lisboa (sociologia), fez o doutoramento em Itália e estudou ainda em Nova Iorque. O seu percurso artístico vai para além da escrita, passa pelo cinema (filmou um documentário), pelo teatro, pela pintura e em 2020 lançou-se num novo projecto ao criar a Livraria Kiela em Luanda.

As suas obras (contos, poesia, romances, novelas, teatro) estão traduzidas em várias línguas. E com elas já recebeu inúmeros prémios em Angola e no estrangeiro. Destaco o Prémio Saramago em 2013 com o romance Os Transparentes.

Quando em 2007, na Livraria A das Artes ouvi, pela primeira vez, Ondjaki falar, ou melhor, contar estórias, fiquei maravilhada e decidi nunca mais o perder de vista.

Ao ler os seus livros, acredito que Ondjaki teve uma infância de momentos de aqui, felizes, aconchegada de palavras ditas por um “tio Rui que era poeta”, por uma tia Alice que “tirava letras do bigode do tio” e sobretudo pela “avó dezanove” que tinha segredos, “gigantescas maravilhas” e que lhe contava, e se calhar ainda conta, estórias de “pirilampos cintilantes”, “pirilampos apagados”, “estrelas pirilampas”, de borboletas, de brincadeiras, de soviéticos, de transparentes…

Ondjaki, atento e sensível, cientistou a alegria, o brilho, os pirilampos, os cheiros, mas também a sua rua, o seu bairro, a sua cidade, o seu país, o seu/nosso mundo; aprendeu que olhar através de Uma escuridão bonita é sonhar, é sentir o coração, é espanadar tristezas, medos, dificuldades; entendeu que assobiar resgata a alma, desperta desejos e sentimentos e liberta o sonho (outra vez o sonho. Sempre o sonho.)

Ondjaki, na sua escrita, legou-nos o seu entendimento do mundo. Nela há prendisajens, há palavras poéticas que enlaçam, abraçam, esculpem e tornam-no xão. Como exemplo, nas estórias de Os da minha rua, fica claro pela voz de Ndalu, como as pequenas coisas são importantes para as crianças. Como os ensinamentos dos mais velhos são preciosos, sábios….

Para escrever os seus livros, Ondjaki resgata memórias, vivências, deslembramentos, sonhos e futuros. Em todos, cria universos mesclados de realidade, sentimento, imaginação, fantasia. Em todos, destaca e critica a sociedade angolana, abordando desigualdades sociais, violência (guerra), preconceitos, racismo. Em todos, manobra as palavras, como lhe escreveu Manoel de Barros, inventa palavras, brinca com os sons, os ritmos, os sentidos das palavras. Em todos imortaliza sonhos, emoções.

Por tudo isto, Ondjaki é um contador de estórias único e encantador. Gosto de o ouvir falar. Gosto de o ler. Gosto de o ler em voz alta para melhor captar a harmonia e a poesia das suas palavras.

Vou terminar, mas como Ndalu, também não gosto de despedidas. E agora, cito:  ”Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração.”

Será que nós, adultos, sabemos? Fica a pergunta. Eu, não vou responder, prefiro passar a palavra e escolher a ternura que toca a alegria de ter Ondjaki aqui, na nossa biblioteca para nos contar mais umas estórias e assim a nossa “escuridão ficar mais bonita”.

Biblioteca escolar ESPAB, 05 de Março de 2024
Graciosa Reis


17 fevereiro, 2024

𝑶 𝑨𝒏𝒊𝒃𝒂𝒍𝒆𝒊𝒕𝒐𝒓, de Rui Zink

 



Autor: Rui Zink
Título: O Anibaleitor
N.º de páginas:135
Editora: Teodolito
Edição: Outubro 2014
Classificação: Novela
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Que leitura agradável, divertida, plena de humor. Adorei conhecer o Anibaleitor, uma figura mítica, quiçá, o Adamastor dos Lusíadas ou o Mostrengo de A Mensagem, ou o King Kong, das telas de cinema, bem como adorei acompanhar as aventuras do jovem protagonista que não gosta nada de ler.

