29 julho, 2021

𝑩𝒍𝒂𝒄𝒌𝒑𝒐𝒕, de Dennis McShade

 


Autor: Dennis McShade
Título: Blackpot
N.º de páginas: 58
Editora: Assírio & Alvim
Edição: Outubro 2009
Classificação: Policial
N.º de Registo: (3296)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Blackpot é uma novela policial de 58 páginas, escrita por Dennis McShade, alter-ego de Dinis Machado. Faz parte da série Peter Maynard (4.º livro). Contudo Maynard, o assassino profissional dos livros anteriores, não integra esta narrativa curta e de leitura rápida (cerca de 30 minutos). Sem protagonista evidente, poder-se-á afirmar que talvez seja a morte, já que se trata de uma sucessão de assassínios.
Através de conversas curtíssimas, cinematográficas, desenrola-se sob os nossos olhos toda uma “reorganização” de uma sociedade. Entre jogos de xadrez, telefonemas curtos, encontros, os vários homens “de lá de baixo” e os “de lá de cima”, apenas identificados pelos nomes de código, vão-se abatendo com precisão, silenciosamente. Não nos são apresentados os motivos, apenas poderemos subentendê-los a partir desta frase: “Pode-se vomitar tudo menos o medo e a solidão. “ (p.50)

No final, no último capítulo, o leitor retém a seguinte frase: “Victor foi com a mão, maquinalmente, à estante e retirou de lá La Chute, de Camus. Abriu o livro e leu pela milésima vez a frase que mais odiava: «Quando todos formos culpados então será a democracia». Atirou o livro para a lareira acesa e ficou a vê-lo arder durante cinco minuto.” (p.58)
Qual é então a intenção de Dinis Machado ao escrever esta novela? É que ele não nos dá muita informação, apenas acção e mortífera. Sabemos que os homens chamados para matar estão doentes, velhos, decadentes…. Será que combatendo o medo, a solidão, a injustiça nos conduz à libertação, a uma nova vida?
Durante a leitura não há tempo para reflectir, o leitor é levado pela rapidíssima acção. Só no final, e provavelmente, após uma releitura imediata, se vislumbram algumas, possíveis, interpretações, como aquela que já sugeri. Haverá, no entanto, outras possibilidades, sobretudo se nos detivermos na análise simbólica dos nomes das personagens, do jogo de xadrez.




28 julho, 2021

𝑼𝒎 𝑨𝒏𝒋𝒐 𝒏𝒐 𝑻𝒓𝒂𝒑é𝒛𝒊𝒐, de Manuel da Fonseca

 



Autor: Manuel da Fonseca
Título: Um Anjo no Trapézio
N.º de páginas: 125
Editora: Caminho
Edição: Outubro 1990
Classificação: Contos
N.º de Registo: (445)



OPINIÃO ⭐⭐⭐1/2


Um Anjo no Trapézio inclui sete contos em que o espaço narrativo se situa em Lisboa e não no seu Alentejo litoral (Santiago do Cacém). Já não temos a gente humilde e trabalhadora do campo que se reúne nas praças, nas feiras, nos montes, da rua e passamos a descobrir gente infeliz, desamparada que vive com dificuldades e na incerteza, na miséria, no álcool, na doença, na violência doméstica, na solidão, na corda bamba…

Como habitualmente, Manuel da Fonseca revela uma escrita interventiva mais social que política (neste livro), retratando o povo, a sua vida. Ele exalta o ser humano, descreve-o física e psicologicamente de forma sublime, emotiva. É muito a partir destas descrições que depreendemos a vida da personagem. E nunca nos indica o final, cabe ao leitor, se assim o entender, imaginar o fado da personagem.
Não é o melhor livro do autor, na minha opinião, gostei mais dos anteriores, talvez porque se focam mais no campo, nos alentejanos. Este é todo citadino e por isso as problemáticas são diferentes, mas como já referi, a preocupação do autor em denunciar as questões sociais, mantêm-se.

Vale a pena ler Manuel da Fonseca!



