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25 abril, 2024

𝑨 𝑵𝒐𝒊𝒕𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: A Noite
N.º de páginas: 124
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Junho 2006
Classificação: Teatro
N.º de Registo: (2642)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



50 anos depois do “dia inicial inteiro e limpo”, li A Noite, de Saramago. Uma peça de teatro que se foca precisamente na noite que antecede à madrugada tão esperada por muitos. Na redacção de um jornal em Lisboa, onde decorre a ação, alguns jornalistas e tipógrafos emergiram do silêncio e puderam enfim manifestar-se e noticiar a verdade tão desejada. Outros, os do poder decisório, os que impunham notícias e artigos de conveniência, os que manipulavam a informação, e os lambe-botas que pretendiam aceder ao poder ficaram desconcertados, incrédulos, acreditando que seria um “outro 16 de Março”, duvidaram do boato que então surgiu de que a revolução já estava na rua.

Num texto organizado em dois actos, Saramago recorre a dezoito personagens envolvidas na produção do jornal que deverá sair na manhã seguinte, para desvendar a censura, o medo, a manipulação, mas também a esperança e o sonho de um novo dia.
Numa escrita clara e concisa com diálogos muito bem estruturados, pela voz de Manuel Torres, redactor de província, que luta pela verdade informativa em confronto com Valadares, chef da redacção, submisso ao poder, à ditadura, o autor traz à reflexão o impacto que a informação tem na sociedade. Os princípios de “objectividade, de ideal, de isenção, de respeito pelo público” tão defendidos hipocritamente por Valadares, estão quebrados quando os jornalistas se limitam ”a assinar um jornal que já vem feito dos coronéis da censura.” (p. 67)

Saramago é implacável, como sempre, e recorrendo à ironia, a sua arma poderosa, na minha opinião, desmonta os vários interesses que existem naquela redacção. No final do primeiro acto, Torres numa acesa discussão com o seu chefe tem uma tirada reveladora sobre a ética e a verdade no jornalismo.

“(…) Não torne a cantar-me as loas da objectividade, e da neutralidade, que é outra palavra que você usa muito. Digo-lhe eu que não há objectividade. Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são seleccionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E as notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? (…) Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos Para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. (…)” (pp. 60 e 61)

Hoje, passados 45 anos sobre a escrita deste texto (1979), receio que pouco se tenha alterado. O texto de Saramago continua actualíssimo, apenas mudaram os contextos. Continuamos mergulhados no caos da (des)informação porque o poder é quem mais ordena. Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades.

Recomendo muito a leitura deste livro de apenas 124 páginas, mas que diz tanto!



29 dezembro, 2023

Nobel da Literatura | 1981 - 2000

 



1981 - Elias Canetti (1905–1994) | Reino Unido | Romance, Drama, Memórias, Ensaios

“Pelos escritos marcados por uma visão ampla, riqueza de ideias e poder artístico”


1982 - Gabriel García Márquez (1927–2014) | Colômbia | Romance, Conto, Roteiro

“Pelos seus romances e contos, nos quais o fantástico e o realista se combinam num mundo de imaginação ricamente composto, refletindo a vida e os conflitos de um continente”


1983 - William Golding (1911–1993) | Reino Unido | Romance, Poesia, Drama

“Pelos seus romances que, com a perspicácia da arte narrativa realista e a diversidade e universalidade do mito, iluminam a condição humana no mundo de hoje”


1984 - Jaroslav Seifert (1901–1986) | Checoslováquia | Poesia

“Pela sua poesia que, dotada de frescura, sensualidade e rica inventividade, fornece uma imagem libertadora do espírito indomável e versatilidade do homem”


1985 - Claude Simon (1913–2005) | França | Romance

“Que no seu romance combina a criatividade do poeta e do pintor com uma profunda consciência do tempo na representação da condição humana”


1986 - Wole Soyinka (1934–) | Nigéria | Drama, Romance, Poesia

“Que numa ampla perspectiva cultural e com conotações poéticas molda o drama da existência”


1987 - Joseph Brodsky (1940–1996) | Estados Unidos | Poesia, Ensaio

“Por uma autoria abrangente, imbuída de clareza de pensamento e intensidade poética”


1988 - Naguib Mahfouz (1911–2006) | Egipto | Romance

“Que, através de obras ricas em nuances – ora clarividente realista, ora evocativamente ambígua – formou uma arte narrativa árabe que se aplica a toda a humanidade”


1989 - Camilo José Cela (1916–2002) | Espanha | Romance, Conto

“Por uma prosa rica e intensa, que com compaixão contida forma uma visão desafiadora da vulnerabilidade do homem”


1990 - Octavio Paz (1914–1998) | México | Poesia, Ensaio

“Pela escrita apaixonada de amplos horizontes, caracterizada pela inteligência sensual e integridade humanística”


1991 - Nadine Gordimer (1923–2014) | África do Sul | Poesia, Ensaio

“Que através de sua magnífica escrita épica – nas palavras de Alfred Nobel – foi de grande benefício para a humanidade”


