31 janeiro, 2021

𝑨 𝒐𝒖𝒕𝒓𝒂 𝒇𝒂𝒄𝒆 𝒅𝒐 𝒓𝒊𝒔𝒐 , Isabel Gouveia

 



Autor: Isabel Gouveia
Título: A Outra Face do Riso
N.º de páginas: 147
Editora: Universitária Editora
Edição: 1.ª edição Jul. 2003
Classificação: Contos
N.º de Registo: 1587


OPINIÃO ⭐⭐⭐

A Outra Face do Riso é um livro que provoca sorrisos mais pelo carácter dramático de algumas histórias do que propriamente pelo cómico. São 23 contos interessantes que me fizeram regressar à minha infância, também beirã. Ao longo do livro, revi algumas personagens-tipo muito bem caracterizadas, espaços e eventos descritos na perfeição, vícios e costumes típicos dos habitantes da província. Os vários estratos sociais foram retratados sem o menor pudor. Ninguém foi poupado. Poder-se-á afirmar que a autora, como advogada, conhecia bem os meandros da sociedade da época.

A escrita é muito cuidada, demasiado por vezes. Houve a preocupação de bem escolher as palavras, de não sair de uma certa linha de escrita. Foi pena, alguns contos seriam bem mais interessantes se a linguagem usada fosse mais popular e até com recurso a alguma brejeirice. A ironia e a malícia estão presentes, mas aplicadas num outro tom teria sido bem mais agradável e evidente.

Foi uma leitura agradável.


29 janeiro, 2021

𝑨𝒑𝒏𝒆𝒊𝒂, de Tânia Ganho

 

Autor: Tânia Ganho
Título: Apneia
N.º de páginas: 692
Editora: Casa das Letras
Edição: 1.ª edição Jul. 2020 / 2.ª edição Jul. 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Apneia: “Ausência ou interrupção momentânea da respiração” foi neste estado que permaneci ao longo da leitura deste livro. Tive de retrair o impulso de o ler de seguida, senti que se o fizesse também eu ficaria perturbada, insone. Foi necessário dosear a leitura para acompanhar a violência psicológica, o medo, a náusea vividos por Adriana e Edoardo, o seu filho.
Este livro é um autêntico murro no estômago. Não é novidade para ninguém o quão doloroso é um processo de guarda partilhada de um filho, sobretudo quando um dos progenitores semeia ódio e manipula a criança para atingir o outro cônjuge. São 692 páginas de demonstração de ódio, de manipulação, de mentiras, de submissão, de terror, de idas a tribunais, ao psicólogo, ao psiquiatra, a advogados, e finalmente de descobertas… descobertas terríveis que sufocam o leitor, que o mantêm em apneia, que o deixam indignado com a lentidão e a inoperância da justiça e de todos os que deviam defender os direitos e o bem-estar de uma criança. É inadmissível a cegueira da justiça que nesta história, como em tantas da vida real, falha na sua missão de proteger a criança, de proteger a mulher violentada…
“Estava em guerra contra o sistema que, podendo prevenir, optava por remediar. «A justiça não é preventiva», explicara-lhe uma das muitas autoridades que contactara. «A justiça é punitiva.»” (p. 577)

Gostei muito da escrita sensível e comprometida de Tânia Ganho. Gostei da intertextualidade com a poesia de Anne Sexton. “Que arca/poderei eu encher para ti quando o mundo se tornar selvagem?” (p.49)
Gostei da estrutura que, de início, atrapalha o leitor porque anacrónica, mas que pretende representar o estado mental caótico de Adriana, (um reflexo da sua fragmentação” p. 348) a mãe que tudo fez para manter a saúde mental do seu filho nesta guerra parental à custa de tanta dor, de tanta mágoa, de tanta injustiça, mas também de tanta perseverança e amor.


28 janeiro, 2021

𝗨𝗺𝗮 𝗩𝗶𝗮𝗴𝗲𝗺 à Í𝗻𝗱𝗶𝗮, de Gonçalo M. Tavares


Autor: Gonçalo M. Tavares
Título: Uma Viagem à Índia
N.º de páginas: 456
Editora: Caminho
Edição: 1.ª edição 2010 / 2.ª edição 2011
Classificação: Epopeia
N.º de Registo: 2701

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

É admirável a escrita e a versatilidade do autor. Neste livro, estamos perante uma epopeia, a narrativa de um herói, dividida em 10 cantos, e escrita em verso (1102 estrofes). É, por isso, inevitável a comparação com a nossa obra maior Os Lusíadas, de Luís de Camões ao nível da estrutura, do destino da viagem, dos elementos da natureza, do divino e de outras referências ao longo da narrativa. Claro que há diferenças, tais como a ausência de rima, a irregularidade do número de versos de cada estrofe, o herói individual e não colectivo, entre outros aspectos.