27 julho, 2021

Um poema de Manuel da Fonseca





ANTES QUE SEJA TARDE

Amigo,
Tu que choras uma angústia qualquer
E falas de coisas mansas como o luar
E paradas
Como as águas de um lago adormecido,
Acorda!
Deixa de vez
As margens do regato solitário onde miras
Como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
Desse país inventado
Onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
Do barco ao deus-dará
E esse ar de renúncia
Às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
Liberta-te dessa paz podre de milagre
Que existe
Apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
Abre os braços e luta!
Amigo,
Antes de a morte vir
Nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca – Poemas Completos




26 julho, 2021

𝑷𝒆𝒓𝒆𝒈𝒓𝒊𝒏𝒂çã𝒐, de Olivier Rolin

 


Autor: Olivier Rolin
Título: Peregrinação
N.º de páginas: 261
Editora: Sextante Editora
Edição: Agosto 2019
Classificação: Romance /Viagens
N.º de Registo: (3210)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Peregrinação, foi escrito, em parte, em Cascais onde o autor permaneceu durante uns meses numa residência literária. Este título é uma homenagem ao nosso país que o autor admira e à nossa literatura.
“Os Açores, esse arquipélago perdido no meio do Atlântico, entre Europa, Áfica e Américas, foi lá que iniciei a minha peregrinação, por acaso, como se me tivesse atirado à água…” (p. 261)
Olivier Rolin, no seu prefácio, informa-nos que sempre viajou muito por questões profissionais, “por vezes era enviado por um jornal, noutras era para me documentar para um livro, noutras ainda era por ocasião de uma tradução ou para participar numa palestra, nunca como turista.”
Refere ainda que durante trinta anos encheu cerca de sessenta cadernos e que foi neles que se inspirou para escrever este livro.
“ Há dois anos, comecei a relê-los. Das palavras (…) emergiram recordações que me deram vontade de esboçar com elas uma espécie de retrato, subjetivo e fragmentário, do mundo que é o meu e se confunde, em grande parte com a minha vida. (…) Não está organizado por nenhuma cronologia, por nenhuma data, por nenhuma coerência geográfica, apenas pelo fio fortuito da memória. Quis criar um efeito de cintilação e quase de vertigem, porque é assim o mundo: cintilante e vertiginoso.”
Efectivamente, é o que o livro nos oferece, uma belíssima viagem vertiginosa, cintilante confortável e enriquecedora. Os seus destinos fogem aos roteiros habituais do turismo.
Para além das digressões políticas, religiosas, sociais, ambientais, e literárias (há imensas referências aos seus escritores de eleição), entre outras, o autor relata-nos episódios da sua vida, alguns divertidos outros mais solitários :“Jantares solitários, em lugares onde ninguém estava à minha espera, a minha vida tem muitos.” (p. 60)

Das múltiplas incursões, “devaneios, obsessões, encontros, acasos” (p.75), imagens que representam o seu mundo, destaco uma que exemplifica o tom bem-disposto e irónico com que nos presenteou ao longo da sua “peregrinação”. Trata-se de uma belíssima “galeria de retratos, crónica de ocasiões falhadas”.
“ E isto, esta ideia de que a vida é também feita de tudo o que lhe escapou, do que a sensibilizou como a luz sensibiliza (sensibilizava) o papel fotográfico sem permanecer nele, incita-me a compor as seguintes saudações a algumas beldades com quem me cruzei, com quem apenas me cruzei, mas que contam mais na minha vida do que tantas pessoas cuja conversa me aborreceu (ou que a minha conversa aborreceu), de quem perdi a memória ao passo que me lembro destas, que foram para mim baudelairianas transeuntes que eu teria amado (mas elas não sabiam: (…).“ (p. 206)

Outro aspecto que apreciei é o constante diálogo que o autor mantém com o leitor. Estas interpelações directas criam uma simbiose muito interessante:“Podem não acreditar (azar o vosso), mas este livro está a escrever-se diante dos vossos olhos, à medida que o leem (…)” (p.34) e provocam-nos a ilusão de estarmos também em viagem. “ No meu barco de papel, em bússola, à aventura, divaguei por tempos e lugares (…).Vimos países, pessoas, ouvimos línguas a rumorejar, percorremos milhares e milhares de quilómetros (sem contar com aqueles que andei, dando voltas em frente da minha secretária… ). “ (p. 261).