1992 - Derek Walcott (1930–2017) | Santa Lúcia | Poesia, Drama

“Por uma obra poética de grande luminosidade, sustentada por uma visão histórica, fruto de um compromisso multicultural”


1993 - Toni Morrison (1931–2019) | Estados Unidos | Romance

“Que em romances caracterizados pela força visionária e importância poética, dá vida a um aspecto essencial da realidade americana”


1994 - Kenzaburo Oe (1935–2023) | Japão | Romance, Conto

“Que com força poética cria um mundo imaginado, onde vida e mito se condensam para formar uma imagem desconcertante da situação humana de hoje”


1995 - Seamus Heaney (1939–2013) | Irlanda | Poesia

“Pelas obras de beleza lírica e profundidade ética, que exaltam os milagres quotidianos e o passado vivo”


1996 - Wislawa Szymborska (1923–2012) | Polónia | Poesia

“Pela poesia que com precisão irónica permite que o contexto histórico e biológico venha à luz em fragmentos da realidade humana”


1997 - Dario Fo (1926–2016) | Itália | Drama

“Que imita os bobos da Idade Média ao flagelar a autoridade e defender a dignidade dos oprimidos”


1998 - José Saramago (1922–2010) | Portugal | Romance, Drama, Poesia

Que com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia continuamente nos permite apreender mais uma vez uma realidade ilusória”


1999 - Günter Grass (1927–2015) | Alemanha | Romance, Drama, Poesia

“Cujas fábulas negras divertidas retratam a face esquecida da história”


2000 - Gao Xingjian (1940–) | China, França | Romance, Drama, Crítica literária

“Por uma obra de validade universal, insights amargos e engenhosidade linguística, que abriu novos caminhos para o romance e drama chinês”





18 novembro, 2023

𝑶 𝑺𝒊𝒍ê𝒏𝒄𝒊𝒐 𝒅𝒂 Á𝒈𝒖𝒂, de José Saramago e Yolanda Mosquera

 



Autor: José Saramago
Título: O Silêncio da Água
Ilustradora: Yolanda Mosquera
N.º de páginas: 
Editora: Porto Editora
Edição: Maio 2022
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (3476)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A história narrada em O Silêncio da Água é um episódio extraído do livro As Pequena Memórias, de Saramago. Acontece à beira do rio Almonda, rio que banha a Azinhaga, local de boas memórias, onde o autor passou grande tempo da sua infância e juventude.

As ilustrações maravilhosas de Yolanda Mosquera complementam a mensagem simples e sensível do texto. As páginas coloridas vão muito além do diálogo directo com as palavras, já que os pormenores inseridos criam um outro enredo imagético que sugere momentos de felicidade e de descoberta vividos pelo menino. A frase mais expressiva do conto vem revelar isso mesmo, o despertar para novas vivências, novas sensações.

"Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei.
Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci".



30 maio, 2023

𝑬𝒔𝒄𝒓𝒆𝒗𝒆𝒓 𝒅𝒆𝒑𝒐𝒊𝒔 𝒅𝒆 𝑨𝒖𝒔𝒄𝒉𝒘𝒊𝒕𝒛, de Günter Grass

 



Autor: Günter Grass
Título: Escrever depois de Auschwitz
Tradutora: Helena Topa
N.º de páginas: 52
Editora: D. Quixote
Edição: Setembro 2008
Classificação: Discurso
N.º de Registo: (3431)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Escrever depois de Auschwitz  é a reflexão de Günter Grass sobre a possibilidade ou não de “fazer arte” ou de “escrever poemas” depois de Auschwitz.
Esta reflexão é parte do discurso que o autor proferiu a 13 de Fevereiro de 1990, no âmbito das Conferências de Poética, na Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt. Nele insere-se ainda o olhar do autor sobre o seu país e sobretudo sobre o seu percurso literário.
A ideia de se posicionar como espectador e crítico da sua própria vida e do seu trabalho cria a possibilidade irónica de reduzir “o tamanho das coisas” a fim de evitar o período de tempo que o marcou “fazendo dele um prisioneiro do engano e uma testemunha”. Grass considera que lhe está “destinada a insuficiência” devido à exigência do tema que se propõe desenvolver em Frankfurt.

Grass refere que enquanto se manteve em Berlim e com vinte e cinco anos de idade “ainda não estava pronto para reagir escrevendo; pesavam-lhe o passado, perdas, a sua ascendência, vergonha” (p. 36). Só mais tarde em Paris, afastado do seu país encontrou as palavras necessárias para escrever os seus livros. Os estímulos e as críticas de Paul Celan foram fundamentais para que continuasse a escrever.
No seu discurso faz uma breve apresentação das suas obras e definiu a profissão de escritor como “alguém que escreve contra o tempo que passa (...) que se exponha às vicissitudes do tempo que passa, que se imiscua e tome partido” (pp. 44-45)
Finalmente, Grass adianta que “Não podemos passar ao largo de Auschwitz (…) porque Auschwitz nos pertence , está gravado a ferro e fogo na nossa História.” , pelo que escrever sobre esta matéria e sobre a Alemanha faz parte do seu trabalho e considera que lhe resta a insuficiência e que não pode “prometer um fim a escrever depois de Auschwitz, a menos que o género humano desista de si próprio.” (p. 52)