A forma como se conheceram não vou narrar, pois anularia o encanto desta narrativa. Contudo, no primeiro parágrafo, já deixei algumas pistas…

É na ilha, onde decorre uma parte da acção que estes dois improváveis comparsas se vão conhecer e tornar amigos. O jovem que, de início, teme ser devorado pelo monstro, e para fugir a tão ingrato destino aceita, à semelhança “de uma tal Xerazade” das Mil e uma noites, ler durante o dia os livros indicados pelo seu “descomunal interlocutor” para à tardinha tecerem juntos comentários sobre os livros lidos.
“Sabes, fiquei a tarde toda a magicar naquela dos livros de que não gosto. (…) O texto é um tecido e o tecido é um texto. O entrelaçar de fios diferentes – ritmo, sentido, letras – para fazer um tapete de palavras, um tapete com um desenho que pode ser mais ou menos laborioso, intrincado, estimulante, misterioso. Ou seja, uma coisa que se leia. Topas?” (pp. 89 -91)

A partir das leituras e das conversas surgem grandes reflexões sobre a importância da leitura, sobre a escolha de determinados livros, sobre a mensagem emanada dos mesmos.
A narrativa funciona como uma manta de retalhos (é o próprio autor que o refere) tal é a intertextualidade com poemas, autores, obras, imagens, personagens, letras de canções. Uns citados directamente, outros revelados nas entrelinhas e outros mais subtis que apelam, ou não, ao conhecimento, à memória do leitor. Não é importante para a compreensão da narrativa descobrir todas as referências literárias, culturais, mas torna-se um desafio.
Apesar de ser um livro de fácil leitura, a mensagem não é tão linear como aparenta. O próprio autor, no final, alerta para a possibilidade de este “texto poder esconder outro”. E eu concordo. Fiquei com a ideia de que nos quis narrar a sua própria caminhada na descoberta dos livros, da leitura, do prazer de ler e, mais tarde, do acto de escrever.

“Como castigo obrigaram-me a ser escritor, uma sina que não desejo nem ao meu maior inimigo. É pior que prisão perpétua! Passamos o dia sentados a uma mesa, frente ao papel em branco ou ao computador em cinzento; o rabo amolece de tanto estarmos sentados, e ficamos a escrevinhar, a escrevinhar, sujeitos a artroses, a escrevinhar, a escrevinhar – histórias que, ainda por cima, quase ninguém lê, a menos que sejam adaptadas para cinema ou televisão.” (p. 124)


O Anibaleitor é uma autêntica diversão que através de um humor inteligente e de uma escrita simples e sarcástica convida jovens e menos jovens a “devorar” livros e a descobrir a importância da leitura num mundo cada vez mais votado à tecnologia.

Convido-vos a participar neste banquete, a devorar livros, mas sobretudo a degustar as palavras servidas pelo autor.
O livro que li é da minha biblioteca escolar, mas vou comprar um só para mim, pois há muitas passagens que quero sublinhar, seguindo o conselho de Anibaleitor, e, também, porque considero que é um livro que deve permanecer na minha mesa-de-cabeceira para, de vez em quando, me alimentar os sonhos.

“Para o Anibaleitor, um livro era um encontro entre duas vozes: a nossa e a do livro. E sublinhar um livro, não tinha mal nenhum, era quase como que ler a dobrar; era sinal de que encontráramos uma passagem, uma frase, um parágrafo, que nos tocava no texto e isso, segundo ele, valia ouro. Era quase como ganhar, de borla, um segundo livro.” (p. 73)






15 fevereiro, 2024

Vieste como um barco carregado de vento

 

                                                                        Foto GR



Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.