Recomendo, mas acredito que este tipo de relato possa não ser do agrado de alguns leitores.
Nada como experimentar! Além do mais, podemos sempre viajar confortavelmente instalados num sofá ou deitados no areal de uma praia deste mundo!

24 julho, 2021

𝑷𝒆𝒔𝒔𝒐𝒂𝒔 𝑵𝒐𝒓𝒎𝒂𝒊𝒔, de Sally Rooney

 



Autor: Sally Rooney
Título: Pessoas Normais
N.º de páginas: 248
Editora: Relógio d'Água
Edição: Agosto 2018
Classificação: YA
N.º de Registo: (Emp)

OPINIÃO ⭐⭐⭐


Pessoas Normais narra a história de dois jovens, Marianne e Connel, colegas de liceu e mais tarde da mesma Universidade, em Dublin. A acção situa-se num curto espaço de tempo (4 anos) e foca-se muito, por vezes em demasia, na minha opinião, no relacionamento entre jovens, incidindo sobretudo na relação “anormal” (ou será que é normal?) entre Marianne e Connell.

No início da leitura, tive dúvidas sobre a relevância da história e questionei-me se valeria a pena lê-lo até ao fim. Como gosto de dar uma segunda oportunidade ao livro (ou ao autor), decidi ir até ao fim. Foquei-me sobretudo no não dito, ou dito de forma muito leve e acabei por entender a mensagem patente nos temas abordados, muito recorrentes nos nossos jovens: ser ou não ser aceite num grupo; a angústia do que os outros pensam de nós; os problemas familiares; o bullying; a amizade; o amor; a sexualidade; as relações abusivas; o álcool, a depressão; o suicídio.
Apesar dos temas complicados, a construção da narrativa torna-os mais suaves, menos complexos, na medida em que são abordados naturalmente pelos jovens. Construída essencialmente a partir de diálogos, torna-se assim, mais clara a mensagem que a autora pretendeu passar, isto é, a construção de uma identidade possa ela parecer normal ou anormal aos olhos dos outros e dos próprios leitores. Os protagonistas vão crescendo e aprendendo. Normalmente, vão se transformando e aceitando as relações, a vida.
Posso concluir que o livro apresenta assuntos muitíssimo actuais. As reflexões dos protagonistas, em determinados momentos, perturbam o leitor e a história que parecia banal e entediante, acaba por se tornar importante.


17 julho, 2021

𝑶 𝒎𝒆𝒖 𝒏𝒐𝒎𝒆 é 𝑳𝒖𝒄𝒚 𝑩𝒂𝒓𝒕𝒐𝒏, de Elizabeth Strout

 


Autor: Elizabeth Strout
Título: O meu nome é Lucy Barton
N.º de páginas: 173
Editora: Alfaguara
Edição: Setembro 2016
Classificação: autobiografia
N.º de Registo: (Emp)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


“Toda a vida me fascina” é a última frase deste pequeno e apaixonante livro. Esta frase, só por si, levar-nos-ia a pensar que a protagonista, Lucy Barton, teve uma vida fácil. Não é verdade, bem pelo contrário.
Este livro fascinante transporta-nos para o mundo das relações familiares. É numa cama de hospital, onde permanece várias semanas, que Lucy nos faz o balanço da sua vida. Saltitando entre o passado e o presente, vamos descobrindo a sua vida miserável enquanto criança e adolescente, a falta de amor dos pais, mas sobretudo da mãe, a sua saída de casa, o seu casamento, as suas duas filhas, a sua paixão pela escrita, …
Numa escrita muito sentida e subtil, a narrativa sugere, silencia, não escancara a violência, a solidão, o abandono, a falta de amor e de assunto entre mãe e filha, a conquista da cumplicidade.

