29 abril, 2024

𝑵𝒐𝒕í𝒄𝒊𝒂 𝑷𝒂𝒓𝒂 𝑼𝒎𝒂 𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂 𝒅𝒆 𝑨𝒍 𝑩𝒆𝒓𝒕𝒐, de Joaquim Cardoso Dias

 

Autor: Joaquim Cardoso Dias
Título: Notícia Para Uma Carta de Al Berto
N.º de páginas: 49
Editora: On y va
Edição: Março 2024
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (-)




OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Notícia Para Uma Carta de Al Berto, de Joaquim Cardoso Dias é um intenso lamento, um grito pungente de raiva, de solidão, de saudade do amigo.

É ainda a confidência de um poeta exigente “cada dia que passa escrevo menos”, desiludido, que acha que não vale a pena escrever, que não se revê na imagem reflectida no espelho, na hipocrisia dos que usam máscaras, que duvida do presente, que recusa a “excentricidade do mundo” exemplificada na guerra que divide e mata, que não gosta das pessoas “que comem bolos todos os dias”.

A interpelação constante do “eu” ao “tu” transporta o leitor para o interior do poema. O leitor apropria-se das palavras, das memórias, dos desejos, dos momentos e gestos vividos em comum, das notícias, das “coisas de viver”. O leitor vive e sente de igual forma; partilha as emoções, o amor, a amizade, a desolação dos dias; entende a melancolia e o desassossego que invadem o “eu” e que procura resolver-se, ou não, “escrevendo”.

É este o meu entendimento deste belíssimo livro. Ou pelo menos, é o que consigo transmitir. Não me é fácil expressar-me sobre as palavras de outros, sobretudo poéticas. Mas a partir do momento em que o livro se torna público, cabe ao leitor efectuar a sua leitura e inferir o seu próprio sentido ou sentidos. Foi o que fiz. Agora o poema também vive em mim. É o poder da literatura, da poesia.


26 abril, 2024

𝑪𝒂𝒅𝒆𝒓𝒏𝒐 𝒅𝒆 𝑴𝒆𝒎ó𝒓𝒊𝒂𝒔 𝑪𝒐𝒍𝒐𝒏𝒊𝒂𝒊𝒔, de Isabela Figueiredo

 


Autora: Isabela Figueiredo
Título: Caderno de memórias Coloniais
N.º de páginas: 219
Editora: Caminho
Edição (10.ª): Outubro 2021
Classificação: Memórias
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Caderno de Memórias Coloniais é um livro autobiográfico e centra-se em duas personagens, a narradora e o pai da narradora.
Sem rodeios, numa linguagem clara, crua e directa, a narradora relata em capítulos breves as memórias da sua infância vivida em Moçambique, até aos 13 anos, e as suas primeiras vivências, como retornada, em Portugal.
As memórias revelam-se em pequenos instantâneos da realidade colonial. A narradora ao centrar no pai, electricista, as críticas em relação à forma como agia sobre o povo africano pretende atingir todo o sistema porque afinal os brancos agiam todos de igual forma. O mesmo se passa em relação à mãe, também ela “uma vítima do sistema, tal como a maioria das mulheres, brancas ou negras.” 
(p. 21 – Prefácio de Chiziane)

É um livro marcante que trata o tema do colonialismo na primeira pessoa, as relações de género entre dois povos. A autora narra a sua própria vida de “filha de um colono racista”, narra a ocupação abusiva de um povo; o desrespeito pelo outro de cor diferente; o abuso e violação das nativas “os brancos iam às pretas”.
“O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos (…) esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, o branco mandava no preto.“ (p. 49)

Narra, também, o seu amor, a sua admiração pelo pai até ao momento em que aprendeu a ler e se apossou dessa “ferramenta “ como forma de alcançar a sua liberdade.
“Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê e escuta (…) Foi quando comecei a tornar-me toupeira. (…) na toupeira que lhes havia de roer todas as raízes, devagar, uma de cada vez, até restar pó.
O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre.” (pp. 101 e 102)

Narra a sua vida de criança que gostava de conversar e de brincar com os mainatos “Os mainatos tratavam-me bem, carregavam-me às cavalitas. Brincavam. Riam. Faziam rir. A minha mãe tinha medo que os mainatos me fizessem mal ou me roubassem. A minha mãe desconfiava de mim, adivinhando a minha alma de preta.” (p. 113).
Narra o tempo de antes e após a independência em que “morrer sempre foi fácil”, de avanços e recuos, de incertezas, de esperança invisível, de guerra, de abandono. “O tempo dos brancos tinha acabado.”