Maria do Rosário Pedreira, in O Canto do Vento nos Ciprestes



14 fevereiro, 2024

𝑶 𝑨𝒎𝒂𝒏𝒕𝒆 𝒅𝒆 𝑳𝒂𝒅𝒚 𝑪𝒉𝒂𝒕𝒕𝒆𝒓𝒍𝒆𝒚, de D. H. Lawrence

 


Autor: D. H. Lawrence
Título: O Amante de Lady Chatterley
Tradutora: Maria Teresa Pinto Pereira
N.º de páginas:350
Editora: Colecção Mil Folhas
Edição: Dezembro 2002
Classificação: Romance (clássico)
N.º de Registo: (1418)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Escrito em 1928. É importante referir a data para melhor entendermos a polémica causada na época. Foi censurado e proibido de ser publicado durante anos por conter descrições de cenas explícitas de sexo, mas sobretudo porque se foca no adultério e no prazer feminino.
Considero que, para além do erotismo presente na narrativa que lhe confere uma força literária arrebatadora, a obra é extraordinariamente enriquecedora no que diz respeito à condição da mulher inserida na sociedade inglesa muito tradicional e conservadora.
Gosto sobremaneira da personagem feminina. Oriunda de uma família burguesa, educada pelo pai fora da convencionalidade da época, Constance (Lady Chatterley) culta e liberal vai evoluindo ao longo da narrativa. De esposa passiva e aquiescente, desempenhando um papel de cuidadora de Clifford, o marido que regressou mutilado da guerra, vai gradualmente libertar-se desta função ao conseguir que o marido contrate uma enfermeira e, assim, fugir da monotonia diária e caseira.
Sobra-lhe, então, tempo para passeios no bosque e contemplação da natureza.
É nesse encantamento que descobre Mellors, empregado do marido. A deferência, inicialmente imposta por Mellors, vai transformar-se num relacionamento amoroso que só é possível porque ambos obtêm uma plena satisfação sexual nos encontros que mantêm clandestinamente.
Cedo percebemos que a relação de duas pessoas de classes sociais diferentes vai levantar dúvidas entre elas, mas vai sobretudo romper com as convenções sociais e os preconceitos estabelecidos.
A narrativa flui ao ritmo da dependência cada vez maior de Clifford que com a sua inteligência e o seu poder económico vai-se impondo em Wragby, cidade mineira onde residem e nas suas relações da sociedade inglesa, em alternância com as descrições minuciosas dos encontros de Constance e Mellors.
O autor confere às duas personagens, o atributo de subverterem a submissão e a passividade femininas no acto sexual e coloca-as numa relação sincera, sem falsidade, já que ambos se desnudam e com ternura exploram mutuamente o corpo de cada um até ao prazer simultâneo.
Penso que sejam estas descrições que chocaram os puritanos de então. E será que hoje, ainda, chocam alguns?
Não vou revelar mais nada. Convido-vos à leitura. Mas posso concluir que o livro não se foca só em sexo. Aborda também, e muito bem, questões sobre a exploração do homem assalariado, o conservadorismo, o snobismo, o tédio nos divertimentos, os valores sociais e familiares de uma época pós-vitoriana (entre as duas guerras) e, por que não, a libertação feminina e o amor.







13 fevereiro, 2024

Carnaval, de Cecília Meireles

 


Patrick Collins | "The Clown" | 1960 
Centro de Arte Moderna Gulbenkian



Com os teus dedos feitos de tempo silencioso,
Modela a minha mascara, modela-a…
E veste-me essas roupas encantadas
Com que tu mesmo te escondes, ó oculto!

Põe nos meus lábios essa voz
Que só constrói perguntas,
E, à aparência com que me encobrires,
Dá um nome rápido, que se possa logo esquecer…

Eu irei pelas tuas ruas,
Cantando e dançando…
E lá, onde ninguém se reconhece,
Ninguém saberá quem sou,
À luz do teu Carnaval…

Modela a minha mascara!
Veste-me essas roupas!

Mas deixa na minha voz a eternidade
Dos teus dedos de silencioso tempo…
Mas deixa nas minhas roupas a saudade da tua forma…
E põe na minha dança o teu ritmo,
Para me conduzir…


Cecília Meireles

12 fevereiro, 2024

A Sala de Professores, de Ilker Çatak

 

com Leonie Benesch, Leonard Stettnisch

Longa-metragem | 1h 34min | M/12 | Alemanha | 2023 |

estreia 22.02.2024 | Medeia Filmes

Sinopse 

Carla Nowak, uma professora dedicada de Educação Física e Matemática, inicia o seu primeiro emprego numa escola secundária. Destaca-se dos outros docentes graças ao seu idealismo. Quando há uma série de roubos na escola e se suspeita de um dos seus alunos, ela decide investigar o caso. Carla tenta mediar entre pais indignados, colegas obstinados e alunos agressivos, mas vê-se implacavelmente confrontada com as estruturas do sistema escolar. Quanto mais desesperadamente tenta agir de forma correcta, mais a jovem professora se aproxima do seu limite.