Ninguém fica indiferente a esta história que coloca em foco as relações entre mães e filhas. A chegada inesperada da mãe de Lucy ao hospital vai reacender as feridas do passado, mas também vai servir de redenção. “Não tenho qualquer recordação de a minha mãe algum dia me ter beijado. Talvez me tenha beijado, contudo; posso estar enganada.” (p. 120)
A visível falta de amor, de atenção e de carinho entre mãe e filha torna estas duas mulheres melancólicas. Há uma latente urgência em compensar estas falhas, mas falta coragem para o dizer, as escassas conversas convergem para a banalidade, contudo, fica-nos a impressão de um perdão, de uma conquista, de uma aproximação.
“Talvez fosse a escuridão, apenas com a fresta de luz pálida que entrava pela porta e a constelação do magnífico Edifício Chrysler mesmo ao nosso lado aquilo que nos permitia falar de um modo como nunca antes havíamos falado. (…) Senti-me tão feliz. Oh, a felicidade de falar assim com a minha mãe!” (p. 36)

Lucy que viveu uma grande parte da sua vida numa família disfuncional, carente de tudo: de comida, de conforto, de higiene, … vai mais tarde refugiar-se nos livros e na escrita e vai escrever a “história de uma mãe que ama a sua filha. De modo imperfeito. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. (p. 94)

Gostei de conhecer Lucy Barton e o seu “modo imperfeito” de amar a mãe e as suas duas filhas.
Recomendo!


16 julho, 2021

𝑳'𝑨𝒎𝒐𝒖𝒓 𝑨𝒑𝒓è𝒔, Marceline Loridan-Ivens

 

Autor: Marceline Loridan-Ivens
Título: L'Amour Après
N.º de páginas: 149
Editora: Grasset (Livre de Poche)
Edição: 2018
Classificação: autobiografia
N.º de Registo: (3304)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Adorei este livro de Marceline Loridan-Ivens. Escrito em colaboração com Judith Perrignon, nele evoca a sua deportação, aos 15 anos, para campos de concentração (1944) e narra a sua vida como sobrevivente. Foi-lhe muito difícil aceitar que era uma das que tinha ficado para contar a sua história.
Marceline é uma mulher de garra, forte, atenta ao seu tempo, lega-nos um testemunho intenso quer na escrita quer no cinema como realizadora, primeiro ao lado do seu segundo marido, o realizador Joris Ivens, depois em nome pessoal (La petite Prairie aux Bouleaux, 2003).
Neste pequeno livro, a autora com oitenta e nove anos, através de cartas de amor, bilhetes, apontamentos, recordações que vai tirando de uma mala que manteve fechada durante 50 anos, conta-nos a sua vida, apresenta-nos os seus amigos, os seus amantes, fala-nos dos filmes que realizou e produziu, dos livros que leu, … mas o que é verdadeiramente marcante é a forma como nos descreve a sua lenta reconstrução, a difícil aceitação do seu corpo seco, murcho (“je suis asséchée”) e afectado pela violência e pela nudez vividas e presenciadas nos campos, mas também a descoberta do amor e do verdadeiro prazer.
Gosto do seu estilo frontal, sem pudor, livre, irónico. Só uma mulher de espírito aberto que integrou e marcou uma geração, em Paris, ousaria viver como ela o fez. Namorou muitos, muitos mesmo, (e nunca o escondeu), mas não foi feliz até um certo dia. Viveu sem medo, numa interrogação constante, sem se preocupar com a opinião dos outros. Para ela o amor, era não fazer o outro sofrer, era viver o dia-a-dia, aproveitar as ocasiões.
Quando uma amiga, também sobrevivente, lhe telefona e pergunta o que está a fazer? Marceline responde: trabalho sobre o amor (“je travaille sur l’amour”) (p. 144), o amor após [campos de concentração].
É um livro emocionante e perturbador. Que recomendo! Falta-me ler o anterior, Et tu n’es pas revenu, dedicado ao pai que não regressou.