Finalmente, narra a sua vida na Metrópole para onde foi enviada, em novembro de 1975, “num dia frio de inverno” com a incumbência de relatar o que os pretos faziam aos brancos.
“tu vais contar”; “diz-lhes … que é mentira”; “diz à tua avó”; “Era a portadora da mensagem, levava comigo a verdade. A deles. A minha, também, mas eles não imaginariam que eu pudesse ter uma verdade só minha, sem a sombra das suas mãos. (p. 152)

Em suma, este caderno revela, em primeira instância, de forma crua a brutalidade e a perversidade de uma sociedade preconceituosa e racista, ao apresentar a extrema violência presente nas relações entre colonizadores e colonizados, entre brancos e negros. Em segunda instância, a relação entre filha (narradora) e pai. Uma relação ambígua, de aproximação e repulsa, de carinho e raiva, de aconchego e medo.

Há todo um legado colonial marcado pela “verdade testemunhal” da narradora, contudo a falibilidade da memória desde logo inscrita na segunda epígrafe “A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível. […]”, de Primo Levi, releva a importância da ficção. Fica, desta forma, salvaguardada a possível subjectividade às diversas construcções da realidade.

Recomendo seguramente a leitura deste caderno. Escrito de forma provocatória focaliza o olhar da narradora sobretudo na sua relação com os outros. Além do mais, esta edição contém dois prefácios valiosíssimos de Paulina Chiziane e José Gil.


25 abril, 2024

𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: A Noite
N.º de páginas: 124
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Junho 2006
Classificação: Teatro
N.º de Registo: (2642)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



50 anos depois do “dia inicial inteiro e limpo”, li A Noite, de Saramago. Uma peça de teatro que se foca precisamente na noite que antecede à madrugada tão esperada por muitos. Na redacção de um jornal em Lisboa, onde decorre a ação, alguns jornalistas e tipógrafos emergiram do silêncio e puderam enfim manifestar-se e noticiar a verdade tão desejada. Outros, os do poder decisório, os que impunham notícias e artigos de conveniência, os que manipulavam a informação, e os lambe-botas que pretendiam aceder ao poder ficaram desconcertados, incrédulos, acreditando que seria um “outro 16 de Março”, duvidaram do boato que então surgiu de que a revolução já estava na rua.

Num texto organizado em dois actos, Saramago recorre a dezoito personagens envolvidas na produção do jornal que deverá sair na manhã seguinte, para desvendar a censura, o medo, a manipulação, mas também a esperança e o sonho de um novo dia.
Numa escrita clara e concisa com diálogos muito bem estruturados, pela voz de Manuel Torres, redactor de província, que luta pela verdade informativa em confronto com Valadares, chef da redacção, submisso ao poder, à ditadura, o autor traz à reflexão o impacto que a informação tem na sociedade. Os princípios de “objectividade, de ideal, de isenção, de respeito pelo público” tão defendidos hipocritamente por Valadares, estão quebrados quando os jornalistas se limitam ”a assinar um jornal que já vem feito dos coronéis da censura.” (p. 67)

Saramago é implacável, como sempre, e recorrendo à ironia, a sua arma poderosa, na minha opinião, desmonta os vários interesses que existem naquela redacção. No final do primeiro acto, Torres numa acesa discussão com o seu chefe tem uma tirada reveladora sobre a ética e a verdade no jornalismo.

“(…) Não torne a cantar-me as loas da objectividade, e da neutralidade, que é outra palavra que você usa muito. Digo-lhe eu que não há objectividade. Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são seleccionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E as notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? (…) Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos Para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. (…)” (pp. 60 e 61)

Hoje, passados 45 anos sobre a escrita deste texto (1979), receio que pouco se tenha alterado. O texto de Saramago continua actualíssimo, apenas mudaram os contextos. Continuamos mergulhados no caos da (des)informação porque o poder é quem mais ordena. Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades.

Recomendo muito a leitura deste livro de apenas 124 páginas, mas que diz tanto!



23 abril, 2024

𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒅𝒐 25 𝒅𝒆 𝑨𝒃𝒓𝒊𝒍, de João Pedro Mésseder e Alex Gozblau (ilustrador)

 


Autor: João Pedro Mésseder
Título: Romance do 25 de Abril
Ilustrador: Alex Gozblau
N.º de páginas: 29
Editora: Caminho
Edição (6.ª): Fevereiro 2024
Classificação: Infantil/juvenil
N.º de Registo: (BE)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


João Pedro Mésseder escreveu Romance do 25 de Abril em prosa rimada e versificada e Alex Gozblau fez os desenhos.

