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27 janeiro, 2024

Campo de concentração, de António Gedeão

 


Teus olhos, aves que poisas
sobre as amarguras do mundo,
e que bebem até ao fundo das coisas
como se as coisas não tivessem fundo;
teus olhos, de asas bem abertas,
povoaram de voos o claustro do meu rosto,
e interrogaram as sombras, as sombras sempre despertas
deste sono pressuposto

Vai-te. Não interrogues nada que eu não sei dizer-te nada.
Isto, e isso, e aquilo, não é isso, não é aquilo nem isto.
Não é nada.
Ou talvez não seja nada.
Ou talvez só seja isto:
um pavor de madrugada,
um mal que se chama existo.


Um poema de António Gedeão



29 março, 2023

Momento emocionante.



Hoje, fui surpreendida pela soberba leitura de dois poemas. Ana Zorrinho tem o condão de me  emocionar. Sabe dizer poesia! Sabe transmitir e partilhar emoções! É maravilhoso! 
Sou-lhe imensamente grata por estes momentos. 

|este foi um deles| 


Calçada de Carriche 

Luísa sobe, sobe a calçada,
sobe e não pode que vai cansada.

Sobe, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.

Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.

Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa, larga que larga,[x 4]
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa, larga que larga,[x 4]

Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada, [x 3]

Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.

António Gedeão


08 março, 2019

Dia da Mulher





CALÇADA DE CARRICHE


Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

ANTÓNIO GEDEÃO

Poesias Completas (1956-1967)

21 março, 2018

Poema da árvore





Poema da árvore


As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.

Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.


António Gedeão





25 dezembro, 2016

Dia de Natal




Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom. 
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, 
de falar e de ouvir com mavioso tom, 
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças. 
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem, 
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, 
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, 
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria. 

Comove tanta fraternidade universal. 
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, 
como se de anjos fosse, 
numa toada doce, 
de violas e banjos, 
entoa gravemente um hino ao Criador. 
E mal se extinguem os clamores plangentes, 
a voz do locutor 
anuncia o melhor dos detergentes. 

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu 
e as vozes crescem num fervor patético. 
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.) 
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. 
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante, 
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas 
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante. 

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, 
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica, 
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, 
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica. 

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, 
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. 
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito, 
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores. 

A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. 
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. 
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento 
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar. 

Mas a maior felicidade é a da gente pequena. 
Naquela véspera santa 
a sua comoção é tanta, tanta, tanta, 
que nem dorme serena. 
Cada menino abre um olhinho 
na noite incerta 
para ver se a aurora já está desperta. 
De manhãzinha 
salta da cama, 
corre à cozinha em pijama. 

Ah!!!!!!! 

Na branda macieza 
da matutina luz 
aguarda-o a surpresa 
do Menino Jesus. 

Jesus, 
o doce Jesus, 
o mesmo que nasceu na manjedoura, 
veio pôr no sapatinho 
do Pedrinho 
uma metralhadora. 

Que alegria 
reinou naquela casa em todo o santo dia! 
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, 
fuzilava tudo com devastadoras rajadas 
e obrigava as criadas 
a caírem no chão como se fossem mortas: 
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá. 
Já está! 
E fazia-as erguer para de novo matá-las. 
E até mesmo a mamã e o sisudo papá 
fingiam 
que caíam 
crivados de balas. 

Dia de Confraternização Universal, 
dia de Amor, de Paz, de Felicidade, 
de Sonhos e Venturas. 
É dia de Natal. 
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. 
Glória a Deus nas Alturas. 

António Gedeão, in 'Antologia Poética'