Temos ainda, uma proposição, é-nos anunciado, logo no início, qual o propósito do livro: “Falaremos de uma viagem à Índia. /E do seu herói, Bloom” (p. 32) e uma invocação:
“Mas agora quem quer falar é quem escreve.
Que as ninfas e as musas, e ainda a minha
cabeça, me ajudem na escrita, pois escrever
assim – epopeias – é exigência de minúcia
em animal de grande porte e exigência de grandeza
em animais ferozes mas minúsculos.” (p. 320)

Quem conhecer bem a epopeia camoniana não deixará de perceber o paralelismo estabelecido nesta Melancolia Contemporânea (subtítulo).

Bloom, o nosso herói, foge de Lisboa, do passado e vai procurar a sabedoria à Índia, porém, aí, encontra decadência e hostilidade e constata que no Ocidente e no Oriente os homens são idênticos. O herói, regressa da Índia sem conquistar um novo mundo, o passado mantém-se vivo, o presente afigura-se-lhe melancólico e o futuro entediante.
“ Ele aproxima-se da mulher e o mundo prossegue,
mas nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de
Bloom, o nosso herói.” (p.456)

Em conclusão, penso que, apesar do título, não estamos perante um livro de literatura de viagens, mas sim de uma viagem interior “a viagem interior de Bloom”, de aprendizagem, de auto-conhecimento, de reflexão.
Apesar de se tratar de uma leitura complexa porque navega sobre muitos assuntos, vale a pena ler, com tempo, para subtrair o essencial e reflectir.


15 janeiro, 2021

𝑪𝒐𝒏𝒇𝒖𝒔ã𝒐 𝒏𝒐 𝑪𝒐𝒓𝒓𝒆𝒅𝒐𝒓 𝒅𝒐𝒔 𝑬𝒏𝒍𝒂𝒕𝒂𝒅𝒐𝒔, de José Luís Peixoto

 

Autor: José Luís Peixoto
Ilustrador: Catarina Bakker
Título: Confusão no Corredor dos Enlatados
N.º de páginas: 38
Editora: Zero Desperdício
Edição:  s/data
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (ebook)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

São quatro os livros que integram esta coleção editada com o objectivo de “educar para uma alimentação saudável”, este, em particular, foca-se no desperdício alimentar. 
Destinado aos mais pequenos (1.º ciclo), mas que pode e deve ser lido por qualquer um. Com uma escrita simples, uma linguagem muito acessível e ilustrações maravilhosas, a história encerra uma mensagem muito interessante e actual, excelente para desenvolver na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Foi no âmbito desta disciplina que lemos, de forma expressiva, este conto aos alunos do 7.º ano. No final, houve troca de ideias e de boas práticas. 
Divertimo-nos imenso! E os pequenos adoraram! 
Recomendo a leitura! Vão adorar conhecer a Mimimi (Maria Isabel Mónica Ivone Matilde Inês Silva da Silva) e seguir os seus conselhos!

11 janeiro, 2021

Celebrar Al Berto !

 



As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo
e o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada

Al Berto, in O Medo

(11 de Janeiro de 1948 -13 de Junho de 1997)

10 janeiro, 2021

𝑭𝒆𝒍𝒊𝒄𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆, de João Tordo

                                                     

Autor: João Tordo
Título: Felicidade
N.º de páginas: 390
Editora: Companhia das Letras
1.ª Edição: Outubro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: 3253


OPINIÃO: ⭐⭐⭐⭐

É o nono livro que leio de João Tordo e a minha admiração pela sua escrita, pelo seu poder criativo quer ao nível da construção quer do enredo, tem vindo a crescer de livro para livro. 

Felicidade apresenta características de uma tragédia grega, não sendo uma peça de teatro, há contudo aspectos que para aí remetem, como por exemplo, a estrutura do romance, a divisão em três actos; o culto à mitologia grega; o tema da morte e a história trágica e dramática derivada da paixão humana; a tensão permanente em que vive a personagem e o final infeliz e trágico. 