É uma história muito bonita. É a nossa história, do antes e do depois da ditadura. A história de um menino chamado Portugal, baixinho e magrinho “que vivia à beira-mar”. O menino que “trabalhava de sol a sol”, que não frequentava a escola, que não tinha tempo para brincar e que andava sempre “co’a barriga a dar horas”.
Apesar das dificuldades, o menino era curioso, olhava à sua volta, questionava-se e sonhava com uma pátria diferente.

O menino cresceu e foi operário e soldado na guerra colonial. Lutou para realizar o sonho de um dia ver realizado os versos de um poeta atormentado “Não hei de morrer sem saber / qual a cor da liberdade”. O menino “que fora camponês e operário e em soldado se tornara” foi preso, ameaçado e torturado. Mas um dia viu o seu sonho realizar-se. O sonho que hoje celebramos e que vivemos há cinquenta anos.
Os desenhos sombrios, na primeira parte do livro, enriquecem muito o texto, pois acrescentam-lhe densidade psicológica. As figuras são bem representativas e expressivas (algumas bem conhecidas). A conjugação do desenho com a colagem produz um efeito interessante, já que permite discernir a ficção do documento histórico e, finalmente, a alteração cromática que marca o início da Liberdade transmite uma ideia de alegria, de agitação, de vitória, de “cravos mil”.
É um livro que recomendo para que se mantenha viva a memória da Liberdade estampada nos versos de Ary dos Santos "Agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!!". Contudo para ser entendido pelas crianças deve ser lido e explorado por um adulto.



21 abril, 2024

Vou com o tempo

           Claude Monet | Impression, Soleil levant (Impressão, nascer do sol) | 1872


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
No dia-a-dia presente
As palavras fluem no caderno branco
Os sorrisos vivem esbranquiçados 
As flores perfumam os caminhos
Pequenos gestos serenam meu peito
A magia da confiança germina lentamente.

Mudam-se os tempos, mudam-se as afinidades
Na distância instalada
A tinta escasseia na página branca
Os dias acompanham os contornos da lua 
Os silêncios atormentam  o cansaço
O mar salpica memórias 
A saudade esbate-se implacavelmente. 

Nos tempos mudados
Permanece a ausência
Os dias longos, tristes
de escuridão
Procuro pequenos gestos 
de cumplicidade
Moro na página branca
da incompreensão

A melancolia habita-me.

GR


20 abril, 2024

Cantar a LIBERDADE - 50 anos 25 Abril

 

                        Music Publisher: Copyright Control Composer: José Afonso 



Traz Outro Amigo Também
Zeca Afonso


Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também


17 abril, 2024

Passeio literário a Mafra

É sempre com enorme prazer que revisito Mafra.

Trata-se de um passeio cultural muito enriquecedor e com novas estórias. Acompanhados de um guia,  visitámos a Basília, sempre deslumbrante; o palácio com as mesmas salas mas estórias diferentes e a maravilhosa e riquíssima biblioteca. Almoçámos rapidamente e assistimos à peça de teatro Memorial do Convento, pela companhia Éter. 

Enquanto esperámos pelo segundo grupo, degustámos tranquilamente uns fradinhos numa esplanada e ainda tivemos tempo para conhecer o centro da localidade e descobrimos uma boutique vintage, Terra Viva. 





13 abril, 2024

Dia do Beijo - Horas Rubras

                                                        
                                                 Man Ray | o Beijo | 1922




Horas Rubras 

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve e branca e mist'riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade


07 abril, 2024

Morre lentamente


desconheço autor (internet)


Morre lentamente


Morre lentamente
quem não viaja, quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos,
quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o preto no branco
e os pingos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.

Morre lentamente,
quem abandona um projeto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um feito muito maior que o simples fato de respirar. 
Somente a ardente paciência fará com que conquistemos uma esplêndida felicidade.


