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30 dezembro, 2023

𝑨 𝑴𝒂𝒅𝒐𝒏𝒂, de Natália Correia

 




Autora: Natália Correia
Título: A Madona
N.º de páginas: 171
Editora: Casa das Letras
Edição: Fevereiro 2011
Classificação: Romance
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Conhecemos a Natália Correia como sendo uma mulher intelectual de personalidade exuberante e excessiva que se debatia convicta e vigorosamente na bancada parlamentar. Sabemos também que teve um papel activo de confronto com o Estado Novo e que viu muitas das suas obras censuradas. Conhecemos alguma da sua poesia, e ouvimos falar das suas famosas tertúlias, que resultavam a maioria das vezes em vigorosas discussões, promovidas em sua casa ou no Botequim, à Graça. E da sua prosa? O que conhecemos?

Confesso que A Madona, editado em 1968, foi o primeiro romance que li dela. E li-o agora porque a biografia O Dever de Deslumbrar, de Filipa Martins me deslumbrou e convenceu.

Em boa hora o fiz. Não foi uma leitura fácil, e esta narrativa não linear, centrada nas memórias e num percurso espiritual da protagonista, complica a compreensão inicial do enredo, mas a sua escrita, num estilo grandiloquente e erudito, é muito poética e irónica. O que me apraz sobremaneira.

Neste romance, Natália Correia conta-nos a história de Branca, filha única e rica, que é incentivada pela mãe, após uma tragédia familiar, a estudar no estrangeiro.
Branca instala-se inicialmente em Paris. Aí é confrontada com uma mentalidade intelectual e moralmente comprometida. Vive excessos. Procura acompanhar as diversas manifestações de feminilidade. Abandona-se a paixões. Conhece pessoas inquietas e perturbadas. Conhece mulheres que vivem o amor livremente. Ilude-se com as suas emoções. É Infeliz. Duvida de si, da sua beleza, da sua capacidade de amar. Facilmente compra um “bilhete para a solidão.” Regressa à aldeia em busca de soluções.

Numa sociedade patriarcal, onde os desejos e as práticas sexuais livres eram censurados pela moral vigente salazarista, Natália Correia retira Branca da sua aldeia provinciana e preconceituosa, dominada pelos homens e onde as mulheres levam uma vida de submissão, e coloca-a primeiro a viver em Paris, e mais tarde a viajar pela Europa, para lhe dar a conhecer novas formas de viver e de pensar. “Estúpida civilização que não percebe que definha porque atrofiou o sentimento.” (p. 165)

Natália Correia põe assim em destaque a mulher em busca da liberdade sexual, em busca de uma liberdade interior. Afinal o que está em causa é sobretudo o respeito pela mulher, pelas suas escolhas, pela sua liberdade.





«𝑪𝒂𝒓𝒐 𝑷𝒓𝒐𝒇𝒆𝒔𝒔𝒐𝒓 𝑮𝒆𝒓𝒎𝒂𝒊𝒏» 𝑪𝒂𝒓𝒕𝒂𝒔 𝒆 𝑬𝒙𝒄𝒆𝒓𝒕𝒐𝒔, de Albert Camus

 


Autor: Albert Camus
Título: «Caro Professor Germain» Cartas e Excertos
Tradutora: Maria Etelvina Santos
N.º de páginas: 81
Editora: Livros do Brasil
Edição: Setembro 2023
Classificação: Cartas 
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Duas partes constituem este pequeno e tocante livro. As cartas trocadas entre o autor e o seu professor da escola primária (agora 1.º ciclo) e um capítulo “A Escola” do seu livro ainda em rascunho e inacabado O Primeiro Homem.

Considero este livro como uma verdadeira homenagem aos professores e à escola pública. A relação entre aluno e professor testemunhada nas cartas revela sentimentos ternos, afectuosos, de reconhecimento, gratidão e respeito mútuo. Ambos revelam um forte amor à escola, o professor pelo empenho, ensinamentos e benevolência (“ amava os meus alunos e, de todos eles, um pouco mais aqueles que a vida desfavorecera”); o aluno pela alegria e empenho que dedicava já que nas aulas podia saciar a sua fome de descoberta e de aprendizagem.

As cartas são tendencialmente curtas, claras e simples. As fórmulas usadas “Meu caro rapaz” e “Caro Professor Germain” confirmam o grande apreço e carinho que os une. Em todas, Camus agradece ao seu mestre por ter acreditado e investido nas suas capacidades e de lhe ter aberto as portas para um futuro melhor.
Na segunda parte (autobiográfica), o episódio que envolve a avó e a mãe é narrado em pormenor. Não vou adiantar muito mais, pois entendo que retiraria ao leitor o prazer da descoberta. Convido-vos, sim, a lê-lo.
Transcrevo, contudo, uma carta que considero marcante e que reverbera o que já disse.
Trata-se de uma humilde e breve missiva escrita no dia 19 de novembro de 1957, um mês após a anunciada atribuição a Albert Camus do Prémio Nobel da Literatura (p. 34).

«Caro Professor Germain,

Deixei que acalmasse um pouco todo o ruído que me envolveu nos últimos dias, antes de vir falar-lhe um pouco e de coração aberto. Acabam de me conceder uma grande honra, que não busquei nem pedi.
Mas quando soube da notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para si. Sem o senhor, sem essa mão afetuosa que estendeu à pequena criança pobre que eu era, sem o seu ensinamento e exemplo, nada disto me teria acontecido.
Não imaginava para mim um mundo com essa espécie de honra, mas ele veio criar, pelo menos, uma ocasião para lhe dizer o que o senhor foi e sempre continuará a ser para mim, e testemunhar que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso sempre neles presentes estão ainda vivos num dos seus pequenos alunos que, apesar da idade, nunca deixou de ser seu aluno reconhecido.

Abraço-o fortemente,
Albert Camus”

Recomendo a leitura deste e de outros livros do autor. Já li alguns, tenciono ler mais e fiquei com vontade de adquirir e ler O Primeiro Homem.




25 dezembro, 2023

𝑨 𝑮𝒖𝒆𝒓𝒓𝒂, de José Jorge Letria e André Letria


Autor: José Jorge Letria
Título: A Guerra
Ilustrador: André Letria
N.º de páginas: 64
Editora: Pato Lógico Edições
Edição: Abril 2018
Classificação: Infanto-juvenil
N.º de Registo: (3501)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Livro infanto-juvenil, e que tal como o título o indica é um livro sobre guerras, sobre poder, prepotência, medo, dor e morte.

