30 maio, 2023

𝑬𝒔𝒄𝒓𝒆𝒗𝒆𝒓 𝒅𝒆𝒑𝒐𝒊𝒔 𝒅𝒆 𝑨𝒖𝒔𝒄𝒉𝒘𝒊𝒕𝒛, de Günter Grass

 



Autor: Günter Grass
Título: Escrever depois de Auschwitz
Tradutora: Helena Topa
N.º de páginas: 52
Editora: D. Quixote
Edição: Setembro 2008
Classificação: Discurso
N.º de Registo: (3431)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Escrever depois de Auschwitz  é a reflexão de Günter Grass sobre a possibilidade ou não de “fazer arte” ou de “escrever poemas” depois de Auschwitz.
Esta reflexão é parte do discurso que o autor proferiu a 13 de Fevereiro de 1990, no âmbito das Conferências de Poética, na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt. Nele insere-se ainda o olhar do autor sobre o seu país e sobretudo sobre o seu percurso literário.
A ideia de se posicionar como espectador e crítico da sua própria vida e do seu trabalho cria a possibilidade irónica de reduzir “o tamanho das coisas” a fim de evitar o período de tempo que o marcou “fazendo dele um prisioneiro do engano e uma testemunha”. Grass considera que lhe está “destinada a insuficiência” devido à exigência do tema que se propõe desenvolver em Frankfurt.

Grass refere que enquanto se manteve em Berlim e com vinte e cinco anos de idade “ainda não estava pronto para reagir escrevendo; pesavam-lhe o passado, perdas, a sua ascendência, vergonha” (p. 36). Só mais tarde em Paris, afastado do seu país encontrou as palavras necessárias para escrever os seus livros. Os estímulos e as críticas de Paul Celan foram fundamentais para que continuasse a escrever.
No seu discurso faz uma breve apresentação das suas obras e definiu a profissão de escritor como “alguém que escreve contra o tempo que passa (...) que se exponha às vicissitudes do tempo que passa, que se imiscua e tome partido” (pp. 44-45)
Finalmente, Grass adianta que “Não podemos passar ao largo de Auschwitz (…) porque Auschwitz nos pertence , está gravado a ferro e fogo na nossa História.” , pelo que escrever sobre esta matéria e sobre a Alemanha faz parte do seu trabalho e considera que lhe resta a insuficiência e que não pode “prometer um fim a escrever depois de Auschwitz, a menos que o género humano desista de si próprio.” (p. 52)




24 maio, 2023

𝑶 𝑫𝒆𝒔𝒂𝒑𝒂𝒓𝒆𝒄𝒊𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐 𝒅𝒆 𝑱𝒐𝒔𝒆𝒇 𝑴𝒆𝒏𝒈𝒆𝒍𝒆, de Olivier Guez

 

Autor: Olivier Guez
Título: O Desaparecimento de Josef Mengele
Tradutor: Mário Dias Correia
N.º de páginas: 223
Editora: Planeta
Edição: Setembro 2018
Classificação: Romance biográfico
N.º de Registo: (3126)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Olivier Guez narra-nos neste romance biográfico, a fuga aos tribunais de Josef Mengele, uma das figuras mais sinistra da Segunda Guerra Mundial. O médico nazi, conhecido nos campos de concentração como o “Anjo da Morte”, escolhia o destino das suas vítimas, encaminhando-os para a direita ou para a esquerda significava ou as câmaras de gaz ou os trabalhos forçados ou ainda o seu laboratório onde realizava pesquisas e experiências macabras a anões, deformados, gémeos, onde dissecou, torturou e queimou milhares de crianças. Foi um defensor zeloso e activo da “higiene racial” a política instituída pelo seu Führer. Inamovível e impenitente sempre considerou que agiu por amor à pátria e para “projectar a raça ariana na eternidade e para o bem da comunidade”. (p. 196)

A narrativa foca-se essencialmente na fuga de Mengele para a América do Sul. Primeiro para a Argentina de Péron que lhe facilitou a estada bem como a de muitos outros nazis que se esconderam neste país. Mergulhamos num mundo politicamente corrompido pelo fanatismo, ambição e muito dinheiro. Sob vários pseudónimos, Mengele leva uma vida clandestina, mas “doce” até que a perseguição recomeça e o obriga a fugir para o Paraguai e depois para o Brasil.
É o mito, o enigma do seu desaparecimento durante cerca de trinta anos que Guez tenta narrar. Ele próprio afirma “que há zonas de sombra que nunca serão esclarecidas” pelo que “só a forma romanceada me permitiria chegar o mais perto possível da trajectória macabra do médico nazi” (p. 217)

Guez é exímio na descrição minuciosa do homem minado pelo seu passado sem perdão, “condenado a uma existência encurralada. “ (p. 113). Apesar de nunca ter sido preso, a sua fuga para o Brasil, onde leva uma vida miserável, marca o início da “descida aos infernos”. Guez desconstrói toda a vaidade e o orgulho de Mengele e põe em evidência toda a sua vulnerabilidade, o pavor de ser preso, “o medo que todos os dias lhe rói as entranhas”. A vida de “ratazana” que passa a ter leva-o à loucura.