Ver trailer:

04 fevereiro, 2024

𝑶𝒔 𝑺𝒐𝒏𝒉𝒂𝒅𝒐𝒓𝒆𝒔, António Mota

 


Autor: António Mota
Título: Os Sonhadores
N.º de páginas:237
Editora: Gailivro
Edição (7.ª): Julho 2005
Classificação: Juvenil
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Ao ler este maravilhoso livro de António Mota, lembrei-me de imediato dos famosíssimos versos de Sebastião da Gama 𝑷𝒆𝒍𝒐 𝒔𝒐𝒏𝒉𝒐 é 𝒒𝒖𝒆 𝒗𝒂𝒎𝒐𝒔, / 𝒄𝒐𝒎𝒐𝒗𝒊𝒅𝒐𝒔 𝒆 𝒎𝒖𝒅𝒐𝒔./ 𝑪𝒉𝒆𝒈𝒂𝒎𝒐𝒔? 𝑵ã𝒐 𝒄𝒉𝒆𝒈𝒂𝒎𝒐𝒔? / 𝑯𝒂𝒋𝒂 𝒐𝒖 𝒏ã𝒐 𝒉𝒂𝒋𝒂 𝒇𝒓𝒖𝒕𝒐𝒔, / 𝒑𝒆𝒍𝒐 𝒔𝒐𝒏𝒉𝒐 é 𝒒𝒖𝒆 𝒗𝒂𝒎𝒐𝒔.

Em 𝑶𝒔 𝑺𝒐𝒏𝒉𝒂𝒅𝒐𝒓𝒆𝒔, a história narrada mostra que é pelos sonhos que vamos e que estes podem permanecer ao longo de uma vida. Na infância, os dois amigos, Hermenegildo Sousa e Armando Rosas, (Gildo e Rosas) viviam num lugarejo com grandes dificuldades, mas como todas as crianças tinham um sonho e correram atrás dele. Se houve ou não frutos, não o vou referir porque anularia o prazer da descoberta da narrativa.

É um livro dirigido aos mais jovens, aos sonhadores, a todos os que lutam e têm objectivos que gostariam de um dia ver realizados.


03 fevereiro, 2024

Não digas nada




NÃO DIGAS NADA!

Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

Fernando Pessoa, Poesias Inéditas (1930-1935)



31 janeiro, 2024

Leituras

 

𝑽𝒊𝒂𝒈𝒆𝒏𝒔, de Olga Tokarczuk



Autora: Olga Tokarczuk
Título: Viagens
Tradutora: Teresa Fernandes Swiatkiewicz
N.º de páginas: 343
Editora: Cavalo de Ferro
Edição (8.ª): Dezembro 2020
Classificação: Viagem/reflexões
N.º de Registo: (BE)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este Viagens escrito de forma fragmentada vai ganhando consistência e sentido à medida que avançamos na leitura. Temos textos narrativos intercalados de reflexões, de ensaios científicos, de pequenos apontamentos, registos, cartas, fotografias, mapas… textos brevíssimos, curtos, longos, incompletos, descontínuos, retomados mais à frente, como se de uma manta de retalhos se tratasse.

Nestas viagens não há turismo na verdadeira acepção da palavra. Há, sim, o olhar da autora sobre locais, pessoas, objectos do quotidiano, emoções, ciência, anatomia (corpo humano, recolha de órgãos, conservação e plastinação de corpos) religião, loucura, amor, psicologia,…
“ –Há coisas que acontecem por si mesmas, há viagens que começam e acabam em sonhos e há viajantes que respondem ao chamamento balbuciante do seu próprio desassossego.” (p. 86); “ a possibilidade infinita de viajar pelo corpo de um organismo” (p. 115);