A guerra surge “como uma doença sussurrada e veloz” que “ não ouve, não vê e não sente” e se impõe, num crescendo, alimentada de ”ódio, ambição e rancor”. A guerra anula os sonhos, cala, esmaga, amedronta inocentes. A guerra não conta histórias felizes pelo contrário fabrica dor, sofrimento, raiva, gera “filhos de aço” com “sonhos de glória” que gostam de reinar entre destroços e ruínas. A guerra é o silêncio, a guerra é a morte.

Neste livro magnífico, a narrativa visual de André Letria dialoga com as frases curtas e incisivas de José Jorge Letria. A personificação da guerra sem rosto, sem data, sem local representada em tons sombrios (cinzento, preto, branco, verde e amarelo que se mesclam) alerta-nos para um mundo conflituoso onde o poder e a prepotência vingam sobre a inocência e a fragilidade.

Gosto da simbiose entre o texto e o traço. Predomina a ilustração. Todas as páginas estão inteiras e certeiramente ilustradas, a mensagem passa sem equívocos e as dezasseis frases curtas estrategicamente colocadas, complementam- na e reforçam-na, obrigando o leitor a reflectir sobre estes tempos de conflitos que vivemos.


Partilho a animação que descobri no Youtube produzida pelas bibliotecas municipais de Santiago do Cacém. 

Deixem-se deslumbrar pelas ilustrações e pelo texto. 





17 dezembro, 2023

𝑳í𝒃𝒂𝒏𝒐, 𝑳𝒂𝒃𝒊𝒓𝒊𝒏𝒕𝒐, de Alexandra Lucas Coelho

 


Autora: Alexandra Lucas Coelho
Título: Líbano, Labirinto
N.º de páginas: 487
Editora: Caminho
Edição: Junho 2021
Classificação: Viagem/Reportagem
N.º de Registo: (3344)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐

Líbano, Labirinto situa-se entre a revolução e a explosão de 4 de agosto de 2020, no porto de Beirute. Tendo tido pelo meio a pandemia que agravou em muito a derrocada económica do país. Em ambas as situações, Alexandra Lucas Coelho (ALC) deslocou-se ao país, como repórter. Foi a partir das múltiplas conversas que teve em Beirute que escreveu este livro.

Após a explosão no porto, ALC que se encontrava em Portugal percebeu que tinha de partir, de novo, para ver com os seus próprios olhos (não podemos esquecer que o acontecimento foi amplamente noticiado), para sentir e captar tudo. Lá, constatou a enorme devastação da cidade, completamente em ruínas, e a vida miserável da população que permaneceu na cidade, mantendo, apesar de tudo, a esperança numa recuperação.

É nesta toada de deambulação pelas ruas, de recolha de imagens e de depoimentos, de conversas com amigos, revolucionários, mulheres, homens da rua, artistas, poetas, … que ALC nos oferece a sua visão, a sua leitura sobre o Líbano, o Médio Oriente, uma paixão que já tem cerca de 20 anos.

Líbano, Labirinto é um excelente trabalho que põe em evidência a crise, a miséria, a destruição, os mortos, a violência, o papel da mulher, as mudanças histórico-sociais sofridas ao longo dos tempos, as seitas religiosas (18), a cultura, …

A autora recorre à crónica, à reportagem, ao testemunho e à memória difusamente ilustradas com fotografias a cores (350). Numa entrevista à Visão, ALC referiu que não encara este livro como jornalismo, mas sim como não-ficção, isto é mais próximo da literatura. Ainda, segundo ela, esta diferença permite-lhe escrever com total liberdade e assim, “o livro seguiu para onde senti que tinha de ir”.

Ao longo das páginas, o leitor percebe que a opinião de ALC sobre o labirinto que o Líbano vive, não é de agora, não se deve essencialmente a estes poucos dias que esteve no país, mas deve-se às suas vastas leituras, e sobretudo aos anos que dedicou e viveu na região (Líbano, Israel e Palestina)
Concordemos ou não com a sua opinião, não permanecemos indiferentes ao “Mapa de uma história que parece condenada a renascer das cinzas, a voltar às cinzas.” (p. 13); à hospitalidade das suas gentes que partilham o pouco que têm; à esperança de quem acredita que tudo pode renascer.

ALC ganhou com este livro o Prémio Oceanos e na altura o júri referiu, entre outros aspectos, que “a autora constrói um livro poderoso sobre os afetos e a guerra, a angústia e a esperança.” Concordo perfeitamente. É um livro pleno de sensibilidade que nos faculta conhecimentos sobre um povo e um país complexo em constante convulsão, refém de uma divisão religiosa.



08 dezembro, 2023

𝑬𝒔𝒕𝒆 𝑶𝒇í𝒄𝒊𝒐 𝒅𝒆 𝑷𝒐𝒆𝒕𝒂, de Jorge Luís Borges

 



Autor: Jorge Luís Borges
Título: Este Ofício de Poeta
Tradutora: Telma Costa
N.º de páginas: 111
Editora: Relógio d'Água
Edição: Setembro 2017
Classificação: Textos/Palestras
N.º de Registo: (3411)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Este Ofício de Poeta revela-se uma fonte de conhecimento preciosíssima. Trata-se de um conjunto de seis palestras proferidas na Universidade de Harward, entre Outubro de 1967 e Abril de 1968.

Na primeira palestra, Borges, com simplicidade, refere que tem apenas as suas perplexidades e as suas dúvidas para oferecer, adquiridas ao longo de uma vida “a ler, a analisar, a escrever (ou a tentar escrever) e a divertir-me.” (p. 9). Para ele a poesia, escrever poesia é ”uma paixão e uma alegria” que não pode ser encarada como uma tarefa. Discorda de algumas teorias sobre a definição de poesia e apela a que se encare a vida como poesia. Se assim for, esta surge a cada esquina. Quem lê este primeiro texto fica com a ideia de que escrever poesia é fácil porque “toda a gente sabe onde há de encontrar poesia. E quando ela chega, sentimos o toque da poesia, esse especial formigueiro da poesia.” (p. 21).