Martha Medeiros, A Morte Devagar


06 abril, 2024

𝑳𝒆𝒏ç𝒐𝒔 𝒑𝒓𝒆𝒕𝒐𝒔, 𝒄𝒉𝒂𝒑é𝒖𝒔 𝒅𝒆 𝒑𝒂𝒍𝒉𝒂 𝒆 𝒃𝒓𝒊𝒏𝒄𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝒐𝒖𝒓𝒐, de Susana Moreira Marques

 


Autora: Susana Moreira Marques
Título: Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro
N.º de páginas: 125
Editora: Companhia das Letras
Edição: Abril 2023
Classificação: Não ficção
N.º de Registo: (3536)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Descobri este livro na Bucholz no mesmo dia em que visitei a exposição “Mulheres do meu País”, de Maria Lamas patente na Fundação Calouste Gulbenkian. Já tinha visto a capa partilhada nas redes sociais, mas desconhecia o conteúdo. Entusiasmada pela sinopse, comprei-o de imediato, mas não o li logo porque outras leituras se interpuseram por questões profissionais. Assim, que surgiu a oportunidade peguei nele e saboreei-o. Sublinhei-o. Lentamente, desfrutei da viagem, isto é, das viagens que a autora e Maria Lamas me ofereceram. Com elas, mas sem saber exactamente com qual, percorri o meu/nosso país. É maravilhosa a forma como a autora mescla as duas viagens, as duas visões, as descobertas de ambas.

Este livro nasceu porque Susana Moreira Marques (SMM) foi convidada por Marta Pessoa para, a partir do livro de Maria Lamas, realizarem a mesma viagem pelo país em busca das mulheres e captarem imagens das quais resultaria o filme Um nome para o que sou.
Apesar do que já referi, este livro não é um relato de viagens. Tampouco se poderá afirmar que é exclusivamente sobre mulheres, mulheres retratadas e entrevistadas. Diria que se trata especialmente de narrações que resultam de reflexões, de apontamentos do que vive, de registos do que vê e das conversas que mantém, dos silêncios que capta, e sobretudo de busca interior, da tentativa de entender a sua avó através das mulheres que encontra e da explicação do passado à sua filha para uma melhor compreensão do presente e talvez do futuro.
“Narradora. Esse é um nome para o que sou.
Uma mulher que narra o que vê, o que ouve, o que pensa, também o que sente. (…) que não é imparcial. Que fica investida em personagens que passaram pelas mesmas experiências.” (p. 45)

É um livro sobre a memória de mulheres anónimas, trabalhadoras, sobre a memória da própria autora que revisita o seu passado quer através das imagens dos livros de Maria Lamas, quer através das mulheres que vai encontrando. “Como quase não tenho fotografias de família desse tempo, preencho as lacunas com as imagens que encontro.” (p. 39)

A viagem que SMM efectua vai permitir-lhe resgatar as suas raízes: “Talvez todas as viagens – no país ou fora do país – sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.” (p. 25); vai, também, permitir manter viva as histórias de vida das mulheres, das agruras vividas, das palavras caladas, dos maus-tratos, da miséria, do analfabetismo, da ignorância. É importante relatar os factos “uma e outra vez para que não voltem a acontecer” (p. 60) E este é o principal legado, na minha opinião, que Susana Moreira Marques partilha com a sua filha e com os leitores do seu livro. É um livro que cruza passado, presente e futuro, que nos questiona sobre a nossa identidade, individual e colectiva, de todo um país.



𝑭𝒊𝒍𝒉𝒐 𝒅𝒂 𝑷𝒊𝒅𝒆, de Paulo Jorge Pereira

 



Autor: Paulo Jorge Pereira
Título: Filho da Pide
N.º de páginas: 239
Editora: Oro - Caleidoscópio
Edição: Setembro 2023
Classificação: Romance
N.º de Registo: (-)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Filho da Pide é um romance baseado em factos reais que expõe actuações cruéis  de agentes da polícia política (PIDE) sobre pessoas inocentes. São momentos duríssimos, violentos, mortíferos, até. Ao ler determinados episódios, não conseguimos evitar de nos questionar como é possível que existam - no presente, sim - seres humanos tão cruéis para com os seus iguais?
Apesar de termos conhecimento destes comportamentos aplicados aos detidos, quando lemos demoradamente, palavra após palavra, as acções praticadas com ódio e satisfação (é um paradoxo, mas é mesmo assim) pelos agentes, os insultos proferidos, os socos e pontapés desferidos com raiva, as torturas aplicadas, … sentimo-nos dilacerados, impotentes. Vivemos intensa e emocionalmente as pancadas, os gritos, as humilhações, a morte… não sentimos dó, sentimos raiva e revolta por tanta desumanização.

Para voltar à trama propriamente dita do romance, esta decorre entre 1967 e 2017 em Lisboa e Paris. Carlos, o protagonista, que cresceu em Paris com o tio, tem de regressar a Portugal a pedido dos pais, que julgava mortos, porque a mãe se encontra à beira da morte.