Mengele não foi julgado porque nunca o apanharam, mas será que a fuga compensou? Termino com a epígrafe citada na abertura da segunda parte intitulada ”A ratazana” e, que na minha opinião, é bastante esclarecedora.
“ O castigo corresponde ao crime: ser privado de todo o prazer de viver, ser levado ao mais alto grau de aversão pela vida” ( Kierkgaard).

Recomendo a leitura.



20 maio, 2023

𝑬𝒊𝒄𝒉𝒎𝒂𝒏𝒏 𝒆𝒎 𝑱𝒆𝒓𝒖𝒔𝒂𝒍é𝒎, 𝒖𝒎𝒂 𝒓𝒆𝒑𝒐𝒓𝒕𝒂𝒈𝒆𝒎 𝒔𝒐𝒃𝒓𝒆 𝒂 𝒃𝒂𝒏𝒂𝒍𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆 𝒅𝒐 𝒎𝒂𝒍, Hannah Arendt

 


Autora: Hannah Arendt
Título: Eichmann em Jerusalém - Uma reportagem sobre o mal 
Tradutora: Ana Corrêa da Silva
N.º de páginas: 446
Editora: Ítaca
Edição: Abril 2017
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3363)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal suscitou grande controvérsia na opinião pública e nos círculos académicos, aquando da sua publicação. O julgamento de Eichmann, um dos maiores criminosos do regime hitleriano levou a autora a desenvolver uma reflexão do mal. A sua reportagem jornalística, quer sobre o julgamento quer sobre o próprio Eichmann, é lúcida, mas perturbante já que ao questionar os valores da humanidade, insinua o conceito de “banalidade do mal”

Eichmann, um dos obreiros da “solução final”, grande responsável pela deportação e morte de milhões de judeus, ao afirmar, friamente, no julgamento, que se limitou a cumprir ordens superiores, a cumprir a lei, como se fosse um trabalho vulgar põe em evidência, segundo Arendt, a “total falta de pensamento”, isto é, a incapacidade de pensar por si. O mal perpetrava-se, executava-se, matava-se de forma irrefletida, apenas pela força (auto)coerciva da ideologia totalitária. Assim, Eichmann bem como muitos outros nazis, no ponto de vista da autora, representavam uma nova espécie de criminosos que cometeram, sem sujar as mãos, actos cruéis, crimes monstruosos. Eram meros burocratas que cumpriam o que lhes era exigido. Eichmann, na sua auto-defesa, chegou mesmo a referir que era inocente e que sempre se esforçou para desempenhar as suas funções de funcionário com esmero e rigor, acrescentando, mesmo, que se não fosse ele a providenciar a deportação para os campos de concentração, seria outro qualquer.

Arendt no seu “pós-escrito” esclarece alguns aspectos em relação às fontes dos documentos entregues ao longo do julgamento, justifica a sua deslocação a Jerusalém para assistir e reportar o julgamento e aborda a questão da controvérsia causada pelo subtítulo que atribuiu à obra. Segundo ela, e citando-a “quando falo da banalidade do mal faço-o apenas ao nível estritamente factual, no intuito de chamar a atenção para um fenómeno que se impunha inescapável a quem quer que assistisse ao julgamento. (…) Eichmann não era estúpido. O que fez dele um dos maiores criminosos da sua época foi a total ausência de pensamento. (…) Que um tal afastamento da realidade e uma total ausência de pensamento possam causar danos ainda maiores do que todos os maus instintos que são talvez inerentes à natureza humana – eis a verdadeira lição a tirar do julgamento de Jerusalém.” (pp. 428 e 429)

19 maio, 2023

Ausência...