Como já percebemos, Borges encara a poesia como um ofício sedutor e, assim, induz-nos a pensar a poesia a partir da vida e não só a partir dos livros. Estes “são apenas ocasiões para a poesia. (…) Na verdade, o que é um livro em si? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então chega o leitor certo, e as palavras – ou melhor, a poesia por trás das palavras, pois as palavras em si são meros símbolos – saltam para a vida e temos uma ressurreição da palavra.” (pp. 10, 11). Recai, assim, no leitor a responsabilidade de extrair a poesia das palavras, da vida.

Não vou desvendar mais sobre Este Ofício de Poeta, cingi-me a tecer algumas considerações baseada na primeira palestra O Enigma da Poesia que convida na sua primeira abordagem, os ouvintes das palestras e, posteriormente, os leitores a captar na leitura, e por conseguinte na Literatura, uma “ocasião de beleza”, de alegria, de paixão.

A quem entende a leitura como um verdadeiro prazer, aconselho muito este livro que nos faculta a possibilidade de ler as seis palestras apresentadas por um homem extraordinário do mundo das letras. As outras cinco palestras têm como títulos: Metáfora; Contar o Conto; Música da Palavra e Tradução; Pensamento e Poesia; O Credo de Um Poeta. Transmitem saberes, valores e estimulam a confiança e a imaginação. Nestas seis conferências, Borges vai recorrer à sua experiência e citar inúmeros livros e citações de escritores, de filósofos e de oradores para nos transmitir a sua visão da importância da leitura e da poesia, ou seja, da vida.



30 novembro, 2023

𝑼𝒎𝒂 𝑬𝒙𝒊𝒔𝒕ê𝒏𝒄𝒊𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒂𝒑𝒆𝒍, de Al Berto

 


Autor: Al Berto
Título: Uma Existência de Papel
N.º de páginas: 53
Editora: Coleção Pedra de Canto - 4
Edição: Janeiro 1985
Classificação: Poesia
N.º de Registo: (--)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Todos os anos, neste mês, volto obrigatoriamente a Al Berto, o meu poeta.
Desta vez a escolha recaiu no livro Décimo Primeiro (1984/85) - Uma Existência de Papel.

É sempre com enorme prazer que o (re)leio. Mesmo tratando-se de uma releitura, descubro novas confissões, sinto novas e intensas emoções. Nunca permaneço indiferente e, por vezes, é-me mesmo doloroso reter, dos seus versos, a intensa solidão, a melancolia profunda e permanente e o silêncio desolador (“é no silêncio/que melhor ludibrio a morte”) que se revelam através da perda, da ausência e do medo.
Para Al Berto escrever é viver. É a folha de papel que lhe dá ânimo para existir.
“ então a vida abater-se-á sobre a folha de papel/ onde verso a verso/ me ilumino e me desgasto” (Meu único amigo - 6).

Há, neste livro, resquícios de uma existência fulminante, de excessos, de paixões, de transgressão, mas também de vazios lancinantes, de memórias de viagens, de vivências, de lugares, de partidas, da criança que foi.
“eis-me acordado/ com o pouco que me sobejou da juventude nas mãos/ estas fotografias onde cruzei os dias/ sem me deter/ e por detrás de cada máscara desperta/ a morte de quem partiu e se mantém vivo.”

Gostaria ainda de destacar, porque é também um dos meus poetas, a referência num poema, o penúltimo deste livro, a um dos seus “fantasmas literários”. Rimbaud é um dos seus modelos estruturadores, por excelência. Este poema é um auto-retrato de Al Berto com alusões metonímicas a Rimbaud (Alexandria, Harrar) e com a indicação dos trinta e sete anos de idade – a idade do poeta francês quando morreu – revela um propósito de identificação com o seu destino. A biografia de Rimbaud confunde-se com a de Al Berto.

“embebedavas-te
(…)
escuta
a partir de hoje abandono-te para sempre
ao silêncio de quem escreve versos
em Portugal
tens trinta e sete anos como Rimbaud
Talvez seja tempo de começares a morrer!

Assim, pode-se aferir, após a leitura deste décimo primeiro livro, que a vida de Al Berto parece conter-se a uma existência de papel na medida em que se regista a necessidade urgente de condensar sensações, vivências, memórias e imagens através da escrita. Pelo que o espaço privilegiado em que o “eu” se estabelece é o “papel”
“mais nada se move em cima do papel/ nenhum olho de tinta iridescente pressagia/ o destino deste corpo” (Eremitério – 5)



22 novembro, 2023

𝑷𝒆𝒔𝒔𝒐𝒂 & 𝑺𝒂𝒓𝒂𝒎𝒂𝒈𝒐, de Miguel Real

 

Autor: Miguel Real
Título: Pessoa & Saramago
N.º de páginas: 270
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3461)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



Miguel Real nas páginas iniciais do livro refere que “Fernando Pessoa (1888-1935) e José Saramago (1922-2010) foram, pela qualidade e singularidade da sua escrita, dois dos maiores escritores portugueses do século XX, se não mesmo os dois maiores escritores do século XX.” (p. 11) e mais adiante escreve que “ambos com oficinas literárias diferentes (Pessoa: a heteronímia; Saramago: o autor narrador) interrogam e problematizam os fundamentos religiosos e filosóficos da nossa civilização.”

Ao longo do livro, perceberemos o que une estes dois vultos da nossa literatura. Enquanto Pessoa nos transmite a sua visão mítica e histórica de Portugal através dos heróis nacionais (Mensagem), Saramago guia-nos através das suas personagens, homens e mulheres da sociedade, para nos legar uma mensagem muito clara, da sua visão do mundo e em particular de Portugal.


Veremos ainda que em ambos, as personagens tornam-se “mestres”, tornam-se “realizações literárias do autor.” Pessoa multiplica-se nos seus diversos heterónimos, construindo “uma comunidade só minha” [a sua]; Saramago multiplica-se na criação das suas personagens, construindo a “sua comunidade literária, o “outro”, criado pelo próprio”. Assim, sintetiza Miguel Real: “ Por isso, ainda que múltiplo como múltiplas são as personagens, Saramago é uno, e Pessoa, ainda que uno, é sobretudo múltiplo, isto é, plural.” (p. 19)

Para quem aprecia as obras destes dois autores, este ensaio de Miguel Real é importante e recomendo a sua leitura. Gostei bastante de perceber os pontos comuns explanados através dos conceitos de “heteronímia” e de “autor-narrador”; de entender a estética de cada um que, apesar de diferente, se assemelham na complexidade da criação das personagens (Saramago) e dos heterónimos (Pessoa), na visão crítica da sociedade e na transgressão dos “códigos estéticos do seu tempo” que os elevam à “universalidade da literatura”.

