28 setembro, 2022

𝑷𝒓𝒊𝒎𝒆𝒊𝒓𝒂 𝑷𝒆𝒔𝒔𝒐𝒂 𝒅𝒐 𝑺𝒊𝒏𝒈𝒖𝒍𝒂𝒓, de Haruki Murakami

 


Autor: Haruki Murakami
Título: Primeira Pessoa do Singular
Tradutoras: Inês Rocha Silva e Maria João Lourenço
N.º de páginas: 171
Editora: Casa das Letras
Edição: Outubro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3386)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Neste livro composto por oito contos, o autor exibe uma escrita simples, elegante e poderosa.
Poderosa porque ludibria o leitor que, voluntariamente, se deixa levar, sem pretender distinguir as fronteiras do real e da ficção. Não há necessidade de o fazer!

Escritos na primeira pessoa, partimos do princípio e assumimos que tudo lhe aconteceu, que tudo viveu. E aí reside o encanto da sua escrita. O autor transforma em literatura factos banais de uma vida passada. As suas histórias, sobre namoradas de adolescência, basebol, poesia, música, muita música, tradições nipónicas, e até sobre um macaco erudito e massagista, elevam-nos, por vezes, a um patamar de surrealismo onde realidade, ficção e sonho se fundem harmoniosamente.

Gostei especialmente de dois contos: “Charlie Parker Plays Bossa Nova” e “Carnaval”. Há magia, nestes contos. É incrível como o autor discorre sobre a capacidade de criar, de ficionar (“Charlie Paker visitou-me em sonhos a fim de me agradecer – até aí lembrava-me – por lhe ter dado oportunidade, em anos que já lá iam, de tocar bossa nova. (…) Dá para acreditar? É bom que acreditem, Porque aconteceu mesmo.” (p.53)) e sobre a capacidade fascinante de encontrar beleza numa mulher feia (“ Ela era, provavelmente, a mulher mais feia que alguma vez conheci. (…) Quando vi F* pela primeira vez, achei-a logo incrivelmente feia. Porém, como era tão sorridente e simpática, senti-me envergonhado por me assaltar um sentimentos desta estirpe. “ (pp. 117 e 120)).

Recomendo. Temos uma leitura agradável, moderna com pinceladas da tradição nipónica e muitas referências culturais que nos permitem conhecer melhor Murakami.

27 setembro, 2022

Silêncios!

 

   
                                                            @Man Ray – An Other Body

(...)

sabes por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido o teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mãos da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado o teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor do teu corpo
(...)


Al Berto, O Medo - Carta da Flor do Sol (a meu amigo)


25 setembro, 2022

𝑨 𝑰𝒍𝒉𝒂, de Sándor Márai

 


Autor: Sándor Márai
Título: A Ilha
Tradutora: Piroska Felkai
N.º de páginas: 155
Editora: D. Quixote
Edição (3.ª): Julho 2017
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Emp)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Em A Ilha, Sándor Márai apresenta-nos um texto conciso, intenso e perturbador que narra a dupla viagem do protagonista, Viktor Henrik Askenasi. A real, de Paris a uma estância balnear do Adriático e a interna, a dos questionamentos e reflexões que culmina no encontro de Askenasi com o destino.

O autor é exímio na descrição minuciosa dos estados de alma, dos pensamentos e das reflexões que conduzem o ser humano ao mais profundo do seu íntimo. A sua escrita torna-se visceral, de tal forma que inculca ao leitor as angústias, as dúvidas, bem como as decisões de Askenasi. De forma intensa e marcante, o leitor vive a mesma ansiedade na busca incessante da felicidade e questiona a felicidade temporária, previsível, rotineira e a sensação de vazio.

"Recordava-se feliz do trabalho feito, tinha cumprido praticamente todas as suas obrigações, tinha vivido conforme as exigências das circunstâncias e sociedade, apenas depois tinha seguido uma vida distinta, orientando-se com os instrumentos do corpo, e agora não tinha mais nada para fazer do que procurar a resposta à pergunta (…) Porque é que não conseguia encontrar satisfação? Ainda faltava dar resposta a essa pergunta. Considerou humilhante ter sucumbido de uma forma tão ridícula, e agora tinha que vaguear pelo mundo à procura da resposta noutras mulheres, tentar descobrir respostas parciais nos livros, perguntar a outros homens. «De pouco me serviram os métodos», pensou maldisposto.” (p. 103)

Askenasi aos 48 anos atravessa uma crise. Aconselhado por amigos e colegas, decide empreender uma viagem para recuperar e sobretudo encontrar as respostas às dúvidas que o assolam e que o tornam insatisfeito, ansioso e irritado. Cansou-se da mulher Anna;
Fugiu de Eliz a amante sensual e duvidosa que lhe devolveu a liberdade e a felicidade perdida com o casamento e o levou a romper com as regras estabelecidas da sociedade burguesa e conservadora em que se movimentava.