Não é fácil acompanhar a viagem mental da autora. Várias vezes, sentimos necessidade de reler um parágrafo, um texto, de revisitar “uma viagem”, de conferir/completar uma informação, para assim irmos tecendo a manta de trezentas e tal páginas.
Olga Tocarczuk encara nesta obra, “o significado metafórico dos lugares”, isto é “o caminho individual de cada viajante e do sentido profundo da sua viagem.” (p. 150).
Cabe a cada um descobrir a viagem que pretende fazer nem que seja através de um filme, de um livro, de uma pintura, de um sonho, de uma conversa.
“Existe uma importante síndrome que recebeu o nome de Stendhal e que consiste em visitar um lugar conhecido através da literatura ou da arte e vivenciá-lo de modo tão intenso que se chega a desmaiar ou a sentir fraqueza.” (p.153)

Recomendo a leitura. Trata-se de um belíssimo manancial de informação, aprendizagem e divagação.






27 janeiro, 2024

𝑷𝒆𝒍𝒂 𝑳𝒊𝒃𝒆𝒓𝒅𝒂𝒅𝒆: 𝑹𝒆𝒔𝒑𝒊𝒓𝒂çõ𝒆𝒔, de Ana Luísa Amaral


Autora: Ana Luísa Amaral
Título: Pela Liberdade: Respirações
Ilustradora: Bárbara R.
N.º de páginas: 12
Editora: U. Porto Press
Edição: Outubro 2020
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (3504


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



O primeiro livro da colecção Concertina, editado pela U. Porto Press é um objeto/livro belíssimo com uma apresentação fora do comum (em concertina) e magnificamente ilustrado por Bárbara R. em harmonia com os seis poemas de Ana Luísa Amaral que configuram o tema da Liberdade.
Os títulos dos poemas são desde logo elucidativos: “Identidade"; "As cores da Servidão" (1 e 2); "A outra servidão: paisagem com dois cavalos"; "O tom da liberdade"; "A luta".

São poemas que versam questões universais como a ausência de liberdade, a opressão, a raça, a escravatura, a colonização, a violência, o poder.

Em “O tom da liberdade” a autora recorre à metáfora do gato para revelar a necessidade que cada um tem de ser livre “ o estar quando se quer/ e o não estar quando não”. É um poema lindíssimo, talvez o meu preferido.

Ana Luísa Amaral nestes seis poemas revela uma escrita sensível, subtil, atenta e preocupada com a condição do ser humano.

Recomendo.







Campo de concentração, de António Gedeão

 


Teus olhos, aves que poisas
sobre as amarguras do mundo,
e que bebem até ao fundo das coisas
como se as coisas não tivessem fundo;
teus olhos, de asas bem abertas,
povoaram de voos o claustro do meu rosto,
e interrogaram as sombras, as sombras sempre despertas
deste sono pressuposto

Vai-te. Não interrogues nada que eu não sei dizer-te nada.
Isto, e isso, e aquilo, não é isso, não é aquilo nem isto.
Não é nada.
Ou talvez não seja nada.
Ou talvez só seja isto:
um pavor de madrugada,
um mal que se chama existo.


Um poema de António Gedeão



23 janeiro, 2024

23 de Janeiro (?) de 1524 - 500 Anos



                                                    Hilario Sineiro: Luís Vaz de Camões




O dia em que nasci morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o céu se lhe escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas, pasmadas de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!



Luís Vaz de Camões 



22 janeiro, 2024

Fiquei doido, fiquei tonto...

 

                                         Toulouse Lautrec | Au lit, le baiser | 1892


Fiquei doido, fiquei tonto...
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços...
Fiquei tonto e foi assim...

Sua boca sabe a flores,
Bonequinha, meus amores,
Minha boneca que tem
Bracinhos para enlaçar-me,
E tantos beijos p'ra dar-me
Quantos eu lhe dou também.

Ah que tontura e que fogo!
Se estou perto dela, é logo
Uma pressa em meu olhar,
Uma música em minha alma,
Perdida de toda a calma,
E eu sem a querer achar.

Dá-me beijos, dá-me tantos
Que, enleado nos teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida,
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.