27 março, 2023

𝑫𝒖𝒂𝒔 𝑺𝒐𝒍𝒊𝒅õ𝒆𝒔. 𝑶 𝑹𝒐𝒎𝒂𝒏𝒄𝒆 𝒏𝒂 𝑨𝒎é𝒓𝒊𝒄𝒂 𝑳𝒂𝒕𝒊𝒏𝒂, de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa

 


Autores: Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa
Título: Duas Solidões. O Romance na América Latina
Tradutor: J. Teixeira de Aguilar
N.º de páginas: 175
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2021
Classificação: Conversa/testemunhos
N.º de Registo: (3371)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Duas Solidões. O Romance na América Latina é a transcrição do interessantíssimo embate comunicacional de dois vultos da literatura - Gabriel García Márquez (Gabo) e Vargas Llosa, ocorrido em setembro de 1967, em Lima, no Peru. Os dois escritores, já nomes promissores da literatura latino-americana, estavam em início de carreira e tinha acabado de sair o famosíssimo Cem anos de solidão.
Trata-se de uma conversa amena, elegante, esclarecedora e emocionante.
Fala-se da utilidade dos escritores, “Para que achas que serves tu como escritor?” (p. 41) perguntou Llosa logo no início da conversa; dos métodos de escrita; de convicções; do boom do romance latino-americano; do “boom de leitores”; de leituras, de influências; das próprias obras e daquilo a que se viria a chamar mais tarde de “realismo mágico”.

Para além desta conversa entre os dois Nobelizados (duas partes), a edição conta com três textos introdutórios e uma Nota preliminar. No final, conta ainda com quatro testemunhos, duas entrevistas e algumas fotografias.

Num dos textos introdutórios, Juan Gabriel Vásquez descreve desta forma brilhante os dois protagonistas: “Aqui está esse Vargas Llosa: o romancista-crítico, senhor de uma consciência exacerbada do seu ofício, sempre com o bisturi na mão. Ao lado, García Márquez faz grandes esforços para defender a sua imagem de narrador instintivo, quase selvagem, alérgico à teoria e mau explicador de si mesmo ou dos seus livros. (…) Ora bem, o diálogo é também uma encenação de duas maneiras diferentes de entender o ofício de romancista; (…) Por um lado, a generosidade intelectual de Vargas Llosa (…) e, por outro, a timidez de García Márquez” (pp. 20-21)

Penso que este livro destaca a importância da conversa quer para os leitores quer para futuros escritores e é revelador da genialidade dos seus autores, da amizade e do respeito entre ambos. É bonito perceber que entre os dois há uma enorme cumplicidade apesar das divergências existentes, como é natural.

Termino com uma resposta de Gabo a Llosa que se tornou numa das suas máximas principais: “Escrevo para que os meus amigos gostem mais de mim.”



16 novembro, 2022

11 setembro, 2022

𝑫𝒐 𝑨𝒎𝒐𝒓 𝒆 𝑶𝒖𝒕𝒓𝒐𝒔 𝑫𝒆𝒎ó𝒏𝒊𝒐𝒔, de Gabriel García Márquez



Autor: Gabriel García Márquez
Título: Do Amor e Outros Demónios
Tradutora: Maria do Carmo Abreu
N.º de páginas: 180
Editora: D. Quixote
Edição (10.ª): Agosto 2017
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3301)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A prosa de Gabriel García Márquez (GGM) continua a encantar-me e a surpreender-me pelo conteúdo. O enredo surge de um acontecimento testemunhado pelo autor, na altura jovem repórter, como ele próprio nos informa no prefácio. À procura de uma notícia, GGM, no dia 26 de Outubro de 1949, vai assistir à desocupação das criptas funerárias do antigo convento de Santa Clara que ia ser vendido. Por sorte, para nós leitores, “No terceiro nicho do altar-mor, do lado do Evangelho, lá estava a notícia. (…) uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou para fora de cripta” (p. 13)

Este acontecimento lembra-lhe uma das várias lendas que a sua avó lhe contava. Esta conta a história de “uma marquesinha de doze anos cuja cabeleira se arrastava como a cauda de um véu de noiva, que morrera com raiva devido à dentada de um cão e que era venerada entre a população do Caribe pelos seus muitos milagres.” (pp. 13 e 14)

Assim, ao avistar os cabelos espalhados fora da cripta, GCM lembrou-se da avó e da lenda e imaginando que poderia muito bem ser a mesma criança, escreveu a sua notícia como lhe tinha sido solicitado e projectou este livro.