10 julho, 2021

𝑶 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒕𝒐 𝒅𝒆 𝑮𝒊𝒐𝒗𝒂𝒏𝒏𝒊, de James Baldwin



Autor: James Baldwin
Título: O Quarto de Giovanni
N.º de páginas: 190
Editora: Alfaguara
Edição: Abril 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3258)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este é o segundo livro que leio de James Baldwin e confirmo a boa opinião que tive da primeira leitura (Se esta rua falasse). A sua escrita agarra o leitor e as temáticas abordadas quer num quer no outro, deixam marcas e levam-nos a refletir.
O enredo deste livro acontece em Paris, anos 50, e centra-se em David, um jovem nova-iorquino que fugiu do seu país, do domínio paterno e dos seus fantasmas em busca da sua identidade.
Narrado na primeira pessoa, intercalando passado e presente, o jovem David descreve a sua vida boémia, nos bares parisienses frequentados por homens ricos em busca de álcool, de jovens e de sexo, enquanto Hella, a sua namorada, viaja por Espanha. Num desses bares, conhece um jovem com quem vai partilhar o quarto, pequeno e “debaixo de água”.
"Na realidade, não fiquei lá muito tempo (conhecemo-nos na Primavera e eu sai no Verão), mas ainda assim sinto que passei lá uma eternidade. A vida naquele quarto parecia decorrer debaixo de água, como disse, e estou certo de ter atravessado um oceano de mudanças, lá.” (p.99)

Assim, a relação entre David e Giovanni, o sedutor barman italiano, é o ponto fulcral deste livro.
É uma relação intensa e perturbadora que vai pôr em evidência os preconceitos, o medo de assumir a sua sexualidade e por consequência a mentira, a vergonha e a negação do amor.



04 julho, 2021

𝑬𝒎𝒃𝒂𝒍𝒂𝒏𝒅𝒐 𝒂 𝒎𝒊𝒏𝒉𝒂 𝑩𝒊𝒃𝒍𝒊𝒐𝒕𝒆𝒄𝒂 – 𝑼𝒎𝒂 𝑬𝒍𝒆𝒈𝒊𝒂 𝒆 𝒅𝒆𝒛 𝑫𝒊𝒗𝒂𝒈𝒂çõ𝒆𝒔, de Alberto Manguel

 



Autor: Alberto Manguel
Título: Embalando a minha Biblioteca
N.º de páginas: 143
Editora: Tinta da China
Edição: Fevereiro 2018
Classificação:Não ficção
N.º de Registo: (3258)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

É o terceiro livro que leio do autor sobre livros. Gosto de ler livros escritos por quem também gosta de livros e Alberto Manguel é um grande leitor e um apaixonado por livros. Na sua biblioteca organizada “segundo os seus próprios critérios e valores”, continha cerca de trinta e cinco mil livros. Foi, no entanto, obrigado a desfazê-la e a embalar todos os seus livros. Foi uma tarefa árdua que só concretizou com a ajuda de amigos e difícil, já que o autor considera que embalar uma biblioteca “é sepultá-la ordenadamente antes do julgamento aparentemente final.” (p. 36) e olhar para o espaço vazio é sentir “o peso da ausência num grau quase insuportável.” (p.37)
Ao embalar a sua biblioteca, o autor vai reflectindo e divagando sobre variadíssimos temas sempre ligados às suas leituras, aos livros, às bibliotecas, aos seus autores de eleição como Borges, Cervantes, Carroll, Dante, Kafka, Shakespeare, …. “Se os livros são os nossos registos da experiência e as bibliotecas os nossos repositórios de memória, um dicionário é o nosso talismã contra o esquecimento:” (p. 111)


Para ele, as suas bibliotecas “são, todas elas, uma espécie de autobiografia com várias camadas (…) a minha memória interessa-se mais pelos livros do que por mim” (p. 20)
A biblioteca privada de Manguel é um espaço de divagação, é a sua vida “sei que a minha verdadeira história, toda ela, está lá, algures nas prateleiras, e tudo o que preciso é de tempo e de sorte para a encontrar. Nunca acontece. A minha história continua a escapar-me, porque nunca é uma história definitiva.
Em parte, é assim porque sou incapaz de pensar em linha recta. Divago.” (p.16)

