29 dezembro, 2022

𝑨𝒔 𝑫𝒐𝒆𝒏ç𝒂𝒔 𝒅𝒐 𝑩𝒓𝒂𝒔𝒊𝒍, de Valter Hugo Mãe

 


Autor: Valter Hugo Mãe
Título: As Doenças do Brasil
N.º de páginas: 273
Editora: Porto Editora
Edição: Setembro 2021
Classificação: Romance
N.º de Registo: (3320)


OPINIÃO ⭐⭐⭐⭐⭐


VHM refere na sua epígrafe que retirou o título As doenças do Brasil de um excerto do “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, de Padre António Vieira (“Esta foi a origem do pecado original e esta é a causa causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde.”).

Neste longo poema, como o próprio autor o classificou nas notas de autor, VHM transporta-nos para a comunidade imaginária dos abaetés, como povo originário do Brasil, relata-nos a sua cultura, língua, educação, crenças e costumes e dá-nos a conhecer o passado colonial dos brancos e o seu impacto no presente.
Transparecem neste texto a emotividade e a sensibilidade do autor quer através da escrita poética quer através da caracterização do povo indígena. Abaeté significa “pessoa gentil” e é gentileza, cumplicidade, piedade, generosidade, mas também ingenuidade que encontramos no “povo dos três mares”. Também percebemos como a questão racial, o domínio do homem branco sobre os povos indígenas e negros perturba o autor (“O negro era um animal domesticado pelo branco.”). A referência à língua branca que fede e apodrece na boca é uma constante:
“E seu bafo fedeu muito entre todos. (…) é a língua branca. A língua e o fedor da língua branca, a palavra que apodrece na boca e apodrece a boca.” (p. 105)

A acção centra-se no caso de um jovem abaeté, Honra, que vive o drama de ser o fruto da violação de Boa de Espanto, uma “feminina”, por um homem branco. Honra não se conforma, vive revoltado e promete matar o branco, o inimigo. Honra, o guerreiro feio, sente-se indigno, ferido de morte e não aceita ter herdado a cor do homem branco, da “fera branca”.
“ sagrado Pai Todo, sou branco. Sei agora e não sei como não o via mesmo que vendo. Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. Sou uma possessão. Um espírito baixado sobre minha dignidade abaeté. Sou um bicho como nenhum outro da mata. Um inimigo menos semelhante. Um excremento do branco no ventre de minha mãe. Sou a morte, sagrado Pai Todo.” (p. 33)

Honra, bem aceite pelo seu povo e educado segundo os preceitos abaeté, só começou a aceitar a sua condição quando encontrou, na mata, um negro a quem deram o nome de Meio da Noite, ainda mais desafortunado e a quem se afeiçoou, primeiro porque recebeu ordem de lhe dar uma “educação abaeté” e depois porque nasceu entre os dois “feios” uma enorme cumplicidade que não vou desvendar.
“Um pouco depois, no silêncio profundo da maloca, comovido, Meio da Noite pressentiu que Honra não dormia e isso lho perguntou. O guerreiro branco respondeu:
penso. Não consigo parar de pensar.
E o negro entoou:
sagrado Honra, se entendi o que aconteceu, se por sorte me salvaram, quero que saibas que estou grato. Sou grato. Fujo sozinho mas sou testemunha de milhares. Ei vi milhares. A minha vida é a prova de que existiram, existem, e a minha voz será sempre uma pertença deles também.
O branco perguntou:
o que significas com isso.
E o negro respondeu:
obrigado, sagrado Honra. A minha vida dignifica meu pai, minha mãe, meus avós, meus irmãos, meus povos.
Honra perguntou:
estás a chorar, animal negro.
E o negro entoou:
sim.
Então, Honra chorou também. As feras eram incapazes de chorar. No sol seguinte, até estupefacto, o guerreiro branco foi declarar ao pajé que o negro era alguém. Entoou:
é alguém sagrado Pai Todo, intuí seu espírito. Eu intuí. (pág. 118).

Em conclusão, a narrativa poética criada pelo autor não foge muito à realidade histórica. O “colector de palavras” concebeu um poema a partir do seu fascínio pelos povos originários, escrito com o assombro e a violência de uma realidade que pretende manter viva, como lhe disse o cacique dos Anacés: “vá, e diga ao seu povo branco que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para os receber como amigos. Ensine ao seu povo que somos amigos.” (p. 266). E VHM cumpriu na perfeição.
Recomendo vivamente!



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