“Lembrou-se de que amara muito Anna, de tudo o que tinham feito juntos nos primeiros anos de casamento, naquele quarto quando ainda «eram desconhecidos um para o outro» e existia um certo mistério entre eles. Quando desapareceu o mistério começou o pudor.” (p. 78);

"Já levava três meses que Askenasi vivia com a mulher desconhecida [Eliz], quando começou a notar com surpresa que a felicidade ou o prazer, ou seja, aquele estado anímico extraordinário que se costuma considerar como a única recompensa pelos sofrimentos terrestres, na realidade era muito pouco parecido com aquilo que havia imaginado. O que estava vivendo era sem dúvida felicidade, mas às vezes parecia-lhe que era um estado incómodo, complexo e, no fim de contas, pouco agradável. (…) Começou a compreender que a felicidade não se podia considerar uma propriedade privada que se adquire de um momento para o outro, com uma herança da qual, posteriormente, só é preciso cuidar e evitar que seja roubada ou perca o seu valor. Tinha que a descobrir em cada meia hora, em cada minuto; manifestava-se sem aviso e, em termos gerais, era mais cansativa e irritante do que agradável e tranquilizadora.” (p. 81)

Como escreveu Saramago “É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.”, também Askenasi precisou de encontrar a sua ilha para perceber a sua solidão e entender o seu destino.

Recomendo! É um livro fabuloso!


Silêncios!

 




Deitada na praia, fecho os olhos e recordo tudo aquilo que ainda não vi.


in Azul-Instantâneo, Pedro Vala 



24 setembro, 2022

𝑶𝒔 𝑫𝒆𝒛 𝑳𝒊𝒗𝒓𝒐𝒔 𝒅𝒆 𝑺𝒂𝒏𝒕𝒊𝒂𝒈𝒐 𝑩𝒐𝒄𝒄𝒂𝒏𝒆𝒈𝒓𝒂, de Pedro Marta Santos


Autor: Pedro Marta Santos
Título: Os Dez Livros de Santiago Boccanegra
N.º de páginas: 494
Editora: Teorema
Edição: Fevereiro 2016
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3330)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Começo por afirmar que não foi uma leitura fácil sobretudo no início. É uma leitura que requer concentração e alguma lentidão. Sendo o autor guionista, a construção deste livro, isto é, destes dez livros, é feita de momentos, de avanços e de recuos no tempo, de histórias cruzadas, de personagens que saltitam de livro para livro, como se de um filme se tratasse. Parece alucinante, e assim é de facto! Por vezes, perdemo-nos e já não sabemos quem é quem, nem onde se encontra, nem mesmo em que ano, mas Santiago, a personagem comum a todos os livros, orienta-nos habilmente pelos diferentes caminhos e tempos do livro.

Como já referi, e como o próprio título indica, o livro contém dez livros e a cada um está associado o nome de uma personagem, à excepção do último. Assim dito, parece um enredo simples, linear em que cada livro trataria da história de uma personagem. Nada disso, desenganem-se! Há uma deambulação constante de personagens, há uma convergência de escolhas, de peripécias, de laços familiares, há um saltitar constante no tempo, ora vamos para trás, ora voltamos para a frente.

São cerca de 500 páginas de desassossego, de entusiasmo, de encantamento, mas também de repulsa, de dor, de redenção. Há imensas referências históricas e culturais; há descrições belíssimas de pinturas, de obras de arte, de livros, de momentos musicais que seduzem e nos agarram até à próxima cena, à próxima página. Há momentos maravilhosos, apoteóticos e apocalípticos (como o final) que nos surpreendem e, quase, nos parecem reais. Considero que quando isto acontece, quando realidade e fantasia se unem harmoniosamente, é porque a escrita é fascinante. Em literatura, não me preocupo em destrinçar o real da fantasia e o verídico do ficcionado. Deleito-me em apreciar a narrativa, em si, a qualidade da escrita e a capacidade de apresentar uma estrutura diferente. Foi o que aconteceu neste livro. Fiquei completa e agradavelmente cativada e arrebatada.


11 setembro, 2022

𝑫𝒐 𝑨𝒎𝒐𝒓 𝒆 𝑶𝒖𝒕𝒓𝒐𝒔 𝑫𝒆𝒎ó𝒏𝒊𝒐𝒔, de Gabriel García Márquez



Autor: Gabriel García Márquez
Título: Do Amor e Outros Demónios
Tradutora: Maria do Carmo Abreu
N.º de páginas: 180
Editora: D. Quixote
Edição (10.ª): Agosto 2017
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3301)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