Não descanso, não projecto
Nada certo, sempre inquieto
Quando te não beijo, amor,
Por te beijar, e se beijo
Por não me encher o desejo
Nem o meu beijo melhor.


Fernando Pessoa


21 janeiro, 2024

Papoilas

 

                            Claude Monet | Champs de coquelicots en Argenteuil | 1873



estou opiada de ti
e percorres-me os nervos todos
com papoilas borboletas vermelhas

o meu corpo entrança-se de sonhos
e sente-se caminhando por dentro

aspiro-te
como se me faltasse o ar
e os perfumes dançam-me

qualquer coisa como uma droga bem forte
corpo e alma
rezam pequenas orações
gestos ritmados ao abraçar-te como que abraça
sonhos

coisa estranha

opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e
muito sol com luas por dentro

para poder mastigar estes sonhos
reais como mandrágoras


Poema de Ana Mafalda Leite



20 janeiro, 2024

À 𝑬𝒔𝒑𝒆𝒓𝒂 𝒅𝒆 𝑩𝒐𝒋𝒂𝒏𝒈𝒍𝒆𝒔, Olivier Bourdeaut

 

Autor: Olivier Bourdeaut
Título: À Espera de Bojangles
Tradutor: Rui Santana Brito
N.º de páginas: 193
Editora: Guerra e Paz
Edição: Abril 2016
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2912)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Que livro louco, estonteante, maravilhoso. No seu primeiro romance, Olivier Bourdeaut convida-nos a dançar ao som de Mister Bojangles; convida-nos a celebrar a vida e a amar loucamente; convida-nos a sonhar o inimaginável, a ultrapassar “as sacanices da vida” e até a aceitar o inaceitável.
“Sobre a cómoda da sala, (…) havia um velho e belíssimo gira-discos onde tocava sempre o mesmo vinil de Nina Simone e a mesma canção: Mister Bojangles. (…) . Aquela música era mesmo diferente, era triste e alegre ao mesmo tempo e, ao ouvi-la, a minha mãe ficava no mesmo estado. ”(p.22) e ainda

Numa escrita inteligente, poética carregada de humor e de alfinetadas ao convencional, o autor funde fantasia e realidade, mergulha as suas personagens num ambiente onírico, irreal, extravagante e apaixonado. Ao leitor só lhe resta “dançar ao som da música” que é como quem diz, apreciar a escrita, envolver-se no enredo que subtilmente e com mestria se vai adensando.
É sob o olhar ingénuo e fascinado do filho do casal, eternamente apaixonados, e do registo diarístico do pai que nos inteiramos das peripécias, das “mentiras ao contrário”, das farras, dos delírios desta família original e exuberante que se evade da banalidade para edificar momentos de felicidade e de fantasia. “ O meu pai sabia muito bem inventar belas mentiras por amor.” (p. 165)

O leitor vai folheando as páginas e absorvendo naturalmente cada palavra, cada decisão, aceitando e partilhando com prazer aquele “amor louco” que valida aquela estranha forma de viver, até que o previsível mas (in)aceitável acontece.
Não vou desvendar a viagem alucinante da parte final. Contudo, posso afirmar que se trata de um belíssimo romance de amor. Um romance de amor pintado com a magia do autor e balanceado ao ritmo de Mister Bojangles.

“Depois, logo que o derradeiro raio de Sol desaparecia por trás do cume da montanha, começavam a ouvir-se as primeiras notas de Bojangles a vibrar na voz doce e quente de Nina Simone e nos acordes do piano. Era tão bonito que toda a gente se calava para ver a minha mãe chorar em silêncio.”(p. 62)




19 janeiro, 2024

Eugénio de Andrade - Dia de Aniversário

 

                                                                           Foto GR



Procuro-te


Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te.



Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas


13 janeiro, 2024

“O menino que escrevia versos” – um conto de Mia Couto



                                                           Home Lessons | 1887 | Ralph Hedley




De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Verso do menino que fazia versos)

— Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo…


Mia Couto, O fio das missangas




11 janeiro, 2024

Al Berto - Dia de aniversário

 A partir de dois versos de Al Berto escrever uma carta :

ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem 

in Uma existência de papel - Poema 5 "Eremitério" 

Premissas:

- escrever à mão com letra bem desenhada, numa folha de papel personalizada;

-  iniciar a carta com os dois versos indicados;

- usar, no corpo da carta, as seguintes palavras: luz, papel, tinta, terra, mar, coração

Eis a minha carta: 


Sines, 11 Janeiro 2024

Ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem...