 

                                          Auguste Rodin (1840-1917) | La femme accroupie





Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
E em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar

E em cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

Eu sei que vou te amar


Vinícius de Moraes e Tom Jobim

14 maio, 2023

Desassossego

 





há dias em que tudo em mim sou eu
outros há em que me não conheço
há dia em que o mundo todo é meu
e outros em que nem a mim pertenço

há dias em que todo eu sou desprezo
outros há em que tudo em mim é saudade
há dias em que indivisível
                                          uno
                                                   ileso
e outros
             como hoje
em que sou metade da metade da metade


Norberto Morais, Poesia Vol. 1 



13 maio, 2023

Inquietação!

 


Hoje de manhã saí muito cedo,


Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...


Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.


Assim tem sido sempre a minha vida, e
Assim quero que possa ser sempre —
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.


Alberto Caeiro


07 maio, 2023

Dia da Mãe

 


Beleza


Vem do amor a Beleza,
Como a luz vem da chama.
É lei da natureza:
Queres ser bela? - ama.

Formas de encantar,
Na tela o pincel
As pode pintar;
No bronze o buril
As sabe gravar;
E estátua gentil
Fazer o cinzel
Da pedra mais dura...
Mas Beleza é isso? - Não; só formosura.

Sorrindo entre dores
Ao filho que adora
Inda antes de o ver
- Qual sorri a aurora
Chorando nas flores
Que estão por nascer –
A mãe é a mais bela das obras de Deus.
Se ela ama! - O mais puro do fogo dos céus
Lhe ateia essa chama de luz cristalina:

É a luz divina
Que nunca mudou,
É luz... é a Beleza
Em toda a pureza
Que Deus a criou.

Almeida Garrett, Folhas Caídas

05 maio, 2023

Dia da Língua Portuguesa

 



Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O’Neill, Há palavras que nos beijam



02 maio, 2023

Texto de Al Berto

 

                                                                                Foto minha (Vila Nova de Milfontes - 2023)




8. Carta de Milfontes

    Foi em 1978, no verão, que te conheci. Nesse ano, num dos poemas de «doze moradas de silêncio» citei Rilke: «Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar.»
    Depois, a paisagem onde nos encontrámos, desapareceu, a pouco e pouco, num desfocado adeus. Eu escrevia, fechado num quarto de pensão, e tu retiravas-te do meu quotidiano.
Morrias longe de mim.
    O corpo que hoje regressa a Milfontes, já não é o corpo esplêndido que conheceste. Se há coisas na vida que contam com o tempo, são a amizade e a velhice. (O tempo fez-me perder a primeira, enquanto acentuava a segunda.)
    O olhar embaciou-se para o que me rodeia. Hoje, sem ti, já não consigo pressentir a sombra magnífica da noite sobre o rio. Nada se acende em mim ao escrever-te esta carta.
    Só a foz do rio parece guardar a memória duma fotografia há muito rasgada. O vento, esse, persegue a melancolia dos passos pelas dunas.
    É possível que os verões ainda sejam o que eram... com os corpos estendidos ao sol, e a oferenda de um sorriso malicioso a confundir-se com o marulhar das águas.
    Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las. E eu já não consigo nomear nada. Não me lembro sequer de um nome que resuma o movimento desastroso dos dias.
    O teu rosto deixou de se acender na ilusão de te possuir mais uma noite.
    Nada evoca esse tempo de frémitos de asas sobre a pele. Nenhum rumor do rio sobe até mim. Nenhuma ferida ficou por sarar.
    Deixei que os ventos e as chuvas apagassem o desejo no rastro dos répteis incandescentes. Sinto-me como a haste quebrada da urze ao abandono nas areias varridas pelo oceano.
    Contemplo as dunas, o casario contra a noite que se fecha, as luzes, o rio, as sombras das pessoas, o mar como uma lâmina sob a lua - e a ausência alastra em mim, cortante.
    Sento-me onde, dantes, me sentava contigo, perto do farol. O que me rodeia move-se no interior surdo de suas próprias sombras. É um movimento invisível através de territórios que o olhar mal assinala. Concentro a minha atenção nesses lugares que a luz não pode alcançar. Lugares escuros onde se escondem receios antigos e desilusões.
    Mantenho-me imóvel, tacteio teu rosto diluído na salina claridade do entardecer.
    Adormeço ou começo a subir o rio para fugir à imensa noite do mar.
...

Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida perto de mim.
...

Vou prosseguir viagem assim que o dia despontar e o som do teu nome, gota a gota, se insinue junto ao coração.

...


Al Berto, O Anjo Mudo



01 maio, 2023

Silêncios !



Francesca da Rimini | Ary Scheffer | Pintura



Este Inferno de Amar

Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett, in Folhas Caídas