Contudo, e não posso deixar de o referir, considero que, em certas partes, o texto se torna um pouco repetitivo e denso.



19 novembro, 2023

𝑨 𝒄𝒂𝒔𝒂 𝒗𝒂𝒛𝒊𝒂, de Claude Gutman

 


Autor: Claude Gutman
Título: A casa vazia
Tradutora: Joana Caspurro
N.º de páginas: 85
Editora: Ambar
Edição: Março 2001
Classificação: Novela 
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Descobri A casa vazia na biblioteca da minha escola. De vez em quando encontro pequenas pérolas arrumadas nas prateleiras, apertadas por outros de maiores dimensões e, nem sempre, tão fascinantes.

Gostei muito. É uma história pungente, sensível, narrada pelo pequeno David que desde cedo aprende “que a guerra é uma grande porcaria. A pior de todas as porcarias.” (p. 10)

Nas 85 páginas que compõem o enredo, há poucas explicações. O leitor, conhecedor deste período negro da nossa História, terá de intuir o que aconteceu no não-dito, nas inúmeras elipses, nas analepses, nas emoções do narrador, na raiva e na dor expressas. Sentimo-nos impotentes perante tanta revolta, perante a urgência da escrita, da revelação dos factos. Resta-nos respirar… absorver as palavras… calar e sofrer perante o mal.

Tal como o autor regista a necessidade de escrever, de contar o que aconteceu. É também urgente que se leia. Já não com o propósito “para que não se repita”, pois infelizmente a História está a repetir-se. Com a mesma violência, com a mesma incompreensão. Não aprendemos nada com os erros do passado!
“ Temos que estar armados para a vida, e não apenas com pistolas e metralhadoras. A palavra é uma arma igualmente terrível contra os exploradores…” (p. 75)

Recomendo muito a leitura deste primeiro livro. Há uma continuação que vou tentar descobrir.



18 novembro, 2023

𝑶 𝑺𝒊𝒍ê𝒏𝒄𝒊𝒐 𝒅𝒂 Á𝒈𝒖𝒂, de José Saramago e Yolanda Mosquera

 



Autor: José Saramago
Título: O Silêncio da Água
Ilustradora: Yolanda Mosquera
N.º de páginas: 
Editora: Porto Editora
Edição: Maio 2022
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (3476)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A história narrada em O Silêncio da Água é um episódio extraído do livro As Pequena Memórias, de Saramago. Acontece à beira do rio Almonda, rio que banha a Azinhaga, local de boas memórias, onde o autor passou grande tempo da sua infância e juventude.

As ilustrações maravilhosas de Yolanda Mosquera complementam a mensagem simples e sensível do texto. As páginas coloridas vão muito além do diálogo directo com as palavras, já que os pormenores inseridos criam um outro enredo imagético que sugere momentos de felicidade e de descoberta vividos pelo menino. A frase mais expressiva do conto vem revelar isso mesmo, o despertar para novas vivências, novas sensações.

"Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei.
Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci".



05 novembro, 2023

𝑶 𝒃𝒂𝒓𝒖𝒍𝒉𝒐 𝒅𝒂𝒔 𝒄𝒐𝒊𝒔𝒂𝒔 𝒂𝒐 𝒄𝒂𝒊𝒓, de Juan Gabriel Vásquez

 


Autor: Juan Gabriel Vásquez
Título: O barulho das coisas ao cair
Tradutor: Vasco Gato
N.º de páginas: 302
Editora: Alfaguara
Edição: Outubro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3333)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐




O barulho das coisas ao cair é um romance fascinante que descreve uma Colômbia que tenta resgatar-se da violência e do medo imposto durante anos pelos homens de Pablo Escobar.

António Yammara, o jovem protagonista, narra a sua vida “contaminada” e por analogia a de tantos outros da sua geração, “ a geração que nasceu com os aviões, com os voos cheios de sacos e os sacos cheios de marijuana, a geração que nasceu com a Guerra contra as Drogas e conheceu depois essas consequências,” (p. 251); a geração que vive perturbada por barulhos indefiníveis e intermináveis, “um barulho que não é humano ou é mais que humano, o barulho das vidas que se extinguem mas também o barulho dos materiais que se partem. É o barulho das coisas ao cair, um barulho interrompido e por isso mesmo eterno, um barulho que não termina nunca, que continua a ressoar na minha cabeça…” (p. 97)

A narrativa que está magistralmente escrita permite ao leitor imaginar e atribuir contornos à história que não estando relatados, são facilmente intuídos. O leitor, assim, mais facilmente se agarra à história como se dela fizesse parte integrante. A realidade e a ficção, mesclam-se na perfeição. O período negro do narcotráfico que destruiu toda uma geração de um país enleia-se com as histórias de amor e de amizade próprias dos acasos da vida.

Trata-se de um relato sensível, intimista sobre a perda nas suas múltiplas acepções. Contudo, no final prevalece a esperança de uma recuperação do protagonista e metaforicamente, do país. “Pus-me de pé, olhei pela janela grande. Lá fora, para lá das escarpas, assomava a mancha branca do sol.” (p. 295)

Recomendo.



04 novembro, 2023

𝑶𝒏𝒅𝒆, de José Luís Peixoto

 



Autor: José Luís Peixoto
Título: Onde
N.º de páginas: 139
Editora: Quetzal
Edição: Julho  2022
Classificação: Roteiro literário
N.º de Registo: (3380)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Como classificar Onde? Um livro de crónicas, um guia de viagens, um texto poético? É uma mescla de tudo isso, é um roteiro literário já que versa por terras de Botto, Camões e Gil Vicente.

José Luís Peixoto a partir da Praça da República, centro do Sardoal e do mundo, convida o leitor a avançar pelas páginas do seu livro, pela sua geografia. E o leitor entusiasmado deixa-se conduzir pelas suas palavras poéticas.

