30 novembro, 2020

Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, de José Saramago

 


OPINIÃO


Saramago escreveu este texto a pedido do compositor Azio Corghi para ser adaptado à ópera. À medida que o autor ia escrevendo a peça teatral o compositor ia construindo o libreto. (O posfácio “Génese de um libreto”, esclarece como o projecto foi sendo construindo: troca de correspondência (email) com as diversas ideias e sugestões dos dois criadores.) 
Neste texto, Saramago altera o mito de Don Juan (já muito abordado por vários autores), isto é, em vez de o condenar aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, decide absolvê-lo e mostrar que ele é que foi seduzido. Estamos, evidentemente, perante uma paródia, tal como o original espanhol.
Ao longo das cinco cenas de um único acto, desfilam as personagens que vão mostrar o propósito do autor. Quem é o Don Giovanni de Saramago, um sedutor, ou um seduzido? Temos, então o próprio dissoluto Don Giovanni e o seu criado Leporello, a estátua do comendador, as mulheres que o tentam seduzir: a nobre Dona Ana, a burguesa Dona Elvira e a camponesa Zerlina e ainda os traídos Don Octávio e Masetto. Em poucas páginas, e à boa maneira saramaguiana, se satirizam os valores e comportamentos de uma sociedade hipócrita.

29 novembro, 2020

𝑼𝒎 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐 𝒂 𝑭𝒊𝒏𝒈𝒊𝒓, de João Pinto Coelho

 


OPINIÃO

Eram elevadas as expectativas em relação a este livro. Tão elevadas que o coloquei imediatamente na pilha dos prioritários. João Pinto Coelho já nos habituou a uma escrita cuidada, minuciosa e a um enorme talento na construção da narrativa, assente numa pesquisa rigorosa. 

A acção narrada a duas vozes decorre em Itália, sob o domínio de Mussolini, em Pitigliano, uma localidade da Toscana, com características próprias e bem ilustradas ao longo da narrativa. A primeira voz, a da protagonista, Annina Bemporad, relata a sua vida de maio de 1937 a outubro de 1943; a segunda, a de Ulisse, irmão de Annina, situa-se em 1952 e surge apenas para confirmar, negar ou esclarecer algum aspecto narrado pela sua sorellina

Trata-se de uma história cheia de emoções com muitas reviravoltas. Há personagens fascinantes e actos perturbadores que deixarão marcas na memória dos leitores. Annina, a rebelde, mas também a sonhadora, vai proporcionar-nos momentos de paixão, de ódio, de sofrimento e de vingança. 

João Pinto Coelho sabe construir histórias, sabe surpreender pelas peripécias e reviravoltas que vai impondo à narrativa, sabe ludibriar, com subtileza, até ao final planeado e o leitor seduzido pela escrita poética, pela beleza das descrições e pela trama emotiva da história, deixa-se conduzir completamente embrenhado, não distinguindo a realidade da ficção, do fingimento. Em Um Tempo a Fingir tudo é inesperado e verosímil. Tudo é fabuloso.


25 novembro, 2020

Salsugem, de Al Berto

 


OPINIÃO


Já perdi a conta ao número de leituras que já fiz deste livro. Leio sempre com um enorme prazer e confesso que a leitura nunca é idêntica. Desta vez, li para participar numa tertúlia literária. 

Salsugem é, para mim, um dos melhores livros do poeta, considero que há nele um aprofundamento na escrita no sentido em que representa o universo da sua temática: o mar, o deserto, a errância, o crepúsculo, a noite, a memória, a infância, a morte, o corpo, a escrita. 
“a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
(…)
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo”

Trata-se de uma escrita que problematiza questões actuais (“hoje é dia de coisas simples”), que evidencia o desespero, o desassossego da passagem do tempo, da precariedade da vida, a angústia das incertezas, a solidão, o desajustamento com o seu tempo, a melancolia. 

Na escrita de Al Berto “ deambula a melancolia lunar do corpo” 

se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição


21 novembro, 2020

𝘜𝘮 𝘏𝘰𝘮𝘦𝘮: 𝘒𝘭𝘢𝘶𝘴 𝘒𝘭𝘶𝘮𝘱, de Gonçalo M. Tavares

 


OPINIÃO


Um Homem: Klaus Klump é o primeiro livro da série O Reino. A guerra é o tema deste livro. O espaço e o tempo não estão referenciados pelo que esta guerra pode muito bem acontecer num qualquer lugar do mundo. 
“Uma sirene toca. Uma sirene militar não é um instrumento pacífico que faça dançar as mulheres. Aquela sirene fazia chorar as mulheres.” (p.37)
A escrita simples, objectiva e fragmentada evidencia a crueldade do opressor, a submissão e o aniquilamento de uma cultura e de um povo oprimido.
O autor emprega frases curtas, descreve subtilmente algumas cenas, propaga silêncios, acciona memórias, provoca emoções, levanta questões. Tudo isto em pouquíssimas páginas. As personagens vão desfilando ao longo da narrativa e o leitor vai tomando conhecimento dos actos cruéis cometidos por um poder invasor e violento. 
“Na paisagem as máquinas substituíram os animais. As máquinas não deixam fezes nos passeios, Antigamente as mulheres enojavam-se com os excrementos que os cães deixavam nos passeios. Diziam que os donos não tinham educação. Hoje as mulheres enojam-se quando cinco soldados entram em casa e pegam nelas e as violam, um soldado e depois outro.” (p.42)

O leitor entra na guerra, convive com as personagens, assiste à violência, à desumanização, à revolta, à incompreensão e finalmente à resistência e à reconstrução.