Como o subtítulo indica, o livro apresenta uma elegia e dez divagações. Cada uma destas divagações termina com um texto em itálico, mais pessoal, onde o autor nos expõe algumas das suas vivências e experiências e, sobretudo, o processo de esvaziamento e empacotamento da sua biblioteca. A última divagação é sobre as bibliotecas nacionais, tema que me é muito caro, já que retiro ensinamentos que posso aplicar numa biblioteca escolar, local onde diariamente dialogo e divago com os livros. De entre muitas ideias retiradas, partilho esta com a qual concordo profundamente: “O único método que leva comprovadamente ao nascimento de um leitor, não foi, tanto quanto sei, ainda descoberto. A experiência diz-me que o que resulta, ocasionalmente, embora nem sempre, é o exemplo de um leitor apaixonado. Por vezes, a experiência de um amigo, um pai, um professor, um bibliotecário claramente comovido pela leitura de uma certa página, pode inspirar, se não imitação imediata, pelo menos curiosidade. Parece-me um bom ponto de partida.” (pp. 136, 137)

Este livro é o testemunho fantástico e sincero do homem que teve de “sepultar” a sua biblioteca, e que reconhece o seu comportamento obsessivo perante os livros.
É um autêntico manifesto de amor aos livros, às bibliotecas e à literatura. Recomendo a todos os apaixonados pelos livros, pela leitura.


02 julho, 2021

𝑪𝒐𝒏𝒕𝒓𝒂 𝑴𝒊𝒎, de Valter Hugo Mãe

 



Autor: Valter Hugo Mãe
Título: Contra mim
N.º de páginas: 281
Editora: Porto Editora
Edição: Outubro 2020
Classificação: Biografia
N.º de Registo: (3252)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Contra mim
é um livro muito pessoal e intimista. Partindo de textos e apontamentos dispersos guardados durante anos e revisitando as suas memórias, o autor foca-se essencialmente na sua infância e parte da adolescência vividas em Angola, onde nasceu, e depois em Paços de Ferreira e Caxinas.

“Regressado com dois anos e meio de idade, eu esquecera quanto vira em Angola. Esquecera as pessoas, a cor das pessoas, esquecera as casas, os campos, o calor, os odores.
Durante um longo tempo, entusiasmado com ser criança, a minha consciência parecia fazer com que Paços de Ferreira fosse um lugar absoluto, um mundo absoluto, extenso e suficiente, incrível e até demasiado.” (p. 36)

De forma simples, directa, sincera e fascinante, o autor comove o leitor: primeiro, porque o remete para a sua própria infância/adolescência; segundo, porque vive as alegrias, as vitórias, as tristezas e as desilusões do protagonista e terceiro, porque acompanha o seu sonho, a sua criatividade, o seu interesse pelas palavras, pela poesia. Desde muito pequeno que juntava palavras num caderno para lhes dar o seu sentido e através delas crescer e criar o seu mundo.

“Sem saber ainda escrever, eu listava as minhas palavras no pensamento e pedia à minha mãe que me repetisse as que esquecia, não entendia ou queria ouvir como se as pudesse colher de novo, frutos da bela árvore que era a minha mãe. Frutos ou brinquedos. Meus melhores, fiéis e incorruptíveis brinquedos.” (p. 48)
e
“As palavras eram joias. Ouvir as minhas tias à conversa era apanhar dinheiro que lhes caía boca fora.” (p.49)

Valter, a criança imaginativa, o “miúdo carente, espantado, pacóvia e medricas” (p.83) relembra e partilha com o leitor a sua rotina em casa com a família, na escola, e com os (poucos) amigos; as suas descobertas de criança; a descoberta do seu corpo e da” rotunda pequenina entre as pernas das meninas”; os seus primeiros e tristes amores; o seu relacionamento com o “irmão horizontal” que morreu prematuramente; a sua crença particular em Deus.

“Eu acreditava em Deus porque estava grato e necessitava ter alguma figura a quem corresponder nesse sentimento arrebatado que vinha da oportunidade de existir. Que, por muitos anos, na minha timidez, se resumia a assistir. Talvez não existisse. Talvez apenas assistisse. Era, contudo, o bastante para uma gratidão sem reservas.” (p. 78)

É um livro lindo, com descrições ternurentas, aparentemente inocentes, com ideias claras, desconstruídas e muito interessantes.