Não se trata de uma história feliz, pelo contrário é triste e angustiante. Desta vez, o Amor em figura de Demónio vai destruir todo o tipo de relação existente entre as várias personagens. E Sierva Maria, a protagonista, é a maior vítima. Sendo uma criança diferente, incompreendida e temida vai ser sujeita a exorcismos por se considerar que está possuída pelo Demónio.
Bem à maneira do realismo mágico que GGM tão bem popularizou e desenvolveu, temos uma história de amor, alimentada pelo desejo, repleta de mistérios, feitiços, sacrilégios, crenças. Ingredientes propícios à movimentação e actuação do Santo Ofício.
GGM, num misto de realidade e ficção, serve-se da possessão demoníaca, do sobrenatural para abordar temas como a religião, a superstição, a loucura, a diferença de culturas (negros, índios e espanhóis), a desigualdade e a repressão criadas e evidenciadas pela colonização.

Recomendo, claro! É um livro que levanta questões importantes do passado, do nosso imaginário, mas muitas ainda bem actuais e que merecem reflexão.


14 abril, 2022

Um poema | José Saramago




Química

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

 José Saramago, in Os Poemas Possíveis


22 janeiro, 2022

𝑶 𝑪𝒐𝒏𝒕𝒐 𝒅𝒂 𝑰𝒍𝒉𝒂 𝑫𝒆𝒔𝒄𝒐𝒏𝒉𝒆𝒄𝒊𝒅𝒂, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: O conto da ilha desconhecida
N.º de páginas: 39
Editora: Caminho
Edição (3.ª): dezembro 2007
Classificação: Conto
N.º de Registo: (2643)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Já li, reli e voltei a ler este pequeno conto de Saramago, mas nunca escrevi sobre ele. Por motivos profissionais tornou-se uma leitura obrigatória e quase anual. Mas sempre que o leio, é com um prazer redobrado que acompanho o pedido do homem “dá-me uma barco” e a decisão da mulher da limpeza em acompanhá-lo à procura da ilha desconhecida. Não vou desvendar a história que narrada sublimemente nos leva a questionar sobre a nossa existência, que nos faz olhar para dentro.
A ilha desconhecida mais não é do que uma alegoria à busca interior e ao conhecimento de si próprio “(…) mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, (…) Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós,” (pp. 27 e 28)
Não desistir dos seus sonhos é outra mensagem que se retira deste pequeno texto, ou será que é a mesma? E que afinal está tudo interligado. Concretizar os sonhos mais não é do que lutar por algo que se deseja, desvendar o que nos vai na alma e, no caso, o desejo material do homem era na verdade a descoberta do seu íntimo, do seu auto-conhecimento. Não sabendo como resolver essa premissa, por si só, transferiu-a para a descoberta de uma ilha desconhecida.
“Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar” (p. 23)

Numa mescla de fantasia e filosofia com pinceladas de ironia, Saramago propõe-nos uma auto-reflexão e mostra-nos um caminho para a resolução das muitas dificuldades que nos vão surgindo pela vida.
Trata-se, afinal, de um conto com múltiplas viagens… a viagem de cada leitor.
Recomendo muito este conto, sobretudo para quem se quer iniciar no vasto mundo saramaguiano. Sendo um texto curto permite ao leitor abordar e adaptar-se ao estilo muito próprio do autor com pontuação reduzida, diálogos não assinalados e um ritmo peculiar. (Lê-lo em voz alta, facilita)


06 janeiro, 2022

𝑶𝒃𝒋𝒆𝒄𝒕𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒔𝒆, de José Saramago

 


Autor: José Saramago
Título: Objecto Quase
N.º de páginas: 142
Editora: Caminho
Edição (4.ª): Novembro 1998
Classificação: Contos
N.º de Registo: (2673)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Objecto Quase integra seis contos breves onde as personagens são, na sua maioria, “coisificadas”, ou melhor dizendo, os objectos são humanizados. Esta característica é evidente nos contos “Cadeira” e “Embargo”. Outros há em que a fantasia, o surreal, o absurdo tomam conta da história e deparamo-nos com uma “animalização” do homem. Em todos, é evidente o tom sarcástico e a crítica à sociedade capitalista, à necessidade do ser humano em possuir bens e à sua dependência.
Ao longo dos seis contos, o autor conduz-nos por caminhos diversos, e que recorrendo a situações surreais, retrata o pessimismo, a depressão, a dependência e a imperfeição do ser humano.
A escrita destes seis contos revela o poder de observação, a capacidade de esmiuçar factos, o sentido crítico e bem-humorado do autor. Os seus textos, apesar de curtos, são autênticos trabalhos literários: descrições detalhadas; metáforas espantosas; histórias criativas repletas de ironia e de intensidade.

Por exemplo, no primeiro conto, “Cadeira”, fica-se pela descrição detalhada e irónica da cadeira que foi atacada pelo bicho da madeira e que vai destruindo o interior da perna que fará cair o homem que nela se senta. Facilmente percebemos que o episódio relata a queda de Salazar. Trata-se se uma alegoria ao fim da ditadura e do sistema vigente. A cadeira representa o poder. Se esta se torna decrépita, insegura, então o poder está decadente e deve ser substituído. É notável a descrição do momento em que o homem se sentou na cadeira, se recostou e finalmente caiu. Por vezes, parece que o narrador se desvia do assunto, tecendo outras histórias, outros factos, mas se o faz é para tornar mais intensa e credível a descrição sem nunca perder o fio condutor da narrativa em curso.