É um livro marcante que explora os sentimentos e que levanta questões pertinentes sobre a condição humana.
“A brutalidade é de uma delicadeza exuberante face às pessoas ricas; nada de novo.” (p. 57)



18 novembro, 2020

As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll

 


OPINIÃO

Numa formação sobre leituras, fui positivamente surpreendida pela abordagem do formador a esta obra. Decidi, por isso, relê-la já com um outro olhar. Conhecendo a história desde há muito, esta releitura revelou-se um verdadeiro prazer literário. Desfrutei das múltiplas metáforas presentes, das mensagens contidas nas entrelinhas, ("- Se todos cuidassem de suas vidas - vociferou a Duquesa, - o mundo giraria muito mais rápido."), da viagem fantástica ao mundo dos sonhos, do nonsense das conversas de Alice com as outras personagens, do caos das acções, dos disparates do rei no julgamento e da crueldade da rainha com a sua réplica “cortem-lhe a cabeça”. 

"- Poderia me dizer, por favor, que caminho eu devo seguir? 
- Depende muito aonde quer chegar - respondeu o Gato. 
- Não me importa muito para onde irei... - disse Alice. 
- Então, não importa em que direção vá... - atalhou o Gato." 

O autor, nesta obra composta de texto e imagem mistura a fantasia e o burlesco, a história é narrada na forma de um sonho o que justifica a aparente falta de coerência e unidade próprias de uma narrativa. 
É um belíssimo clássico, que inicialmente escrito para entreter acaba por conter uma mensagem de contentamento e de felicidade. Como referiu a Duquesa, na página 102, em conversa com Alice “- Ora, ora, pequena! Tudo tem uma moral, basta encontrá-la. (…) “Oh , é o amor, é o amor, que faz girar o mundo!” 

Mais tarde, darei continuidade às aventuras com Alice do Outro lado do Espelho.



Saramago esculpido por Vhils

 

Vhils (Alexandre Farto) esculpiu rosto de José Saramago num pontão, junto ao mar, na Lourinhã, no dia em que o escritor faria 98 anos.

A servir de legenda, está uma citação do romance de Saramago, A Jangada de Pedra:

Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que para mais não lhes chegam as forças, bem melhor seria vivermos em terra de tufões.




15 novembro, 2020

O Fio da Navalha, de Somerset Maugham

 


OPINIÃO


Primeiro livro que leio deste autor. Gostei bastante e fica o compromisso (não é, Rute Martins) de ler outros. A escrita é clara e simples e a história é narrada na primeira pessoa. Aliás, Maugham integra a narrativa, conhece as personagens, convive com elas, ouve-as e mais tarde escreve este romance reavivando as suas “lembranças”. Na primeira página, ao dirigir-se ao leitor, revela “quero apenas escrever sobre aquilo de que tenho conhecimento”. Estamos então perante um romance baseado em factos reais.

Trata-se de uma narrativa longa que caracteriza as personagens com densidade psicológica e aborda temas como a importância, ou não, de viver segundo as convenções impostas pela sociedade; a caracterização detalhada das personagens que me faz preferir umas em detrimento de outras (são personagens fortes, com carácter); a descrição dos encontros, dos eventos, das casas, do vestuário, etc. que tão bem representam as mentalidades francesa, inglesa e americana, da época.

Mas aprecio sobretudo as reflexões que vão surgindo, ao longo do texto, em relação às opções (de vida) de cada um dos intervenientes. Elliot, amigo de Maugham, representa uma personagem snobe e fútil que pretende impor-se na alta sociedade, mas no fundo, é bem mais do que isso, já que apesar das suas convicções mundanas e do seu estilo de vida, revela-se um homem bom e generoso e amigo da família. Isabel, sobrinha de Elliott, educada numa sociedade fútil em que o estatuto social tem um peso enorme, receia o desconhecido, a instabilidade económica e opta pela segurança e bem-estar ao casar com Gray, em detrimento do amor. Larry, é uma personagem fantástica, livre e independente, abandona o conforto e a riqueza “não levo mais nada além da roupa que trago vestida e meia dúzia de coisas numa mala” (p. 312), e parte à aventura, pelo mundo, em busca de conhecimento. 