Como te esperei ansiosa e desesperadamente !
A saudade atormentava-me o coração e ofuscava a luz radiante do sol que aquecia a terra e se espelhava no mar, único confidente do meu desassossego.

Agora que te tenho finalmente comigo, afasto a melancolia e recupero o ensejo de preencher a folha de papel que há muito esperava a tinta que lhe daria algum sentido.

Promete que não voltas a partir...
Preciso de ti. Aqui. Sempre.
Só contigo saberei justificar a minha existência de papel.

Teu amigo, 

GR




10 janeiro, 2024

Comboio de palavras - escrita criativa

 


                                          Gerado com IA ∙ 10 de janeiro de 2024 às 7:22 da tarde


Hoje, escrevi intensamente! 
Encontrei-me estranhamente envolvida, agitada, alegre em mitigar, raivosamente, esta ansiedade e este ensejo obstinado ou urgente em me entregar! 


Texto criado em formação com DC em 11|10|2022




haiku - Escrita criativa

 





Haiku (haicai):
nome masculino

1. [Literatura] Forma poética muito breve, de origem japonesa, composta geralmente por três versos de cinco, sete e cinco sílabas.

"haicai", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/haicai.





08 janeiro, 2024

Globos de Ouro - Vencedores nas categorias de cinema

 



Melhor Filme – Drama

“Oppenheimer”


Melhor Filme – Comédia ou Musical

“Pobres Criaturas"


Melhor Realização

Christopher Nolan, “Oppenheimer”


Melhor Ator – Drama

Cillian Murphy, “Oppenheimer”


Melhor Atriz – Drama

Lily Gladstone, “Assassinos da Lua das Flores”


Melhor Ator – Comédia ou Musical

Paul Giamatti, “Os Excluídos” (vencedor)


Melhor Atriz – Comédia ou Musical

Emma Stone, “Pobres Criaturas” (vencedor)


Melhor Ator Secundário

Robert Downey Jr., “Oppenheimer


Melhor Atriz Secundária

Da’Vine Joy Randolph, “Os Excluídos”


Melhor Argumento

“Anatomia de uma Queda”


Melhor Filme Estrangeiro

“Anatomia de uma Queda” (França)


Melhor Filme de Animação

“O Rapaz e a Garça”


Melhor Banda Sonora Original

Ludwig Görranson, “Oppenheimer”


Melhor Canção Original

“What was I Made For?”, de “Barbie” (Billie Eilish O’Connell, Finneas O’Connell)


Melhor Filme por Mérito Cinematográfico e Comercial

“Barbie”




07 janeiro, 2024

𝑨 𝑪𝒂𝒔𝒂 𝒅𝒂𝒔 𝑩𝒆𝒍𝒂𝒔 𝑨𝒅𝒐𝒓𝒎𝒆𝒄𝒊𝒅𝒂𝒔, de Yasunari Kawabata

 


Autor: Yasunari Kawabata
Título: A Casa das Belas Adormecidas
Tradutor: Luís Pignatelli
N.º de páginas: 158
Editora: D. Quixote
Edição (4.ª): Julho 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3320)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


A Casa das Belas Adormecidas é um romance fortemente perturbador centrado num universo fechado, sinistro e misterioso, envolto em segredos, frequentada por “cavalheiros de idade”, isto é, “clientes no inativo”, também referidos como “velhos inativos”.

A narrativa na terceira pessoa descreve as noites que o velho Eguchi, de 67 anos, passa na casa. Sem qualquer julgamento, a história oscila entre a descrição pormenorizada das jovens adormecidas, à reflexão inerente ao desejo e aos sentimentos do velho Eguchi e às recordações das relações com outras mulheres da sua vida.