São 139 páginas de textos breves que nos proporcionam a descoberta de igrejas, de fontes, de miradouros, de ruas, de árvores, de paisagem, de monumentos, de bibliotecas…. Para o leitor que já visitou Abrantes, Constância e Sardoal, esta viagem pode tornar-se num avivar de memórias, de recordações, mas pode também tornar-se num enorme lamento porque percebe que então, o seu olhar não captou a realidade existente no “cruzamento entre o tempo e o espaço” e que não “soube manobrar o olhar”, pelo que no final do livro, sente vontade de regressar com os olhos bem abertos, de seguir os passos e as palavras do autor, de apreender tudo de novo, de captar a essência de cada lugar e de terminar na Biblioteca Municipal de António Botto (inevitável) para sentir o seu olhar, para ser biblioteca:

“ A BIBLIOTECA ESTÁ A VER-TE. A partir das janelas abertas, esse olhar não te larga, fixa cada um dos teus movimentos, até os mais ínfimos: o peito a encher-se e a esvaziar-se, o ligeiro tremor com que te firmas nas pernas. Existes no olhar da biblioteca, da mesma maneira que estas palavras existem no teu olhar. (…) Mas agora estás aqui, és uma figura ao longe. A tua pele são as tuas paredes, como as paredes da biblioteca são a sua pele. As prateleiras de livros são as suas veias e artérias. Através delas, fluem palavras como sangue ou seiva, são a transcrição literal dos teus pensamentos. A biblioteca está a ler-te. Tu és a biblioteca da biblioteca. “ (pp. 85. 86)

Em jeito de conclusão, Onde é um livro diferente, que se pode ler num ápice. Contudo, recomendo que se leia com vagar, que se aprecie a escrita simplesmente poética porque “PRECISAMOS DAS BORBOLETAS para falarmos de delicadeza. Sem elas, seria muito mais difícil escolher palavras finas e raras, prontas a pousar lentamente nos ouvidos de quem as escute, nos olhos de quem as leia.” (p. 83) e, também, porque “às vezes, a poesia é a loucura arrumada em versos, palavras que se parecem com os seus sinónimos mas que, ao serem lidas, nos puxam para um lugar com outra lógica.” (p. 87)

É isto! É poesia! São palavras belas, são borboletas!

A certa altura, JLP escreve “Sorrir foi a lição mais importante.” Eu sorri bastante.





24 outubro, 2023

𝑯í𝒇𝒆𝒏 -, de Patrícia Portela

 


Autora: Patrícia Portela
Título: Hífen -
N.º de páginas: 275
Editora: Caminho
Edição: Abril 2021
Classificação: Romance, Distopia
N.º de Registo: (BE)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐


Patrícia Portela na Nota Prévia informa o leitor de que esta obra foi construída a partir de fragmentos e de reflexões num tempo em que a vida estava à beira do abismo, pelo que com estas palavras aguarda o resgate do inferno para onde se encaminhou.

Estamos, assim, perante uma alegoria do mundo. De um mundo doente representado utopicamente pela Flandia, “ o centro do universo com uma geografia impossível”, e o Olival, “o resto do mundo. A sobra. De onde vimos e para onde nunca voltamos.” Assim, do título 𝑯í𝒇𝒆𝒏 - subjaz a ideia de ligação entre as duas regiões. Mas Patrícia Portela não se fica pela simples ideia de união. Ela vai à etimologia da palavra (Hí + Flan) para criar e nos explicar a origem de Flandia (a região) e Flan (o habitante), e com isso desenvolver toda a sua ideia de (des)união entre as pessoas, entre os povos.

No início, estranhamos a estrutura, mas no evoluir da leitura verificamos que há unidade e coerência e tudo fará sentido no final da obra. Na distopia desenvolvida na Flandia (região hifanada) os seus habitantes (os flans) estão normalizados, controlados pelo algoritmo. O ser humano é substituído pela tecnologia.

Esta leitura leva-me a intuir que a imperfeição da sociedade quer seja a da narrativa, a distópica, quer seja a actual, se encontra na ausência de ligação entre as pessoas, na distância entre uns e outros, na falta de afectos, na forma como agimos, como nos “hifenizamos”. Não é em vão que a autora aborda temas como a maternidade, a doença, a emigração, a escrita e a leitura. Temas fundamentais na construção, desenvolvimento e compreensão de uma sociedade.

Patrícia Portela com este livro pretende mostrar a complexidade de uma sociedade que se deixa conduzir, iludir em vez de decidir, de lutar por um futuro mais feliz e atractivo.

É por demais evidente a analogia com o presente em que vivemos subjugados pela tecnologia, pelos algoritmos, pela inteligência artificial e que corremos o risco de “um dia acordar sem palavras”, de perder faculdades, de perder a capacidade de raciocínio. Tudo isto influi no relacionamento entre as pessoas, deixa de haver união e desenvolve-se o individualismo.

Hífen é uma obra de difícil classificação, mas desafiante e perturbadora na medida em que nos faz questionar o presente em que vivemos.
Afinal também nós fomos até ao inferno. Será que fomos resgatados ou permanecemos adormecidos como as crianças Flans? Segundo consta “até à data, na Flandia, nenhuma criança acordou.” E nós?



22 outubro, 2023

𝑼𝒎𝒂 𝑳𝒖𝒛 𝒂𝒐 𝑳𝒐𝒏𝒈𝒆, de Aquilino Ribeiro

 



Autor: Aquilino Ribeiro
Título: Uma Luz ao Longe
N.º de páginas: 166
Editora: Bertrand Editora
Edição: Setembro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3466)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Uma Luz ao Longe é nesta edição prefaciada pelo escritor Gonçalo M. Tavares que incita o leitor a uma atenção redobrada e a meter-se “ por inteiro no livro que lhe exige energia da bruta e da boa.” Já que toda a energia exigida “por um livro de Aquilino é retribuída, em dobro, pelo prazer que se recebe.” Trata-se de uma fórmula inteligente de estimular a leitura deste livro.

Este romance de formação, e de cariz autobiográfico, narra o período da vida de Amadeu Magalhães, o protagonista, que com dez aninhos tem de sair de casa e apresentar-se no seminário do Colégio da Nossa Senhora da Lapa. Menino inteligente, e curioso é alvo de chacota dos outros colegiais, sente vergonha das suas origens, não aprecia a clausura a que é sujeito, sofre com o afastamento da sua gente, questiona a “hostilidade que se açulara” contra ele, estranha a vida austera e os ensinamentos recebidos pelo que se fecha dentro da sua “timidez selvagem como dentro de uma cidadela”, mostrando desde logo a sua fraca vocação para a vida de sacerdócio.
“ – Este rapazinho é pior que um gato assanhado. Não se metam com ele. Deixem-no que logo amansará!
Tal foi a minha iniciação no Colégio de Nossa Senhora da Lapa, instituído e patrocinado pelo prelado da diocese para ensino de meninos e seu ordenamento na carreira eclesiástica e civil. “ (p. 44)

O protagonista “traquinas, leviano porventura, dado à ribaldia” sempre que algo acontecia, constava na lista dos suspeitos e sentia repulsa pela injustiça praticada pelos padres. “A mim nada me fere tanto como a injustiça” (p. 148)
Até que um dia, após um determinado episódio, e confirmando uma forte personalidade já bastante notória, é expulso do seminário, pondo em causa o sucesso dos exames e a continuação dos estudos. Amadeu, em casa, livre e já com um carácter determinado prepara-se com dedicação e apresenta-se aos exames. Contrariando as expectativas dos seus antigos professores do seminário, passou com sucesso.