O regresso vai revelar-lhe que a sua mãe foi uma agente da PIDE “cruel, cheia de rancores e sem o mínimo de remorsos” que venera Salazar e que TUDO faz pela Nação.
Esse regresso vai espoletar um confronto doloroso com o passado, a partir de cartas escritas pela própria mãe toma conhecimento dos seus actos, dos seus crimes, das suas traições ao marido, do abandono do filho. Carlos não aceita a motivação dos pais, não compreende que possam estar do lado dos ditadores.

Quando terminamos este livro, não somos mais os mesmos. Algo mudou interiormente. E pensamos no presente. E receamos o futuro.
Quando nos preparamos para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, da liberdade (de falar, de ler, de escrever, de sonhar), questiono-me se toda a gente tem noção do que se passou nos anos de ditaduras, de guerras. Com tudo o que está a acontecer em Portugal e pelo mundo, será que temos consciência da existência de um passado de silêncio, de denúncia, de violência, de segregação, de extermínio?

Depois de ter digerido este livro, peguei na obra de Susana Moreira Marques, Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro que também revisita as mulheres deste país entre 1947 e 1949 (não vou desenvolver aqui o conteúdo, fá-lo-ei mais tarde). Mas se faço esta referência é porque a autora termina a sua “Nota ao leitor” com a seguinte frase: “Não podendo corrigir o curso da história passada, poderia sempre corrigir a história futura.”

Faz todo o sentido que assim seja. Mas será que ainda vamos a tempo? Será que foi com esta preocupação que o autor Paulo Pereira escreveu agora este livro? Posso concluir que sim. Agrada-me que assim seja. Recordar para não esquecer! Torna-se essencial.



05 abril, 2024

𝑶𝒔 𝑴𝒆𝒎𝒐𝒓á𝒗𝒆𝒊𝒔, de Lídia Jorge

 

Autora: Lídia Jorge
Título: Os Memoráveis
N.º de páginas: 342
Editora: D. Quixote
Edição (3.ª): Maio 2014
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em Os Memoráveis, a protagonista, Ana Maria Machado, repórter da CBS, em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução dos Cravos de 1974. Ela e dois amigos jornalistas, residentes em Lisboa, revisitam 30 anos depois, essa data memorável com o intuito de escrever o argumento para uma séria intitulada “A História Acordada”.

O regresso ao passado é recuperado através de entrevistas realizadas a algumas das figuras ilustres de abril que ficaram imortalizadas numa fotografia tirada, aquando de um jantar no restaurante Memories. Esta fotografia funciona como personagem aglutinadora ao longo do romance, já que corporiza uma memória colectiva e simbólica da revolução.

É, assim, sob o ponto de vista de três jovens, que não viveram a ditadura, que a narrativa se desenvolve, questionando o passado inacabado em confronto com o presente desencantado. Uma a uma as figuras selecionadas vão ser convidadas a responder às várias questões planeadas “Onde estavam? O que sentiram na altura? Que balanço fazem agora, passados trinta anos? Qual a melhor imagem a falar sobre a hora, o lugar e o papel que desempenharam naquela tão esperada madrugada. Que guardam de tudo o que aconteceu?” (p. 68)


Todos os entrevistados recriam a glória da revolução, o entusiamo da queda do regime, a união dos militares, mas também a desilusão do esquecimento, o oportunismo de alguns, a dificuldade da construção de uma democracia estável.

No interior da “Viagem ao Coração da Fábula”, entrelaça-se uma outra viagem mais íntima. Esta consiste na revelação da falta de entendimento e de incompreensão entre a narradora Ana Maria Machado e o seu pai António Machado, também ele jornalista de referência na época, e votado, como os outros ao abandono. Esta relação constrói-se nos silêncios e segredos mútuos; nos questionamentos e nas tentativas de aproximação e de recuperação de um passado mais carinhoso.

Lídia Jorge extraiu da História personagens e factos para recriar a sua estória. Ao evocar uma data gloriosa e promissora de esperança e liberdade, não descurou os desencantos, as dificuldades e sobretudo o perigo de esquecer o passado. Num perfeito cruzamento de realidade e ficção, a autora convoca o leitor a formular as suas próprias reflexões, a estabelecer relações com os protagonistas de Abril; a distinguir sonho e desilusão; a reviver episódios desse dia memorável; a exaltar valores de gratidão, de solidariedade e de amizade.

Ao comemorarmos, este ano, os 50 anos de Liberdade é urgente repensar, refletir sobre o caminho que queremos continuar a percorrer. É urgente lembrar esse “dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio.” (Sophia)