Ao longo da narrativa, acompanhamos um jovem (não lhe foi atribuído um nome) desde os tempos em que frequentava o liceu até à vida adulta, ao desenlace trágico. Conhecemos a sua família, alguns amigos e as trigémeas: Felicidade, Esperança e Angélica. 
Trata-se de uma história intensa, marcada por muito sofrimento, solidão e loucura, ao contrário do que os nomes atribuídos às figuras femininas poderiam indiciar: uma história de amor, de felicidade e de tranquilidade. O leitor nem terá tempo de alimentar essa ilusão porque logo nas duas primeiras páginas, o narrador revela o estado final das irmãs e ao apresentá-las, cria um certo suspense que provoca no leitor uma vontade enorme de descobrir o mistério que envolveu a vida deste jovem. 

“A primeira das trigémeas foi o meu grande amor, a segunda a minha mulher e a terceira participante involuntária da minha ruína. Juntas, elas destruíram a minha vida de maneira lenta e insidiosa, como uma matilha de cadelas que rodeia, dia após dia, um passarinho esfomeado, até este jazer morto no chão da sua gaiola. Finalmente, encontram-se saciadas”. 

Para além do enredo trágico há uma excelente contextualização da História e da Cultura da época em Portugal (anos 70 e 80), bem como uma importante referência à mitologia grega que muito enriquecem a história. Gostei muito desta contextualização porque reavivou a minha memória. Quem viveu estes tempos sabe quão importantes foram. 

Recomendo a sua leitura. É um romance enigmático, trágico com pinceladas de humor e algumas passagens surpreendentes. 

03 janeiro, 2021

Pedro Páramo, de Juan Rulfo

 


Autor: Juan Rulfo
Título: Pedro Páramo
N.º de páginas: 169
Editora: Cavalo de Ferro
3.ª Edição: Junho 2017
Classificação: Romance
N.º de Registo: (Empréstimo BE)


OPINIÃO: ⭐⭐⭐⭐⭐

Há muito que andava para ler este livro considerado, por muitos, como um dos melhores clássicos da literatura. Penso que se Gabriel García Márquez afirma que “o escrutínio a fundo da obra de Juan Rulfo me deu, por fim, o caminho que procurava para continuar os meus livros”, então está tudo dito. Estamos efectivamente perante um livro notável, singular, místico onde o murmúrio e o silêncio predominam e indiciam a morte.

“Agora estava aqui, nesta aldeia sem ruídos. (…) E embora não houvesse crianças a brincar, nem pombas, nem telhados azuis, senti que a aldeia estava viva. E que, se eu ouvia apenas o silêncio, era porque não estava ainda habituado ao silêncio; talvez porque a minha cabeça vinha cheia de ruídos e vozes.” (p. 24
Memórias e realidade entrecruzam-se a várias vozes. Tal como em Cem Anos de Solidão (romance em que se nota a influência de Rulfo sobre García Márquez), o realismo mágico é a característica dominante. 
Estamos perante um romance que revela muitos personagens, vivos e mortos (mais mortos do que vivos). São almas, fantasmas que vagueiam de noite, que murmuram, que falam entre si, que vão narrando a Juan Preciado, filho de Pedro Páramo, a história de seu pai que do nada foi “crescendo como uma erva daninha”, a sua paixão por Susana San Juan, a sua morte e com ela, a de Comala. 

“ – Esta aldeia está cheia de ecos. Parece que estão fechados no interior das paredes ou por baixo das pedras. Quando andas, sentes que vão pisando os teus passos. Ouves estalidos. Gargalhadas. Uma gargalhadas já muito velhas como se estivessem cansadas de rir. E vozes já gastas pelo uso. Ouves tudo isso.” (p.59) 

Poder-se-á afirmar que Rulfo ao comparar Comala ao Inferno é uma alegoria ao continente sul-americano e mais concretamente ao México, já que na obra há referências à história e à política mexicanas. 

“- Sim, e isto [o calor] não é nada – respondeu-me. - Espere. Vai senti-lo ainda mais quando chegarmos a Comala. Aquilo está sobre as brasas da Terra, na própria boca do Inferno. Basta dizer-lhe que muitos dos que lá morrem, quando chegam ao Inferno, regressam em busca do seu agasalho. “ (p.22)



01 janeiro, 2021

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Tinha nevado. Lembro-me
de música saindo de uma janela aberta.

Vem a mim, dizia o mundo.
Não significa
que o fizesse com frases
mas era assim que eu intuía a beleza.
Aurora. Uma película de humidade
sobre cada ser vivo. Poças de luz fria
formavam-se nas sarjetas.

Eu esperava
na soleira,
por mais ridículo que pareça agora.

O que outros encontravam na arte,
encontrava eu na natureza. O que outros encontravam
no amor humano, encontrava eu na natureza.
Muito simples. Mas não havia nenhuma voz ali.

Louise Glück, Averno