E assim, com esta atitude se começa a forjar, desde muito jovem, o seu ex-libris - “Alcança quem não cansa” – porque nas horas de maior tristeza e amargura, uma luz “pequenina, bruxuleante, vinda de longe, crescia, e iluminava-me o caminho. (…) A questão para o indivíduo é ter olhos que a descubram.” (p- 130)

Sob a forma de memórias, o mestre Aquilino Ribeiro apresenta-nos um testemunho fabuloso das gentes, da terra e paisagens da Beira Alta, mas mostra-nos sobretudo que “no homem tudo consiste em ser e subsistir. Ser envolve um problema de ordem temporal, mas subsistir um problema de eternidade.” (p. 133)

Resta-me acrescentar que o percurso literário que realizei às Terras do Demo, no início deste mês, e mais concretamente A Nossa Senhora da Lapa com o privilégio de visitar os espaços, quarto incluído, onde Aquilino viveu, proporcionou-me o triplo do prazer na leitura deste livro que recomendo. Afinal, o Gonçalo M. Tavares tinha razão.





16 outubro, 2023

𝑶 𝒁𝒆𝒏 𝒆 𝒂 𝑨𝒓𝒕𝒆 𝒅𝒂 𝑬𝒔𝒄𝒓𝒊𝒕𝒂, de Ray Bradbury

 



Autor: Ray Bradbury
Título: O Zen e a Arte da Escrita
Tradutor: Miguel Romeira
N.º de páginas: 158
Editora: Cavalo de Ferro
Edição: Setembro 2019
Classificação: Ensaio
N.º de Registo: (3421)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐

O Zen e a Arte da Escrita é uma recolha de ensaios, de reflexões sobre as suas experiências literárias como romancista, contista, poeta e guionista. Ao longo das páginas sente-se a vitalidade do autor e a sua paixão pela escrita.
No prefácio (p. 14), ele revela-nos a fonte da sua escrita tantas vezes explosiva.

“Os ensaios desta recolha foram escritos em várias alturas ao longo de um período de 30 anos, uns para assinalar descobertas únicas, outros para responder a necessidades únicas. Mas todos fazem eco do mesmo: as explosões de autoconhecimento e o assombro perante o tanto que guardamos cá dentro e o que isso nos pode dar; essas reservas são como um poço, apenas temos de nos debruçar e gritar, e os ecos virão.”

O livro revela-se um manancial de conselhos extremamente útil e de referências literárias. O autor explica todo o seu processo criativo baseado no entusiasmo, como essência de sobrevivência, como superação de batalhas, como uma vitória diária.

Nos doze textos presentes, Bradbury narra as suas experiências, incita à escrita, ensina a aperfeiçoar a técnica, desvela como encontrar a inspiração e como desenvolver a criatividade. Para ele, é importante “alimentar a Musa”, isto é, “observar com os nossos olhos”; ligar memórias; “ler poesia todos os dias. (…) aquela que nos arrepia”; ler livros “que nos potenciam a capacidade de apreender…”; destrinçar os tesouros do lixo cultural; escrever, escrever, escrever muito, porque “a quantidade traz experiência. E só da experiência vem a qualidade”; fazer listas de palavras; “perseguir aquilo que amamos” nem que sejam coisas disparatadas porque “nada se perde” e poderá um dia servir.

Assim, segundo Bradbury que trabalha a escrita com um escultor, “alimentar a Musa exige um apetite insaciável pela vida desde que se é pequeno.” (p. 52): Os seus conselhos são de extrema pertinência que fortalecem e animam o nosso ensejo de escrever: “ (…) o fracasso é desistir. Ora, isto que estamos a fazer é um processo. Portanto, nada é fracasso. Tudo é percurso. Produzimos. Se o resultado for bom, aprendemos alguma coisa. Se for mau, aprendemos mais ainda. (…) Só haverá fracasso se pararmos.” (p. 138)

Não é fantástico?

Fiquei com curiosidade de ler outros livros do autor. Até hoje, só tinha lido Fahrenheit 451, um livro que considero maravilhoso e essencial no meu crescimento como leitora. Agora com este fiquei ainda mais motivada para mergulhar, com um novo olhar, na fantasia do autor, nos seus contos e nas suas Crónicas Marcianas.



02 outubro, 2023

𝑼𝒎𝒂 𝒄𝒐𝒗𝒂 é 𝒑𝒂𝒓𝒂 𝒆𝒔𝒄𝒂𝒗𝒂𝒓, de Ruth Krauss & Maurice Sendak

 


Autora: Ruth Krauss
Ilustrador: Maurice Sendak
Título: Uma cova é para escavar
N.º de páginas: 48
Editora: Kalandraka
Edição: Setembro 2016
Classificação: Infantil
N.º de Registo: (Empréstimo)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Um livro maravilhoso que revela “as primeiras explicações da infância” às crianças e também aos adultos que se deixam inebriar por “livros bons”.

O trabalho harmonioso de Ruth Krauss (texto) e Maurice SendaK (ilustração) funciona na perfeição. Num tom ternurento, salpicado de humor e pleno de sabedoria o leitor recolhe nos textos ensinamentos de vária ordem: uns directos e objectivos “ Uma cova é para plantar uma flor”, “uma cara é para fazer caretas”; outros bem mais profundos e poéticos “ Os braços são para abraçar”; “Um sonho é para observar a noite e ver coisas”, “os cães são para dar beijos às pessoas.”
Se o título nos informa que “Uma cova é para escavar”, aprenderemos ao longo das páginas que afinal tem múltiplas e (in)suspeitas funções.
Todas as frases são abundante e magnificamente ilustradas a preto e branco. O sentido da frase ganha enlevo com a expressividade, o movimento e os detalhes dos desenhos.