Gostei de todos os contos, mas a minha preferência recai em “Coisas”, o quarto conto. Classificá-lo-ia como uma distopia. As pessoas são hierarquizadas por ordem alfabética (têm a letra desenhada na mão), de acordo com a sua posição social. Tudo é absurdo, as coisas começam a ter reacções humanas, começam a tomar consciência da sua situação: objectos (portas, jarros, marcos do correio, degraus,…) desaparecem misteriosamente, paredes e prédios desabam, relógios deixam de funcionar, sofás têm febre, pessoas ficam nuas, cidades inteiras desaparecem …
Saramago põe em destaque a paranoia individual, mas sobretudo a colectiva, ele anula toda a materialidade e põe a nu o homem para o confrontar com a sua existência, com a sociedade em que se insere e vive de acordo com o que lhe é ditado. O homem torna-se objecto perante a inoperância e tirania do poder. O conto termina com uma réstia de esperança, de mudança porque, afinal, há sempre alguém que luta pela diferença.

Nestes textos, como em toda a obra, Saramago é exímio na crítica social.


03 dezembro, 2021

𝑨 𝒗𝒊𝒂𝒈𝒆𝒎 𝒅𝒐 𝑬𝒍𝒆𝒇𝒂𝒏𝒕𝒆, de José Saramago

 

Autor: José Saramago
Título: A Viagem do Elefante
N.º de páginas: 258
Editora: Caminho
Edição: Outubro 2008
Classificação: Romance
N.º de Registo: (2481)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É uma releitura e como todas as releituras que faço, fico sempre mais satisfeita. A minha disponibilidade para a narrativa, visto que já conheço a trama, é mais centrada nos pormenores quer da escrita quer do carácter das personagens quer ainda das descrições.

O livro narra a viagem de um elefante, Salomão, vindo da Índia, mas que estava há dois anos em Lisboa e que foi oferecido pelo rei D. João III ao arquiduque da Áustria Maximiliano II (seu primo). É, portanto, essa viagem de Lisboa a Viena que o elefante e o seu cornaca, Subhro, terão de fazer acompanhados por um séquito bem específico e que garantirá que tudo corra como planeado.
Segundo o próprio autor, este livro é uma metáfora da vida humana. O facto de Saramago ter estado doente aquando da sua escrita (que esteve em risco de ser concluído) pode ter tido alguma influência na descrição da “viagem” do elefante que afinal acaba por ter o mesmo fim que a do ser humano, isto é, a morte, porque todos morremos, de forma diferente, é um facto, mas no fundo a passagem pela vida é isso mesmo e “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (epígrafe do livro).
A escrita é poética, fácil, prazerosa, repleta de considerações bem-humoradas sobre os comportamentos humanos e a sociedade da época (século XVI). Apesar de ser um livro com uma temática mais leve, a ironia e o sentido crítico de Saramago mantêm-se. A longa viagem mais não é do que a sua visão atenta sobre o homem, os representantes da igreja, a burocracia da administração, do Estado, a corrupção, a ignorância mas também a simplicidade e a sabedoria do povo.
“… uma boa coisa que a ignorância tem é defender-nos dos falsos saberes” (p.121) e “ … não há dúvida de que as melhores lições nos vêm sempre das pessoas simples.” (p. 144)
A genialidade da escrita e o sarcasmo sempre presentes são razões muito válidas para continuar a ler Saramago. Um dos meus autores preferidos.



13 agosto, 2021

𝑳𝒆𝒗𝒂𝒏𝒕𝒂𝒅𝒐 𝒅𝒐 𝑪𝒉ã𝒐, de José Saramago

 



Autor: José Saramago
Título: Levantado do Chão
N.º de páginas: 366
Editora: Caminho
Edição 14ª: Fevereiro 1999
Classificação: Romance
N.º de Registo: (1039)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em A estátua e a pedra - o autor explica-se, texto que José Saramago apresentou numa conferência em Turim e que foi mais tarde publicado em livro, é-nos dito pelo próprio que Levantado do Chão (1980) é o primeiro livro do ciclo da estátua tendo o segundo ciclo, o da pedra, iniciado com  Ensaio sobre a Cegueira (p. 45).
Para que possamos entender esta metáfora, transcrevo a explicação do próprio autor: “(…) começou outro período da minha vida de escritor, no qual desenvolvi novos trabalhos com novos horizontes literários, dispondo portanto de elementos de juízo suficientes para afirmar com plena convicção que houve uma mudança importante no meu ofício de escrever. Não falo de qualidade, falo de perspectiva. É como se desde o Manual de Pintura e Caligrafia até a O Evangelho segundo Jesus Cristo, durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. (…) Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com o Ensaio sobre a Cegueira.” (pp. 33 e 34)

Partindo desta explicação, entende-se melhor a importância da obra Levantado do Chão, já com o estilo que se tornará muito próprio de Saramago. A história situa-se no Alentejo, descreve a vida de três gerações da família Mau-Tempo, desde os finais dos século dezanove até à Revolução de Abril de 1974 e relata a vida duríssima do campo, a miséria do povo, o poder dos latifundiários, da guarda republicana, a hipocrisia da igreja e as lutas camponesas para conseguir trabalho, redução de horário e um pagamento mais justo, a perseguição aos comunistas e a violência praticada quer nos postos da guarda quer nas prisões.
É um livro brilhante. Saramago de forma muito crítica retrata uma época política difícil, mas é nas pessoas, no seu quotidiano, nas suas lutas, nas suas dificuldades que ele centra toda a acção. E ao acompanharmos a família Mau-Tempo, vamos percebendo a evolução política e social do país, vamos entendendo a luta duríssima dos camponeses pelos seus direitos por uma vida mais digna e justa.