Maugham descreve Larry desta forma: “Ele sorriu. Já devo ter comentado pelo menos vinte vezes a beleza do seu sorriso, tão acolhedor, sincero e encantador. Reflectia toda a candura e sinceridade da sua personalidade cativante; mas tenho de o fazer mais uma vez, pois agora, além de tudo isso, havia também nele algo de terno e melancólico.” (p. 312) 

Para concluir, e em resposta à dúvida colocada, inicialmente, pelo autor “se lhe chamo romance é só por não saber o que mais lhe chamar”, estamos perante um belo romance autobiográfico que nos faz reflectir sobre a vida, sobre opções de vida, mas também sobre o amor, o ciúme; sobre a sociedade, a futilidade; sobre o conhecimento e religião; sobre a busca da felicidade, da liberdade, do equilíbrio, da descoberta do "eu". 

"- (...) a verdadeira sabedoria consiste em alcançar um equilíbrio entre as exigências do corpo e as exigências do espírito. - (...) procuramos a felicidade nas coisas materiais, mas que a felicidade não se encontra aí, mas sim nas coisas espirituais. (pp. 295 e 296)


04 novembro, 2020

A Mulher Canhota, de Peter Handke

 


OPINIÃO


Este livro, também adaptado ao cinema por Wim Wenders (1978), retrata o desejo de uma mulher, Marianne, de se libertar da companhia do marido. A narrativa começa com um jantar a dois, seguido de uma noite íntima. Aparentemente, o casal vivia momentos de cumplicidade e de felicidade. Porém, essa felicidade é de curta duração porque ao acordar, a mulher tem “uma revelação” e diz ao marido: “Vai-te embora, Bruno. Deixa-me.” (p.19)

Assim, de forma abrupta, Marianne toma uma decisão, rompe a relação e passa a viver sozinha com o filho. E Handke centra-se na sua história. Recorre a frases curtas para nos descrever os seus actos quotidianos, as brincadeiras com o filho, os seus pensamentos, os seus encontros com o marido, o seu trabalho e relacionamento com uma amiga e outras personagens que desfilam nesta fase da sua vida (não são muitas). Algumas destas descrições poderiam ser dispensáveis porque são meras banalidades como, por exemplo, uma ida ao supermercado. Contudo, é no modo como o autor narra estes pequenos detalhes, estas banalidades que melhor entendemos a solidão e o desamparo da protagonista, bem como a sua forma de pensar e de sentir. 

Handke é exímio em retratar as relações humanas.



02 novembro, 2020

O Grande Rebanho, de Jean Giono


 

OPINIÃO


Pouco tenho lido sobre a Primeira Guerra Mundial, pelo que decidi ler o testemunho ficcionado de Jean Giono. Estamos perante uma visão muito humanista do autor, para além da descrição do sofrimento dos homens que partiram, ele aborda também o sofrimento e a angústia dos que ficaram, mulheres, crianças e homens mais velhos. 

O romance inicia com a passagem pela aldeia de um grande rebanho. Ao longo da transumância, há animais que ficam pelo caminho, feridos, moribundos, mortos. Imagem terrível, sangrenta, dolorosa dos “ animais [que] baliam em conjunto, um balir plangente, de dor.”(p.21)
"Os animais estavam exaustos, alguns agora doentes. Era um rebanho que nunca mais acabava. Os animais metiam pena, a arrastar-se na estrada. Não suportavam mais sofrimento." (p. 22) 
“Está tudo cheio de carneiros mortos pela estrada fora.” (p.26) 

Logo de início, percebemos que este rebanho é uma metáfora da guerra, aprendemo-lo pela voz de Clérestin, um habitante da aldeia, “E Clérestin pôs-se a olhar também para longe, para lá dos animais que passavam, como se visse presságios, terríveis profecias do que estava ainda para acontecer, profecias escritas com sangue e sofrimento que aquele rebanho anunciava, ali, diante deles, ao longo da estrada coberta de poeira.” (p.23) 

A mensagem é clara! Na guerra, tal como os animais, os homens exaustos, feridos, inúteis ficam para trás, abandonados! Sofrem, agonizam, morrem! Ninguém olha para trás e quem o fizer vai ficar com marcas, com traumas! 

Jean Giono descreve os horrores vividos nas trincheiras de forma crua e chocante em oposição à simplicidade, à beleza e aos sons da natureza. Através desta dicotomia, sempre presente ao longo da obra, o autor pretende mostrar o absurdo da guerra e realçar a vida, a esperança. É precisamente com esta mensagem que termina a obra. Uma criança nasce, filha de Olivier, um sobrevivente, e de Madeleine. 

"E antes de mais, digo-te: eis a noite, eis as árvores, eis os animais. Mais tarde verás a luz do dia. (...) terás oportunidade de amar (…), como alguém que cultiva a terra com a charrua (...). E amarás as estrelas.
(…) – Deixa, mulher, deixa. É preciso que lhe mostremos desde já o que é a esperança!” (p.220)