Foi com um prazer enorme que descobri este pequeno (no formato) livro. Foi-me emprestado, mas vou adquiri-lo porque merece um lugar de destaque na minha biblioteca, nem que seja para me lembrar que “Um livro é para ser lido”. É uma explicação óbvia, não é?!

Fiquei rendida à aparente simplicidade do texto e aos deliciosos desenhos que literalmente se estendem pelas páginas e que me fizeram sorrir.
Foi um feliz regresso às memórias da minha infância.


                                  






24 setembro, 2023

𝑱𝒖𝒏𝒕𝒐 𝒂𝒐 𝑴𝒂𝒓, de Abdulrazak Gurnah

 


Autor: Abdulrazak Gurnah
Título: Junto ao Mar
Tradutora: Eugénia Antunes
N.º de páginas: 293
Editora: Cavalo de Ferro
Edição: Setembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3423)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


Junto ao Mar é o primeiro livro que leio de Abdulrazak Gurnah. Versa sobre questões actuais como a imigração de refugiados. A sua escrita, de teor auto-biográfica, dá voz às pessoas, foca-se na identidade e no destino de cada uma. Saleh Omar, o protagonista, chega a Inglaterra como refugiado oriundo da ilha de Zanzibar e ao requerer asilo político tem de enfrentar várias barreiras: a da língua (já que afirma não falar inglês), a do controlo de passaportes, a dos serviços sociais e a incompreensão e a rejeição de muitos.
“As pessoas como o senhor vêm para aqui em catadupa sem a mínia noção dos danos que provocam. Não pertencem aqui, não valorizam as mesmas coisas que nós, não pagaram por elas ao longo de gerações, e nós não vos queremos aqui.” (p. 22)

É um romance magnífico que aborda a problemática da emigração, como já referi, mas é também, e sobretudo, a revisitação a um passado histórico doloroso, a uma história de ajuste de contas entre duas famílias, a histórias “que estão sempre a escorregar-nos por entre os dedos, a mudar de forma, a contorcer-se para se escapulirem.” (p. 157).
À medida que o protagonista narra a sua vida, assimilamos a sua viagem interior de busca de identidade, a sua reflexão sobre valores como a ambição, a traição, a dignidade, a honra, o perdão e a amizade.
Numa clara alusão ao Bartleby, de Melville, o protagonista refere em várias situações e com interlocutores diferentes “Preferia não o fazer”, passando ao leitor a ideia de que pretende expiar os seus erros, redimir-se de todo o seu passado.

Recomendo. Eu, prometo ler outros do autor já que as suas temáticas me interessam.


16 setembro, 2023

𝑶 𝑻𝒂𝒎𝒂𝒏𝒉𝒐 𝒅𝒐 𝑴𝒖𝒏𝒅𝒐, de António Lobo Antunes

 


Autor: António Lobo Antunes
Título: O Tamanho Do Mundo
N.º de páginas: 284
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3405)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


“A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objectos aumentam nos naperons, inclinados para mim a escutarem (…)” é este o início do livro de ALA. Metáfora inquietante, porém objectiva, que acompanha de forma repetida (como um eco) o leitor ao longo da narrativa.

A história é narrada a quatro vozes, contudo é a voz da solidão que se impõe. O protagonista, homem doente de 77 anos vive os dias mergulhado nas suas memórias que começam a esvanecer-se. “porque a vida, já se sabe é madrasta, que coisa estranha a memória, ela de há tempos para cá ia jurar que a faltar-me, tantos espaços, de repente brancos, nada de modo que o passado se desequilibra” (p. 16).
A solidão é enorme e devastadora; a solidão é assombrada pela “dor escondida”, é medida pelos “estalos dos móveis” e pelo “pânico das ambulâncias na rua”; a solidão é “um cano que vibra no interior da parede”.
É notável a forma como nos apropriamos da narrativa e nos deixamos envolver pelos sons que medem tamanha solidão. O paradoxo só torna mais verosímil o silêncio, o vazio da casa, do quarto do hospital, do mundo.

ALA já nos habituou a uma prosa complexa escrita ao ritmo de ideias que se misturam e confundem, de um pensamento que surge, de uma pausa… Neste livro a complexidade revela-se no pendor repetitivo, exaustivo das frases, das ideias que nos enclausuram na vida, nas vidas das personagens. Não há fuga possível. E o tamanho do mundo torna-se cada vez mais pequeno, mais fechado, mais silencioso.

Recomendo a leitura.


03 setembro, 2023

𝑶 𝑷𝒓𝒐𝒇𝒆𝒔𝒔𝒐𝒓 𝒅𝒆 𝑫𝒆𝒔𝒆𝒋𝒐, de Philip Roth

 

Autor: Philip Roth
Título: O Professor de Desejo
Tradutor: Francisco Agarez
N.º de páginas: 301
Editora: D. Quixote
Edição: Outubro 2020
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3247)



OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐



Philip Roth é um escritor marcante e de leitura obrigatória. Possuidor de uma verve irónica, bem-humorada e, simultaneamente, devastadora e comovente, impõe-nos uma narrativa mordaz e reveladora de um erotismo “devasso”.

Philip Roth cria em David Kepesh uma personagem hedónica e cínica, numa luta constante com os seus instintos mais primitivos. Mas não temam, não é esta a imagem que prevalece de Kepesh. A sua história não se cinge a paixões e sexo, a partir de um dado momento, inflecte numa reflexão e num questionamento sobre a sua vida, sobre as suas frustrações pessoais e relacionamentos inconcludentes e circunstanciais que o levam ao cadeirão do psicólogo.”Todas as noites dou voltas na cama com o pesadelo de não amar ninguém. (,,,) Quanto tempo faltará até me fartar de tanta inocência- até que a doce sensaboria de uma vida com Claire comece a enjoar, a saturar, e eu volte a sair por aí, chorando aquilo que perdi e procurando o meu caminho?”

Como já referi, não é um livro só sobre erotismo, é sobretudo, e na minha opinião, um livro maravilhoso sobre literatura. Kepesh, extraordinário professor universitário, especialista em Tchekov e Kafk, faz incursões literárias magníficas e relaciona o seu hedonismo problemático com algumas histórias destes autores.

É nesta relação que reside a mestria e a genialidade de Roth. Na narrativa, ele atribui a Kepesh o papel de doutorando que tem de redigir uma tese “sobre a desilusão romântica” e assim, aproveita certas personagens da literatura para justificar o seu comportamento movido pelo desejo.