Saramago apresenta-nos uma escrita crítica, sensível, poética e perturbadora. Por exemplo, quando descreve um dos momentos mais cruéis, de tortura, recorre à metáfora do carreiro de formigas que surpreende, perturba e, simultaneamente, encanta o leitor.



12 maio, 2021

𝑶 𝑨𝒎𝒐𝒓 𝒏𝒐𝒔 𝑻𝒆𝒎𝒑𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑪ó𝒍𝒆𝒓𝒂, de Gabriel García Márquez



Autor: Gabriel García Márquez
Título: O Amor nos Tempos de Cólera
N.º de páginas: 387
Editora: D. Quixote
Edição: 1.ª- Outubro 1987
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3275)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Há livros que sabemos que são bons, que são de leitura obrigatória, mas que vão sendo protelados ou mesmo olvidados, até que surge uma oportunidade e então coloca-se a questão óbvia: por que razão é que não tinha ainda lido este livro?
É um livro fabuloso. Um grande romance muitíssimo bem escrito. Numa narrativa escorreita, o autor apresenta-nos uma história de amor (ou serão duas?) que ocorre em tempos de cólera, no mar das Caraíbas, num país em divergências político-sociais.

O romance, uma grande analepse, tem três protagonistas, a bela Fermina Daza e dois homens que a amam, Florentino Ariza e Juvenal Urbino. O primeiro amor, um amor muito platónico e pueril entre Florentino e Fermina é alimentado por esperas, olhares, promessas, sonhos e longas cartas, mas assim que é interceptado pelo pai dela, são imediatamente separados e o pai decide arranjar as coisas para casar a filha com o doutor Juvenal Urbino, médico respeitado, na região.
Florentino sofre uma forte desilusão e com o coração despedaçado jura esperar por ela, desejando a morte do marido. A espera revestida de um amor eterno, por vezes obsessivo, dura cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias e termina com um final maravilhoso, mas muito improvável.

Toda a história está repleta de emoção. O realismo mágico, tão próprio do autor, torna plausível uma história com várias inverosimilhanças. Mas a linguagem poética e sensível, o uso de metáforas, o sentido de humor, a ironia e a técnica (estrutura circular) utilizada para narrar a história tornam este romance numa perfeição e o leitor que, em certos momentos, despreza Florentino Ariza, abomina o oportunismo e a superficialidade de Fermina Daza e critica a aventura, fora de casa, de Juvenal Urbino, acaba por ficar seduzido e enfeitiçado.

O Amor nos Tempos de Cólera é um romance sobre o amor e as suas contrariedades, sobre a passagem do tempo – da juventude à velhice – sobre o quotidiano de uma família marcado por hábitos conquistados ao longo de cinquenta anos de vida em comum, mas também sobre as guerras internas e a epidemia que assolam o país. Para além de um romance de amor é sobretudo um romance sobre um país e uma cultura e, ainda, sobre a redenção dos males deste mundo em que os sentimentos prevalecem sobre tudo, transpondo idades, preconceitos e conflitos.

Nesta obra, para mim das melhores de Garbo, o autor realiza com grande mestria, excelência e sensibilidade a arte de bem escrever.


17 abril, 2021

𝑩𝒆𝒍𝒐𝒗𝒆𝒅 , de Toni Morrison

 


Autor: Toni Morrison
Título: Beloved
N.º de páginas: 351
Editora: D. Quixote
Edição: 1.ª- 2009
Classificação: Romance
N.º de Registo: 2710


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Beloved talvez seja o romance mais conhecido de Toni Morrison, venceu o Prémio Pulitzer em 1988 e foi certamente importante na atribuição do Prémio Nobel de Literatura, em 1993. É o primeiro romance de uma trilogia que inclui Jazz e Paraíso.
Baseado em factos reais mas também sobrenaturais, resgata a memória individual de algumas personagens, mas sobretudo colectiva da escravatura norte-americana no estado de Ohio no pós-Guerra da Secessão. Trata-se de uma narrativa de redenção, da história de um povo que foi escravizado, violentado, torturado. Mesmo após a liberdade, as marcas permanecem, corroem e desgastam.
“Os brancos achavam que quaisquer que fossem os modos, sob cada pele escura existia uma selva. (…) Quanto mais os negros se desgastavam a tentar convencê-los que eram amistosos, que eram inteligentes e afectuosos, que eram humanos, quanto mais se cansavam a convencer os brancos de algo que achavam que nem devia ser questionado, mais a selva crescia e se adensava.”(p. 259)