A prosa de Gabriel García Márquez (GGM) continua a encantar-me e a surpreender-me pelo conteúdo. O enredo surge de um acontecimento testemunhado pelo autor, na altura jovem repórter, como ele próprio nos informa no prefácio. À procura de uma notícia, GGM, no dia 26 de Outubro de 1949, vai assistir à desocupação das criptas funerárias do antigo convento de Santa Clara que ia ser vendido. Por sorte, para nós leitores, “No terceiro nicho do altar-mor, do lado do Evangelho, lá estava a notícia. (…) uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou para fora de cripta” (p. 13)

Este acontecimento lembra-lhe uma das várias lendas que a sua avó lhe contava. Esta conta a história de “uma marquesinha de doze anos cuja cabeleira se arrastava como a cauda de um véu de noiva, que morrera com raiva devido à dentada de um cão e que era venerada entre a população do Caribe pelos seus muitos milagres.” (pp. 13 e 14)

Assim, ao avistar os cabelos espalhados fora da cripta, GCM lembrou-se da avó e da lenda e imaginando que poderia muito bem ser a mesma criança, escreveu a sua notícia como lhe tinha sido solicitado e projectou este livro.

Não se trata de uma história feliz, pelo contrário é triste e angustiante. Desta vez, o Amor em figura de Demónio vai destruir todo o tipo de relação existente entre as várias personagens. E Sierva Maria, a protagonista, é a maior vítima. Sendo uma criança diferente, incompreendida e temida vai ser sujeita a exorcismos por se considerar que está possuída pelo Demónio.
Bem à maneira do realismo mágico que GGM tão bem popularizou e desenvolveu, temos uma história de amor, alimentada pelo desejo, repleta de mistérios, feitiços, sacrilégios, crenças. Ingredientes propícios à movimentação e actuação do Santo Ofício.
GGM, num misto de realidade e ficção, serve-se da possessão demoníaca, do sobrenatural para abordar temas como a religião, a superstição, a loucura, a diferença de culturas (negros, índios e espanhóis), a desigualdade e a repressão criadas e evidenciadas pela colonização.

Recomendo, claro! É um livro que levanta questões importantes do passado, do nosso imaginário, mas muitas ainda bem actuais e que merecem reflexão.


04 setembro, 2022

𝑬𝒖 𝑽𝒐𝒖, 𝑻𝒖 𝑽𝒂𝒊𝒔, 𝑬𝒍𝒆 𝑽𝒂𝒊, Jenny Erpenbeck

 


Autora: Jenny Erpenbeck
Título: Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai
Tradutora: Ana Falcão Bastos
N.º de páginas: 268
Editora: relógio d'Água
Edição: Novembro 2018
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3154)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai é um livro pleno de interpelações sobre a forma como o Ocidente olha, recebe e trata os refugiados africanos.

A narrativa centra-se na figura do académico Richard, recentemente reformado e viúvo, que não sabe muito bem como ocupar os seus dias vazios, como passar o tempo. Até que um dia, sentado à mesa, ouve na televisão que “dez homens, ao que parece refugiados, reuniram-se e iniciaram uma greve de fome” (p. 24).
Richard culpabiliza-se por não ter visto estes homens e percebe que “Falar do que é verdadeiramente o tempo é uma coisa que provavelmente pode fazer melhor com aqueles que caíram fora dele. Ou, se se preferir, que estão encerrados nele.” (pp. 41 e 42)

Para saber quem são estes homens e o que se passa na Alexanderplatz bem no centro de Berlim, Richard lê sobre o tema dos refugiados e decide conversar com eles. Para isso, preparou uma série de questões, porque “é importante fazer as perguntas certas.”

Ao longo da narrativa, mergulhamos com Richard no mundo desses homens: o presente, às voltas com a vida, de um lado para o outro em busca de uma identidade, de um acolhimento; o passado, cruel, violento, de perdas e guerra.
Richard fala com eles em inglês ou italiano e um pouco em alemão com aqueles que vão aprendendo a língua nas aulas que lhes são facultadas. É da aprendizagem do verbo ir, numa dessas aulas, que surge o título do livro.
Numa escrita limpa, clara e intensa, a narrativa flui e tomamos conhecimento do grave problema que assola a Europa, e percebemos como é urgente encontrar uma resposta para esta crise política e humanitária.

A abordagem ao tema é clara e objectiva, não há acusações directas, não há “parti-pris”, não há opiniões pré-concebidas. Contudo, estamos perante uma denúncia política, uma tragédia humanitária que urge resolver.

Gostei da relação estabelecida entre a realidade dura e cruel dos refugiados e a ficção criada pelo protagonista. Sendo um (ex)professor universitário imerso nos livros e nos pensamentos, Richard vai atribuir aos homens que vai entrevistando nomes como Tristão, Ulisses ou Apolo. Assim, ele estabelece um paralelo com figuras e episódios da literatura clássica, aspectos do mundo que ele domina e que o orientam na violenta caminhada destes homens sem, no entanto, satisfazerem as suas dúvidas nem darem resposta à pergunta chave deste romance “Para onde vai uma pessoa quando não sabe para onde há de ir?”