“E evite, peço-lhe, as brincadeiras de mau gosto, por favor. Não tente meter os dedos na boca da pequena que dorme! Não é de bom tom!”, recomendou a hospedeira ao velho Eguchi.” (p. 13). Com esta advertência inicial, fica claro que os frequentadores, velhos, como já citei, estão impedidos de ter relações com as jovens, muito jovens e virgens, porque elas estão dopadas para não acordarem e eles estão sexualmente impotentes. Assim, entende-se que o objectivo da casa é revitalizar homens que, decadentes, precisam iludir a sua virilidade, “ruminar tristemente as saudades da sua juventude perdida” (p. 103)

Apesar da sensibilidade e da elegância presentes na escrita da narrativa, esta é perturbadora e simultaneamente fascinante porque, na minha opinião, no universo erótico descrito, a mulher é desumanamente “abusada”, coisificada, na medida em que está totalmente nua e profundamente adormecida, como se fosse uma boneca, permitindo ao homem que frua de uma noite ao seu lado, que lhe admire o corpo, que a acaricie, e sinta o seu odor corporal. É nisto que reside a perturbação. Na cumplicidade leitora de assistir à contemplação da jovem pelo olhar do “velho inativo” que Eguchi ainda não é, de acompanhar o fluir dos seus pensamentos que tece fantasias e recorda vivências eróticas anteriores.

Assim, erotismo, decadência, solidão, memórias, velhice e morte - materializada no assombro do último sono - entretecem-se habilmente e de forma perfeita. A apreensão destas questões associada à reflexão que delas inferimos ao longo da leitura é facilmente transposta pela descrição sublime das belas adormecidas intocáveis. E no final, o leitor “aterrado e entontecido” e com imensas dúvidas sobre esta forma de lidar com a sexualidade na terceira idade, acaba por se render à beleza da escrita. Uma escrita que segundo Yukio Mishima (introdução) é fragmentária e erótica já que nos oferece cada detalhe, cada sensação, cada fantasia “ É admirável a precisão, a extrema elegância no pormenor, com que Kawabata descreve a primeira das «belas adormecidas» com que o sexagenário Eguchi passa a noite – como se fossem as palavras a acariciá-la.” (p. 10)



03 janeiro, 2024

𝑩𝒂𝒍𝒂𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑨𝒎𝒐𝒓 𝒂𝒐 𝑽𝒆𝒏𝒕𝒐, de Paulina Chiziane

 


Autora: Paulina Chiziane
Título: Balada de Amor ao Vento
N.º de páginas: 172
Editora: Caminho
Edição (6.ª): Janeiro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3374)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Balada de Amor ao Vento marcou a estreia de Paulina Chiziane na literatura moçambicana.
A obra centra-se no papel da mulher numa sociedade patriarcal onde predomina a prática da poligamia.
Numa prosa fluida, poética e irónica, Paulina Chiziane mostra-nos um mosaico de etnias e de culturas que permite ao homem, num casamento poligâmico, ter várias esposas e que à mulher impõe o dever de serva obediente ao marido, à família e às tradições.

No romance, narrado na primeira pessoa, Sarau, a protagonista, dividida entre um amor impossível e os costumes do seu povo, vai viver situações complexas. Para sobreviver e resgatar alguma dignidade vai prescindir de algumas regalias e recorrer a práticas espirituais e de feitiçaria.

Paulina Chiziane suaviza a dura realidade recorrendo a recursos expressivos como a metáfora, a personificação e a ironia. Ao longo da narrativa, a descrição das vivências, das emoções e das sensações das personagens mescla-se com a descrição da natureza. A natureza assume características humanas e vice-versa. Esta forma de escrever torna a leitura extremamente prazerosa.

"Emudecemos de repente. As mãos encontraram-se. Veio o abraço tímido. Trocamos odores, trocamos calores. Dentro de nós floresceram os prados. Os pássaros cantaram para nós, os caniços dançaram para nós, o céu e a terra uniram-se ao nosso abraço e empreendemos a primeira viagem celestial nas asas das borboletas." (p. 18)

Recomendo vivamente a leitura deste romance, bem como Niketche, uma história de poligamia. Neste último, o sentido de humor da autora é fabuloso e a escrita continua elegante e inspiradora.