A leitura não é linear, é mesmo, em certas passagens, desconexa e requer alguma concentração. Apesar de uma linguagem poética e pungente, há passagens difíceis não só devido às histórias cruéis, ao desgaste emocional, aos traumas vividos pelas personagens mas também devido a uma linguagem mais densa e a uma estrutura complexa.
É uma leitura desafiante que causa ambiguidades e que obriga o leitor a juntar as peças, como num puzzle, para acompanhar a mensagem. Tal como em relação ao holocausto é necessário escrever e ler sobre estes períodos da nossa História para que a memória permaneça.





30 novembro, 2020

Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, de José Saramago

 


OPINIÃO


Saramago escreveu este texto a pedido do compositor Azio Corghi para ser adaptado à ópera. À medida que o autor ia escrevendo a peça teatral o compositor ia construindo o libreto. (O posfácio “Génese de um libreto”, esclarece como o projecto foi sendo construindo: troca de correspondência (email) com as diversas ideias e sugestões dos dois criadores.) 
Neste texto, Saramago altera o mito de Don Juan (já muito abordado por vários autores), isto é, em vez de o condenar aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, decide absolvê-lo e mostrar que ele é que foi seduzido. Estamos, evidentemente, perante uma paródia, tal como o original espanhol.
Ao longo das cinco cenas de um único acto, desfilam as personagens que vão mostrar o propósito do autor. Quem é o Don Giovanni de Saramago, um sedutor, ou um seduzido? Temos, então o próprio dissoluto Don Giovanni e o seu criado Leporello, a estátua do comendador, as mulheres que o tentam seduzir: a nobre Dona Ana, a burguesa Dona Elvira e a camponesa Zerlina e ainda os traídos Don Octávio e Masetto. Em poucas páginas, e à boa maneira saramaguiana, se satirizam os valores e comportamentos de uma sociedade hipócrita.

19 julho, 2020

Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, de Gao Xingjian,



OPINIÃO



Pequeno livro de escrita simples e subtil, composto por seis contos, sendo que o último – Instantâneos - consiste numa seleção de apontamentos, observações, descrições, … 

Os cinco primeiros contos abordam situações comuns que refletem não só o modo de pensar da sociedade oriental, mas também o da ocidental. Temos temas como a felicidade de um jovem casal em lua-de-mel; a brevidade da vida retratada num acidente mortal com as habituais e múltiplas opiniões da multidão “entendida”, situação depressa resolvida e esquecida; a indiferença perante as dificuldades do outro, um jovem quase morre afogado e ninguém se apercebe; o desinteresse e a dor causada pela ausência do outro, uma rapariga chora num parque enquanto espera, em vão, que o outro chegue; o encontro e a lembrança de um amor passado e que já não faz sentido; a saudade de uma infância feliz rememorada na procura dos lugares onde viveu com o avô e a dor sentida ao descobrir que desapareceram e foram substituídos por uma cidade de betão. 
É no último conto que deu título ao livro (o meu preferido) que o autor melhor explana a sua escrita poética e melancólica, porque sendo mais extenso, tem espaço para criar uma história mais comovente, mais emotiva. Ao contrário das primeiras narrativas, que sendo mais curtas, nem tudo é dito, cabe ao leitor ler nas entrelinhas e captar a profundidade da mensagem.



05 janeiro, 2020

Deste Mundo e do Outro, de José Saramago


OPINIÃO




Temos 60 crónicas publicadas em 1968 e 69 no jornal A Capital. Não podemos esquecer que nesta época tudo era dito com meias palavras, nas entrelinhas “E eu, rapazinho que vivia apertado na pele que lhe coubera, lançava o bafo às vidraças e traçava desenhos incompreensíveis, com a vaga inquietação de quem adivinha que há nas coisas sentidos ocultos que só ocultamente podem ser entendidos.” (p. 32).

Saramago, a certa altura, numa crónica intitulada Viagens na minha terra, revisita à obra de Almeida Garrett, apresenta a seguinte questão: “Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos? São o que podem ser.” (p. 50). 

Considero que estes textos são precisamente testemunhos, reflexões, uns mais irónicos que outros, do autor sobre pessoas importantes da sua vida (avô e avó maternos), sobre escritores que o marcaram, sobre aspectos da sua infância (a casa onde viveu), factos do dia-a-dia (cidade, amola-tesouras, praia, férias, etc), acontecimentos importantes (a ida à lua). Os textos estão tão bem escritos que alguns são autênticos contos. Ele próprio refere “Amigos, esta história é verdadeira. Todas as minhas histórias são verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla.” (p. 59.) 