Outro exemplo demonstrativo da sagacidade do autor é a redacção da comunicação que Kepesh prepara para o seu primeiro dia de aulas. Em vez de abordar as ideias gerais do curso de Literatura 341, propõe aos alunos falar de si, de factos íntimos, da sua história erótica, de “confessar o inconfessável – a história do desejo do professor”. Kepesh refere ainda na sua comunicação que adora ensinar literatura e que “Raramente me sinto tão bem como quando estou aqui com as minhas páginas de apontamentos, e com os meus textos anotados, e com pessoas como vocês. Para mim não há nada na vida que se compare com uma sala de aula. (…) E fora daqui não é provável que encontrem facilmente oportunidades de falar sem constrangimento sobre aquilo que foi para homens tão sintonizados com os combates da vida como foram Tolstoi, Mann e Flaubert. Talvez não saibam como é comovente ouvir-vos falar com convicção e sinceridade sobre solidão, doença, perda, sofrimento, desengano, esperança, paixão, amor, terror, corrupção, calamidade e morte…” (p. 215).

Fica clara a relação do comportamento do protagonista com as suas personagens literárias que tanto admira.

É um livro apaixonante. Recomendo.




30 agosto, 2023

𝑶 𝑨𝒄𝒐𝒏𝒕𝒆𝒄𝒊𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐, de Annie Ernaux



Autora: Annie Ernaux
Título: O Acontecimento
Tradutora; Maria Etelvina Santos
N.º de páginas: 87
Editora: Livros do Brasil
Edição: Setembro 2022
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3401)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


É o quarto livro que leio da vencedora do Prémio Nobel da Literatura 2022. Todos autobiográficos e escritos com enorme lucidez e acutilância. Mas este supera em tudo as leituras anteriores.

Annie Ernaux mergulha nas memórias dos seus 23 anos e, com recurso a uma agenda e a um diário íntimo, transforma em trama literária o aborto clandestino que então viveu. Sem pudor, ela narra todos os acontecimentos ocorridos a partir do momento em que decide rasgar o certificado de gravidez passado pelo médico. Contudo, a decisão de o fazer não foi fácil nem imediata, “Há anos que giro à volta deste acontecimento da minha vida. (…) Comecei esta narrativa há uma semana, não tendo a mínima certeza de vir a prossegui-la.” (p. 18). Ao longo da leitura, percebemos e aceitamos as suas hesitações, mas desejamos ansiosamente que a termine para que possamos, com ela, enfrentar o acontecimento e para que o seu desejo se concretize, como referiu numa das epígrafes, “que o acontecimento se transforme em escrita. E que a escrita seja acontecimento.” (cita Michel Leiris).

Ela também tem consciência de que este relato, directo e cru, tão característico da sua escrita, pode não agradar a todos. Na página 41, ela regista essa advertência, mas decide continuar pois o mais importante é revelar a “realidade das mulheres”, a “experiência vivida de uma ponta a outra através do corpo” e manifestar a sua oposição à “dominação masculina do mundo”.

Trata-se de um testemunho corajoso e doloroso que levanta questões “acerca da vida e da morte, do tempo, da moral e da interdição, da lei” (pp.83-84),da vergonha, do pecado e que revela a experiência dramática vivida por muitas mulheres, a caminhada solitária, a incerteza.

“Caminhava pelas ruas com o segredo da noite de 20 para 21 de janeiro no meu corpo, como uma coisa sagrada. Não sabia se tinha estado no auge do horror ou da beleza. Sentia orgulho. (…) Foi, sem dúvida, algo desse orgulho que me fez escrever esta narrativa. (p.80).

E eu como leitora e mulher sinto e partilho esse enorme orgulho.


21 agosto, 2023

𝑬𝒔𝒔𝒂 𝑮𝒆𝒏𝒕𝒆, de Chico Buarque

 


Autor: Chico Buarque
Título: Essa gente
N.º de páginas: 195
Editora: Companhia das Letras
Edição: Dezembro 2019
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3462)

OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐



A leitura de Essa Gente flui agradavelmente porque se estrutura com pequenos capítulos – entradas de diário e de cartas – e com uma escrita simples, o que conferem um certo dinamismo à narrativa. Chico Buarque é, contudo, incisivo na crítica social do seu país, à política de Bolsonaro (as datas conferem este facto). Com subtileza e sentido de humor cria uma personagem, Manuel Duarte, escritor que sofre de “síndroma de Bartleby na Literatura”, isto é, “doença” que atinge certos criadores que, apesar de revelarem uma consciência literária muito exigente, os impede de escrever momentaneamente ou para o resto da vida. Enrique Vila-Matas explora muitíssimo bem este assunto no seu livro Bartleby & Companhia.

Voltando ao livro em análise, o autor situa a acção no Rio de Janeiro e oferece-nos um enredo fascinante que põe a nu quer a decadência da personagem quer a do país.

Chico já nos habituou à crítica social e política, as suas canções interventivas há muito que o fazem, pelo que não estranhamos o conteúdo. Também não posso concluir que este livro se cinge à crítica social, é-o efectivamente, mas é, na minha opinião, um hino às relações humanas, aos comportamentos das pessoas. Aliás, o título transparece isso mesmo. Há todo um desfilar de personagens tipificadas que se movem nas várias camadas sociais do Rio, que se relacionam com Duarte e as suas ex-mulheres e que denunciam as crises amorosas, financeiras e criativas de um escritor que não consegue escrever o romance que lhe garantirá a manutenção do seu prestígio e da sua conta bancária.

O leitor terá de intuir nas entrelinhas (como numa partitura?) porque os factos são narrados com muita delicadeza e subtileza, não há juízos de valor e apesar de se focar num tempo actual, é, porém, muito revelador da essência social do país, desde há muito. Quem não ouviu falar das favelas, do contrabando, da violência, do racismo, da corrupção? Da crescente e assumida estratificação social? Da vida de gente pobre, invisível, que tudo faz para sobreviver? “É isso o Brasil” a alma de Essa Gente, como é referido por mais de uma vez no livro.

Recomendo a leitura por tudo o que já referi, mas sobretudo porque penso que se trata de uma consciencialização contra a ignorância, a corrupção e a violência; de um apelo à luta pela liberdade, pela igualdade de direitos e deveres. Em suma, o desejo de um futuro melhor, de um país mais moderno e democrático.