Outro aspecto que me agradou bastante é a cumplicidade estabelecida entre autor e leitor, há uma constante interpelação ao leitor “perdoará o leitor que eu me deixe escorregar pelo declive das utopias” (p. 77); “Dê-me a sua mão, leitor. Sente-se aqui, a meu lado, e escute a história simples do coração dos homens.” (p. 109); “Deu-me para aqui hoje, leitor. Tenha paciência e vire a página.” (p. 129); e por aí adiante. São múltiplos os exemplos e dou por mim a sorrir, pois adoro esta cumplicidade é como se eu fosse personagem dos textos de Saramago e isso é um tremendo privilégio. 



21 setembro, 2019

A maior flor do mundo, de José Saramago


SINOPSE

E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?

OPINIÃO

A maior flor do mundo é uma linda história para crianças e adultos. Neste primeiro conto infantil, Saramago integra a história como personagem, interagindo com o leitor, colocando questões sobre a sua capacidade de escrever histórias para crianças e propondo mesmo que sejam estas a reescrever a história.

Claro que nesta simples e curta história há um ensinamento. Outra coisa não se esperaria do autor. Através de uma coisa muito simples como regar uma flor que, no entanto, exigiu esforço por parte da criança, se demonstram valores como a esperança, a perseverança e o amor.


23 julho, 2019

História do Cerco de Lisboa de José Saramago



SINOPSE

«Há muito que Raimundo Silva não entrava no castelo. Decidiu-se a ir lá. O autor conta a história de um narrador que conta uma história, entre o real e o imaginário, o passado e o presente, o sim e o não. Num velho prédio do bairro do Castelo, a luta entre o campeão angélico e o campeão demoníaco. Raimundo Silva quer ver a cidade. Os telhados. O Arco Triunfal da Rua Augusta, as ruínas do Carmo. Sobe à muralha do lado de São Vicente. Olha o Campo de Santa Clara. Ali assentou arraiais D. Afonso Henriques e os seus soldados. Raimundo Silva "sabe por que se recusaram os cruzados a auxiliar os portugueses a cercar e a tomar a cidade, e vai voltar para casa para escrever a História do Cerco de Lisboa. Uma obra em que um revisor lisboeta introduz a palavra "não" num texto do século XII sobre a conquista de Lisboa aos mouros pelos cruzados.» (Diário de Notícias, 9 de outubro de 1998)


OPINIÃO

Neste romance de Saramago estamos perante um diálogo entre a história e a literatura, o que nos permite encarar os factos de uma forma mais atraente. Temos a história do Cerco de Lisboa levado a cabo por D. Afonso Henriques em 1147 contra os mouros que ocupavam Lisboa e a história de Raimundo Silva, revisor de uma editora lisboeta, escrevendo, por sua vez, a história do cerco. 

Durante a revisão da História do Cerco de Lisboa Raimundo Silva decide colocar a palavra NÃO numa página e alterar assim os factos da história do Cerco de Lisboa. 

“uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passo a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade,” (p. 50) 

A introdução desta simples palavra na história, vai causar primeiramente perturbações no seu comportamento e posteriormente alterações na sua vida. 

Mais uma vez estamos perante a mestria de Saramago na construção de personagens complexas. Ao atribuir a profissão de revisor a Raimundo, e ao escolher um romance histórico como o objecto revisado, Saramago coloca questões sobre a veracidade dos factos, sobre a aquisição e construção dos conhecimentos, sobre a objectividade/subjectividade do historiador. 

De forma irónica e numa escrita complexa, Saramago interliga os dois planos, isto é, as duas histórias que se vão desenrolando simultaneamente, a de 1147 e a actual, a de Raimundo Silva, a de 1980. Assim, Raimundo Silva ao escrever a sua versão da história, vai-se descobrindo a si próprio e vai projectando no passado a sua própria vida mesclando realidade e ficção.
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12 março, 2018

Que Farei com Este Livro? de José Saramago




Bem ao estilo de Saramago, este livro é uma sátira à sociedade, aos vícios do reino no tempo das descobertas. 

Tendo a figura de Luís de Camões e a publicação do seu livro maior Os Lusíadas, após o regresso da Índia, como ponto fulcral deste texto dramático, Saramago põe em evidência a miséria mental da corte e dos poderosos que a integram, o oportunismo, as influências, e o poder da Inquisição. 

Luís de Camões obteve finalmente, e porque estava bem recomendado, o parecer positivo para requerer a licença de impressão do seu livro. Este foi-lhe lido pelo próprio Frei de Bartolomeu Ferreira (censor do Santo Ofício) que, de entre outros aspetos, nele refere: “ … e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.”. 

Se neste tempo, a arte e a genialidade não eram reconhecidas, ou apenas por uma minoria, o mesmo se passa nos nossos dias. E é esta a intenção principal de Saramago ao escrever este livro, ora vejamos: “ Não, minha mãe, não estou conformado. Vivo em Portugal. Sei o que a experiência me ensinou. Que assim como se diz que não há dinheiro que pague o talento e o engenho, também se deveria dizer que por isso mesmo ninguém os quer pagar. Enfim, não percamos nós o ânimo. Quando o meu livro estiver publicado, talvez que el-rei mande dar-me uma tença.”

A leitura desta peça poderá servir como contextualização à abordagem da obra Os Lusíadas, nos diferentes níveis de ensino.